Lucro não tem time nem honra

Lucro não tem time nem honra

A maioria das cidades brasileiras e do mundo tem clubes de futebol. Esses clubes geralmente representam interesses diversos e antagônicos. Nesse antagonismo estão presentes velhas questões de classe (principalmente), de nações, de regionalismos, culturas específicas, expressando o conflito inerente a todas as competições desenvolvidas sob um sistema que se nutre da exploração do homem pelo homem.

Preparando-se para lançar o livro Violência e Futebol, dos estudos clássicos aos dias de hoje, pela editora FGV, o professor Maurício Murad, que coordena o Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, vê um reflexo das instituições do Estado burguês e latifundiário na estrutura dos meios de comunicação de massa e nas grandes corporações da bola ao utilizarem clubes e jogos para lucrar com a violência.

Para ganhar audiência ou mercado consumidor uns e outros se aproveitam da agressividade que caracteriza a prática do futebol: são duas equipes que se opõem e cada jogador trava uma batalha pessoal (contra um ou mais adversários) e, também, coletiva (contra o time adversário). Passam, assim a estimular os atos de violência ocorridos dentro de campo como carrinhos, chutões, xingamentos, pontapés, tudo para vender mais a quem torce por um determinado time. As corporações alienígenas que anunciam no monopólio dos meios de comunicação põem em campo a manipulação financeira, e com ela, a mais execrável expressão do imperialismo, o fascismo.

Futebol fascismo

O torcedor, proveniente em sua grande maioria do proletariado, carrega a vida inteira uma relação de compromisso com clubes de grande aceitação popular. Isto, segundo o professor Murad, faz com que todos se tornem conscientes de pertencer a um coletivo, aceitando ser representados por uma equipe em particular.

— Para os brasileiros — diz Murad — o futebol tanto é um misto de necessidades imediatas e práticas de luta como expressão da alegria e arte popular. Há uma sintonia entre o individual e o coletivo dentro e fora dos gramados. É um exemplo daqueles fenômenos complexos pelos quais o conjunto das instituições se exprime, e o todo social pode ser observado. Uma combinação de simbologias por meio das quais podemos estudar o Brasil, revelando culturas e coletividades expressivas das condições humanas. O imprevisível e a improvisação são marcantes no futebol, como a maioria das resoluções populares.

O torcedor está acuado ao sair de casa. Antes dos clássicos, como Flamengo e Vasco, no Rio de Janeiro, editorias de esportes nos jornais de grande circulação sutilmente acirram a rivalidade entre times, jogadores e torcedores promovendo uma suposta guerra. O professor Maurício destaca:

— A pior coisa gerada por essa disseminação da cultura do medo é a sensação de violência antes mesmo que ela exista de fato. É o que gera o medo, mais perigoso que a própria violência. Os canais fechados pay-per-view (pague para ver) agradecem. Essa atuação do grande monopólio cria lados perversos: atrai os que querem porrada e afasta os que preferem consumir de outra forma o futebol de uma maneira bem mais civilizada.

Segundo sua pesquisa, 78% das pessoas que deixaram de ir ao estádio relacionam a violência como neutralizadora justamente do direito (tão proclamado pelas classes dominantes) “de ir e vir”.

O fascismo clássico, de Mussolini e Hitler, utilizou enormemente o futebol, não engrandecendo propriamente o tão popular esporte, mas fazendo dele uma prática de alienação. O gerenciamento militar no Brasil, que chegou a constituir uma das mais violentas ditaduras em tempo de paz, não poupou medidas semelhantes. Chegou a fazer de alguns jogadores das seleções ocupantes de cargos de confiança. Construiu estádios por todas as unidades da federação. Instituiu a loteria esportiva, época em que, embora o jogo fosse proibido, chamava cada sorteio de “teste”. O fascismo, tradicional ou sofisticado, sempre lucrou e enrolou milhões.

