O consenso entre os pais de que é decisiva a educação dos filhos e que a escola tem valor fundamental tornou-se uma das maiores conquistas de nossa época. Mesmo quando o pai não dispõe de melhor formação ou de qualquer escolaridade, em nenhum momento admite hoje a ausência de escola, ainda que viva no interior.
Em particular, que agradável sensação nos transmite uma obra quando, após ser lida, nos deparamos com o fato de que em poucas horas obtivemos um conhecimento que o autor levou anos para apreender e que generosamente nos concedeu.
Neste contexto, é saudável a crescente divulgação do incentivo à leitura e reflete como um fator positivo as indicações que as escolas fazem de livros, didáticos, paradidáticos, e da literatura em geral no início de cada ano letivo.
Surge na nossa imaginação os professores, orientadores pedagógicos e educacionais buscando textos, lendo, analisando no sentido de indicá-los como apoio ao projeto pedagógico escolar.
Sensibilizado pela divulgação de que o pai deve "ser participativo" e procurar se integrar com os filhos nas atividades escolares, tomamos a iniciativa de ler todos os livros indicados por uma determinada escola.
Uma das crônicas de As mentiras que os homens contam, afinal, um livro de autor bem sucedido 1 e que hoje percebemos, está indicado em várias escolas de diferentes estados brasileiros:
Homens que eram homens eram os bandeirantes. Como se sabe, antes de partir em uma expedição, os bandeirantes subiram num morro em São Paulo e(…)
Segue-se, na página 94, uma retórica verdadeiramente imoral, desagradável, tola, que a linha editorial de AND (felizmente) não aceita ver publicada, apesar de todo o respeito que guarda pelo autor. Mas convenhamos, essa passagem pertence a um livro indicado (obrigatório) para leitura que se destina a adolescentes de 13, 14 anos, na oitava ou primeira série do ensino médio.
A bem da verdade, não consta na ficha catalográfica ou em qualquer outro espaço indicações, sobre os três livros que mencionamos aqui, de tratar-se de literatura destinada a adolescentes.
Observando a indicação da primeira obra em escolas particulares de renome, algumas religiosas (que apenas na aparência contradizem o método de seleção), localizadas em vários estados, somos levados a crer que a escolha foi determinada pelo trabalho de marquetagem da editora — que, por sinal, é estrangeira. Pais de alunos, professores, coordenadores pedagógicos, supervisores etc. — e, sem qualquer exagero, muito menos os alunos são consultados.
Já aconteceu. Ao lermos este texto para o vice-diretor da escola, muito famosa, ele ficou amarelo e deixou escapar um riso atônito. Estava com a síndrome, muito em voga no momento, do não sabia, a exemplo dos mandatários que, quando apertados, dizem não saber de nada…
De igual maneira, a coordenadora educacional referenciada para a série que o livro foi indicado, para o confiante pai comprar, não conhecia o livro. Vai orientar o quê?
Repetimos, tudo leva a crer que as escolhas não obedecem a uma estratégica pedagógica discutida amplamente pela massa dos professores, pelos pais, chegando a desconsiderar até mesmo faixas etárias. Trata-se de uma pedagogia animada pelas necessidades do mercado, pela alienação, pela automatização do consumo, explorando como centro da decisão a figura de literatos de renome, fora do índex do monopólio das comunicações e exemplo de sucesso, mas aproveitados e usados pelos editores estrangeiros principalmente como produto comercial destinado a originar muitos lucros e a contribuir com o jogo das remessas para os acionistas no exterior.
Porque, senhores, não temos essas pretensões moralistas de caráter semi-feudal e semi-colonial, dominantes em nosso país, que desavisadamente alguns pensam combater com essa ingênua literatura que acreditam popular, feita para "desopilar o fígado", mas cheias de graves inconvenientes. Exatamente por isso, abram os olhos: o nosso povo é outro.
Apologia à decadência
Um outro texto, destinado à mesma faixa etária, dessa vez sob o título de A hora da estrela 2, na página 74, por exemplo, faz desfilar um rosário de frustrações amorosas, sob a seguinte ótica:
Olhe, eu era muito asseada e não pegava doença ruim. Só uma vez me caiu uma sífilis mas a penicilina me curou. Eu era mais tolerante do que as outras porque sou bondosa e afinal (…) o que era meu. Eu tinha um homem de quem eu gostava de verdade e que eu sustentava porque era fino e não queria se gastar em trabalho nenhum. Ele era o meu luxo e eu até apanhava dele. Quando ele dava uma surra eu via que ele gostava de mim, eu gostava de apanhar. Com ele era amor, com os outros eu trabalhava. Depois que ele desapareceu, eu para não sofrer, me divertia amando mulher. O carinho de mulher é muito bom mesmo, eu até lhe aconselho porque você é delicada demais para suportar a brutalidade dos homens e se você conseguir uma mulher vai ver como é gostoso, entre mulheres o carinho é muito mais fino. Você tem chance de ter uma mulher?
Este é um livro em que a celebridade, na época do lançamento, utilizou um pseudônimo, cujo nome verdadeiro teria revelado somente em edições posteriores.
Nesse livro, os personagens fazem o negativismo submisso. O autor é um eterno deprimido, angustiado. O namorado da personagem central — a "nordestina síntese de ser nada" —, é "coisa nenhuma", sem qualquer indicação ao menos da sexualidade e "manheza" comum no nordestino. A personagem, que ao primeiro momento parece ser menos nociva é a ex-prostituta do Mangue (Rio de Janeiro), depois cartomante, mas que no final faz a apologia do homossexualismo feminino.
