O criador da vacina contra a Leishmaniose — doença causada por protozoários do gênero leishmânia e que afeta 350 milhões de pessoas em todo o mundo —, professor Wilson Mayrink, luta há mais de 30 anos para que o Ministério da Saúde a produza e inclua no calendário brasileiro de imunização. Enquanto isso não ocorre, a doença se espraia, fazendo a festa da indústria farmacêutica alienígena.
As pesquisas do professor Mayrink — que em 1963 organizou o Laboratório de Leishmaniose do Departamento de Parasitologia do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB/UFMG)—, resultaram no desenvolvimento da Leishvacin, a única vacina existente no mundo de comprovada eficácia contra esse protozoário. Só que o descaso das sucessivas gerências para com a saúde impede a sua produção em larga escala.
Um pesquisador do Instituto Bacteriológico de São Paulo, o professor Salles Gomes, lançou em 1939 a idéia de se produzir uma vacina contra a leishmaniose. A primeira experiência em campo foi realizada um ano depois, em Presidente Prudente, pelo parasitologista Samuel Pessoa, da Secretaria de Saúde de São Paulo, e a partir desses estudos, Mayrink e sua equipe desenvolveram a vacina.
Mais pobre, pior
No Brasil, só na região Sul os casos são de pequena monta. As áreas de maior ocorrência localizam-se no Norte, Nordeste e parte Norte de Minas Gerais, principalmente nas regiões agrícolas, favelas e localidades negligenciadas de saneamento básico. Somente no Brasil, estima-se o aparecimento de 25 mil novos casos por ano. Em Minas Gerais, mais de 400 municípios já detectaram a presença da doença, que contamina 12 milhões de pessoas em 88 outros países semicolonizados.
Já erradicada nos países de governos imperialistas, a Leishmaniose tem origem silvestre. É transmitida pelo lutzomya (birigüi ou mosquito-palha), inseto com especificidade biológica para transmitir o parasita ao homem, quando ele invade a floresta e destrói o habitat natural do mosquito. Além disso, o cachorro, animal domesticado pelo homem, é o principal hospedeiro do protozoário transmissor da Leishmaniose braziliensis.
Uma simples picada já é o suficiente para transmitir a doença que começa sua manifestação através de vários sintomas como febre contínua, perda de apetite, crescimento exagerado do fígado, lesões na pele e anemia, podendo até mesmo levar à morte do homem e de animais domésticos.
A doença se apresenta de modo diverso, tanto quanto à manifestação quanto ao grau de periculosidade. A do tipo tegumentar, mais comum em Minas Gerais, provoca a decomposição de parte dos tecidos do corpo e a deformação da pessoa. As feridas migram da região infectada para outras partes do corpo. Há também a mucotegumentar, que ataca as mucosas nasal e faringiana, com casos extremos de total deformação do rosto; a visceral, que atinge baço, fígado e medula óssea; e a difusa, que ataca a pele, causando um tipo diferente de lesão, até bem pouco tempo tida como incurável, mas combatida com sucesso pelo tratamento desenvolvido por Mayrink, usando a vacina em combinação com imunoquimioterapia.
Experiência de 50 anos
Orgulhoso pai de dez filhos (seis adotivos) e formado em Medicina em 1951 pela UFMG, Wilson Mayrink recorda:
— Passei por várias áreas da Medicina mas nunca me encontrava, até me ver largado em um laboratório. Foi aí que desenvolvi o interesse pela pesquisa. Como não gostava quando meus pacientes perguntavam o preço da consulta ou do tratamento, parei de clinicar e virei cientista de vez.
O interesse de Wilson Mayrink pela Leishmaniose foi despertado em 1962, com a visita ao Brasil do professor Saul Addler, da Universidade Hebraica de Jerusalém. O médico mineiro logo se juntou à equipe de Adler na montagem de um centro de estudos em Leishmaniose e começou essa caminhada que já dura mais de 40 anos de atenção principalmente ao povo empobrecido. Em 1965, Mayrink e o epidemiologista Paulo Araújo Magalhães, da SUCAM — Superintendência de Campanhas de Saúde Pública —, iniciaram estudos na Zona da Mata sobre a profilaxia da Leishmaniose visceral, ou calazar, doença causada pelo protozoário Leishmania donovani. De 1965 e 1971, trataram cerca de 360 casos, somente em Caratinga (MG). Como a exterminação dos cães tem tanta importância para a erradicação, naquela época foram examinados 180 mil cães sendo 7% sacrificados.
Mayrink recorda que já precisou ameaçar uma pessoa de apresentá-la como responsável pela possível contaminação de toda uma região, para obter concordância dela para o sacrifício de seu cão. — Não imaginava que um cachorro tivesse papel tão importante para uma família — comenta. Para evitar a propagação da doença, promoveu a dedetização das áreas residenciais e estabeleceu desde então rigorosa vigilância epidemiológica. Em seis anos de trabalho, conseguiu controlar o calazar, naquele município, aplicando a vacina nos camponeses antes de irem para a lavoura. Mayrink afirma que o resultado só não foi obtido antes devido à ignorância dos médicos e o descaso das autoridades.
