Concluída a entrega do mercado brasileiro de seguros e resseguros ao capital financeiro transnacional, arma-se agora o circo para dar-lhe de mão beijada, pela privatização, a previdência social. O gerente já fez seu discurso demagógico, afirmando que não há déficit, porém um erro continuado de gestão (por que não corrigiu no primeiro mandato?), e instalou um fórum nacional para apontar a solução ideal, livrando-se assim da responsabilidade da decisão solitária.
Há que saciar a fome do capital colonizador, que já não se restringe aos bancos, agora dominados pelos fundos. A característica predominante do novo regime mundial de acumulação capitalista é ser rentista e parasitário, isto é, está, de modo crescente, subordinado às necessidades próprias das novas formas de centralização do capital-dinheiro, em particular os fundos mútuos de investimento e os fundos de pensão (as características rentistas dizem respeito também ao capital produtivo). O poder, se não a própria existência, deste capital-dinheiro é sustentado pelas instituições financeiras internacionais, tais como FMI e Banco Mundial, e pelos Estados mais poderosos do planeta a qualquer que seja o custo.
Do USA para o mundo
O avanço do capital colonizador tem muito a ver com as mudanças no sistema monetário e financeiro ianque, que nos anos 30 contava com um mercado de capitais e um mercado creditício sem grandes interferências estatais, no que se refere à seletividade e o direcionamento dos recursos. Era, contudo, regulado para não seguir em direção a uma balbúrdia financeira generalizada. Sua estabilidade dependia de uma taxa de inflação controlada, para que fosse compatível com os tetos de taxas de juros e de uma expansão creditícia baseada nos depósitos à vista (não-remunerados), mas também que os investidores em ações as mantivessem em carteira, por longos períodos, evitando os movimentos especulativos que o mercado acionário tende a promover.
Assim, durante o segundo pós-guerra, o sistema bancário ianque manteve em seus balanços grande parte dos contratos financeiros. Em suas contas ativas estavam os empréstimos e nas passivas, os depósitos à vista e a prazo. As instituições não-bancárias ficavam restritas a parcelas específicas do mercado de crédito e à colocação de ações e títulos de longo prazo no mercado de capitais.
Já no período recente, houve uma modificação do papel tradicional dos bancos e um aumento da importância dos intermediários financeiros não-bancários no processo de gestão da riqueza, de criação creditícia e monitoramento dos meios de pagamento na economia americana. Consequentemente, ocorreu um avanço crescente dos mercados de capitais, à margem da ação direta do Federal Reserve e da regulamentação bancária, sendo que a dinâmica dos mercados de capitais está associada a uma intensa utilização de mecanismos que visam essencialmente ao encurtamento do prazo e a cobertura de riscos, aproximando-se cada vez mais das características de funcionamento dos mercados monetários com elevado teor especulativo.
As políticas de desregulamentação monetário-financeira e de liberalização dos fluxos de capitais, a valorização do dólar após 1979, bem como a ampliação da dívida pública nos portfólios privados, criaram as condições para o aperfeiçoamento dessas novas formas de intermediação financeira e o desenvolvimento da chamada globalização, que agora devora países como o Brasil.
Pá de cal no IRB
A sofreguidão desse sistema que se espraiou do USA para o mundo aqui atingiu seu pico em 2005, quando o gerente Luiz Inácio encaminhou ao Congresso um projeto de lei complementar para abrir aos grupos estrangeiros o mercado de resseguros (operações feitas pelas seguradoras para cobrir riscos que elas não conseguem garantir sozinhas).
Aprovado em janeiro pelo Congresso, o projeto foi convertido na Lei Complementar 126. Desde 15 de janeiro o Instituto de Resseguros do Brasil (que o gerente Cardoso transformou em empresa de capital misto — 51% estatal e 49% privado) deixa as seguradoras, notadamente as estrangeiras que aqui se estabelecem como nacionais, inteiramente livres para atuar contra a pequena economia e o povo em geral. Foi a pá de cal no monopólio do mercado de resseguros exercido pelo IRB, flexibilizando regras para a atuação de novos resseguradores no mercado brasileiro, bem como para a realização de operações de resseguro diretamente no exterior.