As derradeiras palavras reafirmam o "vazio" de conteúdo da obra:
E agora — agora só me resta acender um cigarro e ir para casa.
Promiscuidade e baixo calão
Diminuiu um pouco, mas a AIDS esteve em muita evidência nos meios de comunicação. De repente, atingiu pessoas de relevo e artistas com muita presença no monopólio da comunicação. A gravidade da sua evolução, a cura inexistente e a via transmitida sob a égide do instinto sexual, um aspecto da conservação da espécie, alarmou a população.
O que não se cura tem que se evitar. Surgiram campanhas preventivas, não exatamente evitando a promiscuidade, mas enaltecendo o uso de um "equipamento de segurança" cujos relatórios de venda fazem a alegria dos laboratórios estrangeiros. Logicamante o alvo volta-se para o jovem e nisso a escola é chamada a participar.
Os próprios pais, ávidos pelo surgimento de debates, palestras e até livros paradidáticos sob a forma de romance indicados para a leitura dos alunos nas escolas, sem maiores informações, aprovaram as campanhas.
Também os pais leram os livros que têm sido indicados?
A ausência do tempo livre do adulto, aliada ao estrangulamento da cultura e da economia, ao que parece, não tem permitido uma leitura cuidadosa dos romances fabricados para incluir "aulinhas" sobre o tema AIDS no seu contexto. Mas a expectativa (às vezes, o pavor) dos pais, dos professores, dos colégios e da população em relação ao assunto garante o grande sucesso comercial de várias destas obras.
Entretanto, em algumas escolas, de maneira indefensável, encontramos obras pessimamente selecionadas. Infelizmente, também na de minha filha. Valeu o hábito de ler os textos recomendados.
Sob o título Depois daquela viagem 3, aparecem as primeiras palavras de baixo calão, impublicáveis. Que nível baixo!
(…)
Aí sim ela resolveu se mexer, mas aí já era tarde, a dor insuportável, continuei berrando.— Me tira daqui que vocês não sabem (…) nenhuma. Eu quero ir pro meu andar, pro meu quarto, pros meus enfermeiros. Eu quero o dr. Anjo!
Alguém abriu a porta, tia Adia, tinha chegado do hospital.
— Calma, Valéria, a gente já vai te levar lá pra cima. Já ligaram pro seu médico.
Me levaram pro meu andar. A enfermeira de noite veio me receber.
— Que aconteceu,minha querida, você saiu daqui hoje.
— Não sei, não sei. Tô fazendo xixi de sangue. Manda essa bruxa sair do meu quarto! — era para enfermeira idiota lá de baixo. — Cadê a Júlia, cadê o dr. Anjo?
Sob pretexto, apresentar uma narrativa em tom coloquial e descontraído, uma linguagem chula toma o espaço da literatura para adolescentes.
A escola justificou a indicação como um livro que leva a um estado ou "reflexão da realidade", expressão usual da sociologia tecnocrática e clerical que não significa absolutamente nada, a começar que o ambiente da tal realidade se situa quase todo fora do Brasil.
A personagem principal nem de longe traduz as condições materiais da gente brasileira, colocando-se muito acima da média de vida dos brasileiros, uma vez que sempre dispõe de dinheiro para viagens e até tratamento no mais caro sistema hospitalar brasileiro. É desagregada e problemática.
Incrível a poesia: "Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá". Citada entre aspas, na página 215, tem a palavra palmeira substituída por hortência. Ora vejam!
Quanto à parte médica, há inúmeras e gritantes imperfeições que chegam a nos fazer desconfiar que a autora não saiba exatamente o que é AIDS.
A evolução descrita não condiz com a realidade habitual quando há muitas características terminais e surge a paciente de carga viral indetectável com namorado não aidético fazendo "sexo seguro". Só faltaram falar que para ser feliz a pessoa tem que ter AIDS, sendo que até folhetos de "aulinhas" do Ministério da Saúde conseguem ter muito mais propriedade que aquelas inseridas na narrativa da jovem escritora.
Bem, essa é apenas uma parte do que está acontecendo na seleção dos livros para os alunos adolescentes.
Cabe dizer, portanto: Verifiquem as indicações, questionem. Temos à disposição dos leitores, no jornal, no endereço eletrônico mais informações. É preciso desencadear uma grande cruzada em torno da seleção dos livros escolares — cujas editoras estão sendo dominadas pelos especuladores estrangeiros.
Quais são os livros indicados na escola do seu filho? Se forem obrigados a comprar um livro com textos tão absurdos, francamente, devolvam à escola e exijam o dinheiro de volta, porque a seleção estabelecida pelo estabelecimento é inadmissível. Convenhamos.
Rui Nogueira é médico, pesquisador e escritor. End eletrônico: [email protected] 1 — Veríssimo, Luis Fernando. As mentiras que os homens contam. Rio de Janeiro. Objetiva. 2001 2 — Lispector, Clarice, 1925-1977. A hora da estrela. Rio de Janeiro. Rocco.1998 3 — Polizi, Valéria Piassa. Depois daquela viagem; diário de bordo de uma jovem que aprendeu a viver com AIDS. 19ª. edição. Ática. São Paulo. 2005.