—A maioria das pessoas não acreditava que pudéssemos chegar a esses bons resultados — observa. — E muitos ainda não dão valor à vacina por ter sido desenvolvida por brasileiros sem apoio e sem as condições de trabalho dos estrangeiros que, mesmo assim, não conseguiram resultado tão satisfatório.
Autoridades & mistérios
A partir de 1971, os esforços se concentraram na coordenação de um grande estudo, ainda na região de Caratinga, para testar a eficácia da vacina contra a Leishmaniose tegumentar americana (LTA), Viana (ES) Manaus (AM) e Belo Horizonte (MG). Após a realização dos primeiros testes, ocorreram inúmeros aperfeiçoamentos na vacina. Na Amazônia, uma região endêmica, foram realizados testes com soldados, obtendo-se êxito total.
Em 1987 o então superintendente de Campanhas de Saúde, Josélio de Carvalho Branco, informou ao ministro da Saúde, Roberto Santos, sobre o sucesso da aplicação em larga escala da Leishvacin . A Organização Mundial da Saúde — OMS — autorizou a fabricação da vacina pela extinta Bioquímica do Brasil S/A — Biobrás. Passaram-se quatro anos e o Ministério da Saúde suspendeu a autorização para a produção, sem informar os motivos.
Quando a produção foi desautorizada pelo Ministério da Saúde, um dos maiores parasitologistas do país, o professor Amílcar Viana Martins, afirmou que a vacina tinha grande valor social, científico e econômico.
A vacina foi reconhecida até pela revista do Programa de Pesquisa de Doenças Tropicais da OMS, mas apesar disto Mayrink tem que arcar com recursos próprios para o desenvolvimento de seu trabalho, com destaque para a aplicação, com apoio da UFMG, Fapemig — Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais — e UFOP — Universidade Federal de Ouro Preto —, irradiada de Caratinga para numerosos municípios vizinhos. No Ambulatório Paulo Magalhães, em Caratinga, Mayrink ainda cuida dos pacientes, usando a vacina produzida por ele no laboratório da UFMG e medicamentos cedidos pela Funasa —Fundação Nacional de Saúde —, Biomm, Secretaria Municipal de Saúde, entre outras. Atende de 15 a 60 novos casos por mês. Alguns precisam percorrer até 200 quilômetros para receber o tratamento. Muitos desistem e o próprio Mayrink já custeou deslocamentos de pacientes. O combate e o tratamento da doença ainda são artesanais. O medicamento padrão à base de antimônio, tem o nome de Glucantime. É tóxico, causa enjôo e problemas no fígado. Esse remédio foi criado em 1912 pelo pesquisador Gaspar Viana, incorporando o tártaro hermético ou antimonial no tratamento, mas foi sendo aperfeiçoado até chegar-se ao antimônio pentavalente, comercializado no Brasil por um laboratório com sede na Inglaterra, a Rhodia. O Ministério da Saúde custeia o fornecimento, mas não há ampolas suficientes nos hospitais e postos de saúde. A incompetência é tamanha que a distribuição não leva em consideração a ocorrência da Leishmaniose em cada região.
— O Paraná não tem Leishmaniose e recebe a mesma quantidade de antimônio que o estados do Norte e Nordeste, que são grandes focos da doença — critica Mayrink.
O uso do medicamento apresenta restrições para gestantes, idosos, cardíacos, recém-nascidos, diabéticos e portadores de doenças imuno-depressoras. Só em 2000, o Ministério da Saúde registrou 14 mortes causadas pelo uso do antimônio e, em 2001, o número aumentou para 17. Segundo Mayrink os médicos não estão preparados para lidar com a doença e o seu tratamento.
Como a vacina desenvolvida por Mayrink não tem contra-indicações, ela é a única maneira de tratar pacientes que não podem receber o antimônio. De acordo com o professor, o resultado final é de praticamente 100% de cura e, quando antimônio e vacina são usados juntos, além da diminuição da exposição ao antimônio, o tempo gasto é menor do que quando se usa só o antimônio. Já quando somente a vacina é usada no tratamento, o processo de cura é mais lento, pois depende do estado imunológico da pessoa.
— A vacina é capaz de levar à cura da lesão e também pode produzir um estado de resistência à doença — observa Mayrink, sem compreender a atitude do governo, pela qual quem paga é o povo trabalhador do campo sempre mais empobrecido.
Já aposentado, o professor Wilson Mayrink ainda vai diariamente ao ICB para dar continuidade às pesquisas. Nenhuma adminisração investiu até hoje neste trabalho, e todos os que tomam conhecimento dele afirmam que, se a Leishmaniose contaminasse gente rica, não faltariam recursos para financiar dezenas de pesquisas, como ocorre com a diabetes.
— No Brasil não se permite ter saúde pública, não há competência — desabafa Mayrink.