Advindo o blefe da redemocratização, o “Brasil” (deles) virou até pentacampeão, expressão aplicável apenas para quem se sagrou campeão cinco vezes consecutivas, o que não foi o caso.

Com efeito, o método binário fascista do “nós contra eles” substitui, enquanto durar a contra-propaganda vigente, o verdadeiro nós brasileiros; o Brasil de verdade; a frente única contra o inimigo comum; nossa nação autêntica e amada.

Doses controladas

Já a violência é algo a ser dosado. Quando o monopólio dos meios de comunicação não havia ainda dominado todos os continentes, o imperialismo mandava juntar o clero (católico e protestante), a burocracia e os demais órgãos da repressão que faziam oscilar a contra-propaganda entre a violência (justificada se exercida pela repressão) e “a paz e o amor” (que era a obrigação do povo).

Os personagens-piloto criados pelo imperialismo (cantores de iê-iê-iê e de outras tolices importadas do imperialismo anglo-saxônico, assim como os mais diversos profissionais convertidos, como as personalidades do esporte, do cinema, principalmente das telenovelas etc.) passaram a fazer do nostálgico, da libertinagem e da exploração dos sentimentos religiosos do povo o modelo exemplar para o pobre, o comportamento sugerido ao pobre.

A violência — desde que não expressasse causa popular — era servida com fartura no cinema, acompanhada dos filmes pornográficos (a grande produção “nacional” durante a ditadura, tal como telenovelas e programas televisivos de auditório), mesmos nos cinemas mais “populares” e de propriedade da Igreja.

Naquele período — fora da condição de vítima — o acesso à violência era permitido pelo imperialismo ao pobre obviamente quando restrito as mais bisonhas cenas de ficção e cuja causa defendida não ia muito além dos problemas pessoais do personagem principal.

A cinematografia ianque, que sempre dominou de forma quase absoluta a distribuição de filmes no Brasil, idealizava situações contra as injustiças, exacerbadas pelos truques que iam muito além do que as artes marciais orientais e a motricidade humana podiam oferecer. Era a continuação dos filmes de cowboys nas décadas de 50 e 60 (e, depois, a dos heróis da história antiga, representados por fisicultores que tinham músculos no cérebro) seguindo a mesma receita, na qual as perversidades contra o herói chegavam às últimas conseqüências, com o tão esperado revide que atingia o extremo máximo da emoção da platéia.

Agora, consolidado o monopólio mundial dos meios de comunicação pelo imperialismo ianque, que declarou guerra a todos os povos, com menos cerimônia ele justifica o terror dos órgãos de repressão que (no USA e nas colônias) atuam sob a direção da CIA, do FBI etc. Os filmes e notícias tomando os componentes do terror e do pânico são produzidos e divulgados em doses “elefantídeas”.

As “organizadas”

No universo do futebol, a primeira violência que aparece através do monopólio dos meios de comunicação acusando os pobres, numa inegável reprodução da exclusão social, sem dúvida, refere-se às torcidas organizadas. Em meados de 1980, as torcidas começaram ocupar as páginas policiais da chamada “grande imprensa” e permanecem até hoje.

A violência constatada nas arquibancadas e nas imediações dos principais estádios do país retrata bem a desordem dominante nessa modalidade esportiva. Numa fase imediatamente anterior, maioria das vezes as rivalidades permaneciam no âmbito dos comentários zombeteiros. Claro que evoluíam para casos graves de agressão. Porém, não como hoje, em intensidade de massa e que se reproduzem de forma incontrolável.

Nas décadas de 40 e 50, as torcidas eram comandadas por organizações carnavalescas. Os maiores exemplos são a Uniformizada, do São Paulo e a Charanga Rubro-Negra, do Flamengo, de Jaime de Carvalho, representante de todas as torcidas na Copa de 1954.