Investida no campo
O relator do projeto na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio da Câmara, Nelson Marquezelli aplaude principalmente a abertura do seguro rural, dizendo:
— Finalmente os agricultores vão receber visitas de empresas interessadas em fazer seguros de suas plantações. Assim, eles não precisarão mais fazer passeatas em Brasília para pedir que o governo banque os prejuízos das intempéries no meio agrícola.
A abertura do mercado de resseguros aumentará em mais de cinco vezes o volume movimentado pelo setor, favorecendo, porém, os estrangeiros. De acordo com a Federação Nacional de Empresas de Seguros Privados e de Capitalização, os prêmios pagos em contratos de resseguros chegaram a R$ 3 bilhões em 2003. Outro pretexto da gerência Luiz Inácio para a abertura do IRB é a "perspectiva de redução de até 50% nos preços finais dos seguros, por causa da concorrência maior". Observe-se que o governo é um dos maiores clientes do mercado segurador, e está mudando, exatamente agora, a Lei de Licitações, para utilização da internet e redução da quantidade de recursos admitida.
O IRB, pelo projeto, continuará existindo, mas dividirá o mercado com empresas locais, resseguradores admitidos (escritórios de representação no país de resseguradores com sede no exterior) e resseguradores eventuais que tenham sedes no exterior e que atendam aos parâmetros estabelecidos pelo órgão regulador. Além disso, será substituído como órgão controlador pela Superintendência de Seguros Privados (Susep), sendo também criada sociedade anônima — a Brasil Resseguros S.A. — destinada a atuar em caráter local.
A gerência Luiz Inácio tem pressa, como sempre, em atender o colonizador: As mudanças entrarão em vigor seis meses depois da publicação da lei, embora os especialistas entendam que o prazo mais adequado seria de um ano porque todos os contratos têm vigência anual. No mais, o principal já está mudado antes mesmo do pronunciamento do Senado, já que a medida provisória n° 126 vale como lei desde 15 de janeiro.
Antes da edição desta medida provisória, imaginava-se que, com o projeto de lei relatado por Marquezelli, a gerência Luiz Inácio tivesse concluídas as modificações no mercado de resseguros do País, iniciadas em 1995 pelo gerente antecessor Cardoso, sob a égide da Emenda Constitucional n° 13, que consumou a quebra do monopólio do IRB Brasil Resseguros, empresa ligada ao Ministério da Fazenda.
É de se recordar, ainda, que na gerência Cardoso houve uma tentativa de privatizar a estatal e abrir o mercado para empresas estrangeiras. O leilão de venda, no entanto, foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal STF. Com esse projeto de lei, foi ratificada de vez a abertura do País para resseguradoras estrangeiras.
Retrato do mercado
Existem no mundo cerca de 250 resseguradoras de grande porte. Em 2003, os prêmios pagos por elas somaram 176 bilhões de dólares, cerca de R$ 398,64 bilhões. No mesmo ano, no Brasil, os prêmios pagos em contratos de resseguro chegaram a R$ 3 bilhões, segundo a Federação Nacional das Empresas de Seguros Privados e de Capitalização — Fenaseg.
Observe-se que o governo é um dos maiores clientes de seguros, e está mudando a Lei de Licitações. Vale lembrar, a propósito, que as operações do IRB na gerência Luiz Inácio foram intensamente investigadas pela Comissão Parlamentar de Inquérito dos Correios, em 2005 e 2006, a partir de indícios de negligência na autorização de um pagamento de R$ 14 milhões à Companhia de Fiação e Tecidos Guaratinguetá, devido a um incêndio ocorrido em 2003.
O IRB assumiu praticamente todo o pagamento da indenização no lugar da seguradora Aliança da Bahia, que alegou que a apólice da Guaratinguetá já estava vencida. Para pagar a indenização, lembrou o deputado, a direção do IRB aceitou uma apólice assinada com data retroativa e fez um acordo com a Aliança da Bahia que contrariou pareceres de especialistas. Com o dinheiro de quem?
Desnacionalização: Previdência
Sempre a pretexto de prover cobertura ao déficit, a Previdência Social tem servido de pretexto a sucessivas "emendas à Constituição". Os primeiros passos para a privatização foram dados pelo gerente Cardoso, com a PEC nº 33 de 1995, numa tentativa ilegítima e injustificada de supressão de direitos, com vistas a, por um lado, contribuir para o ajuste das contas públicas — reduzindo a despesa com benefícios previdenciários — e, por outro, gerar condições para o desenvolvimento de um mercado privado de previdência social. Essa situação foi responsável pela lenta tramitação da PEC nº 33/95, a qual somente logrou sua aprovação definitiva depois de 45 meses.