O surgimento das torcidas organizadas, nas formas com que se apresentam hoje, acompanhou a época do gerenciamento militar. Um dos fatores determinantes para o surgimento das atuais torcidas organizadas se deu no sentido de despolitizar a juventude que se ligava aos movimentos populares, como os operários e camponeses, para acompanhar a fascistização que ascendia na época.

Muitos quadros contra-revolucionários, inclusive dirigentes de clubes, se associavam às “torcidas organizadas” ditando a ideologia das tropas de choque e das linhas de combate — uma verdadeira cruzada anticomunista — articulando eficazmente as facções criminosas, enquanto que o Estado cuidadosamente evitava intervir no núcleo criminoso. Desde então, as “organizadas” se orgulham de trucidar um torcedor adversário, ou de enfrentar (até certo ponto) a Polícia Militar. Também justificam manter o espírito esportivo, que motiva e provoca o time, mesmo nas piores fases, fazendo o estádio “vibrar”, ainda que nas noites de pequeno público.

De acordo com estudos de Murad, os indivíduos socialmente violentos constituem minoria nas torcidas organizadas. Por mais que sejam perigosos, porque armados, treinados em determinadas artes marciais que cultuam as ações repressivas, e estruturados militarmente em pelotões, tropas de choque etc., essas facções representam pouco mais de 5% das uniformizadas. Sua ligação com drogas e gangues urbanas, todavia já é um fenômeno que aproxima dos anos 90.

Incentivar e proibir

— Eles vêm de todos os níveis sociais, em especial da chamada classe média baixa — observa o professor. — Entre os truculentos, já se registram de 15% a 20% de mulheres. Quanto à escolaridade, a maioria se concentra entre a quinta série do ensino fundamental e a segunda série do ensino médio, embora haja universitários. Esses grupos brutais e minoritários correspondem a 5 % das organizadas, desde sua origem, em fins dos anos 60 e início dos anos 70. Eles assimilaram os padrões do fascismo vigente.

Ressaltando que vez por outra o vandalismo é notícia: agressividade, ideologia bélica e fascismo declarado, mapeamento e invasão de territórios, preferência por certas artes marciais, violência em rede pela Internet (atualmente em voga o Orkut), drogas, armas brancas e de fogo, Murad, um freqüentador assíduo do Maracanã pergunta:

— Fui testemunha ocular de inúmeras truculências policiais ante as confusões entre facções de clubes rivais e até de facções da mesma torcida. Que iniciativas foram tomadas desde quando a violência entre torcidas chegou às páginas policiais, na década de 1980? Tão óbvia quanto à gravidade da questão é a resposta: pouco se fez na prevenção, bem menos na reeducação.

Proibições e desconversas

Proibir as torcidas organizadas, sob a alegação de marginalidade, não parece ser o caminho, como ficou provado na experiência de São Paulo quando em 1995, após uma verdadeira batalha campal envolvendo a torcida Mancha Verde, do Palmeiras, e Independente, do São Paulo, foi proibido o acesso de uniformes com distintivos de torcidas organizadas, faixas, bandeiras e, todavia, não se conseguiu erradicá-las dos estádios.

Na realidade, a torcida é fundamental para a cultura e o espetáculo do futebol. Tanto que os principais gritos de incentivo ao jogador, antes e durante os jogos, vêm das organizadas, numa demonstração popular, que mistura coreografias a “gritos de guerra” (Não confundir com as ridículas coreografias copiadas agora nos estádios brasileiros das torcidas ianques):

— A repressão implementou iniciativas do tipo “acabar com as uniformizadas”, o que não deu resultado, claro. Penso que não adianta proibir as organizadas sob alegação (justa) de que muitas dessas torcidas se desviaram do “caminho original”, envolvendo-se com a “marginalidade urbana” — afirma Murad, que pergunta:— Se entre nós pegasse essa de acabar com as instituições que perderam o rumo, como ficariam o Congresso Nacional, a saúde e educação públicas, a Justiça (a dos ricos) e outras instâncias de uma sociedade que se pretende democrática?

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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