Em 1998, a Emenda Constitucional nº 20 estabeleceu a fragilização do conceito de seguridade social amparado no art. 194 da Carta Constitucional, notadamente pela supressão do chamado "pacto entre gerações" e do "princípio da solidariedade", segundo os quais os benefícios presentes e futuros dos trabalhadores são custeados pelas contribuições passadas, presentes e futuras de toda a sociedade. Assim, há longo tempo a tese de equilibrar a receita e a despesa previdenciária por meio da redução dos benefícios vem sendo implementada, em muitos casos ao arrepio da Constituição.
Receituário alienígena
Esta foi a política previdenciária da gerência Cardoso, evidentemente seguindo diretrizes pregadas pelo Banco Mundial e pelo FMI, segundo as quais os sistemas de previdência pública sob regime de repartição simples devem ser substituídos por um sistema de previdência construído sobre três pilares: uma previdência pública básica, com valores de benefício reduzidos (cerca de R$ 500 mensais); um sistema de previdência complementar privado, fechado e facultativo, que cubra benefícios até uma faixa em torno de R$ 2.000; e um sistema de previdência complementar, aberto, de capitalização individual, para benefícios acima desse limite. Um maná para bancos e seguradoras nacionais e estrangeiros.
O gerente Cardoso assumiu com o sistema financeiro internacional o compromisso de estabelecer condições para que a previdência privada movimentasse no Brasil mais de 200 bilhões de reais em menos de cinco anos. Mas, segundo a empresa de consultoria BDO Directa, até o ano 2.010 esse mercado deverá atingir mais de R$ 500 bilhões. Para isso, é fundamental sucatear a previdência pública e gerar mercado para a previdência privada, achatando os benefícios, dificultando a aquisição de direitos e levando os trabalhadores de maior renda, os profissionais liberais e os servidores públicos a buscarem nas seguradoras privadas o que a previdência pública e os fundos de pensão fechados não mais poderão assegurar: segurança e nível de renda compatível com a da atividade. É a intensificação da concorrência que apregoa, agora, a gerência FMI-PT.
Na verdade, a Previdência não enfrenta graves problemas ou distorções provocadas pela sua estrutura de benefícios ou custeio. Mesmo com muita sonegação, tantos desvios e todas as fraudes a Seguridade Social ainda arrecada mais do que gasta, o que desmonta os argumentos dos defensores da Reforma quando afirmam que as novas medidas visam cobrir o "rombo" da Previdência.
As sucessivas gerências se propõem, no entanto, a resolver o quadro de dificuldades cir cunstanciais criadas, no mais das vezes, por elas mesmas, por meio da redução do universo de beneficiários e, principalmente, por meio da exclusão ou restrição ao exercício de direitos.
Reduzir o número de beneficiários, tornar mais difícil ao cidadão obter sua aposentadoria tem sido a fórmula preferida dos gerentes, de Fernando Collor a Luiz Inácio. Na verdade, a única utilidade das "reformas" até hoje promovidas tem sido "asfaltar" o caminho por onde os grandes grupos econômicos seguirão para explorar comercialmente esse inesgotável filão e fonte de lucro que são os serviços previdenciários. E, para que esse setor possa apropriar-se do enorme potencial de lucro, impõe-se a redução dos benefícios da previdência social pública, a retirada de direitos pela desconstitucionalização e a ausência do Estado numa de suas funções mais essenciais: assegurar ao trabalhador condições dignas de sobrevivência, ao final de uma longa vida de trabalho, ou nas situações de infortúnio ou incapacidade de manter a sua capacidade laboral.
A gerência FMI-PT, para continuar atendendo às exigências do capital financeiro transnacional, precisa mobilizar, mais uma vez, a opinião pública. Nada melhor do que inventar um novo fórum de debates e induzir os que dele participam a apresentar as propostas que na verdade interessam tão só ao colonizador. E para tanto já vai dizendo que a Previdência "sofreu grande aumento de gastos ao longo desses anos todos, sendo talvez o gasto que mais cresceu, não é só no Brasil como no mundo, mas a partir de 2007 e de medidas que já foram tomadas, resultando em aumento da arrecadação e "estabilização da situação".