O monstro precisa se alimentar. O desenvolvimentismo brasileiro não se detém. A burguesia exige mais e mais. Seus sócios transnacionais também. O reeleito Luiz Inácio concede.
Há duas novas mega represas na lista de espera dos grandes negócios que servirão para saciar a voracidade das empresas. E pagar dívidas não esclarecidas. Se chamam Santo Antônio e Jirau***. Juntas, terão uma capacidade instalada de 6.450 MW, quatro vezes mais que toda a demanda energética atual da Bolívia. Desta vez, o rio sacrificado no altar do mercado é o Madeira, limite natural entre as duas repúblicas sul-americanas. Com suas águas represadas, também se sacrificará o Norte Amazônico boliviano.
Novamente o erro das mega-represas: a trágica experiência de Balbina não serviu para nada1. A de Tucuruí tampouco. As vítimas dessa última tomaram a usina em 23 de maio. Porém, no dia 24, Luiz Inácio mandou o exército desalojá-los2. Eles cobram indenização por terem sido expulsos à força quando o ditador Figueiredo inaugurou a represa em 1984. Prometeram pagar, mas nunca cumpriram. São cerca de 30 mil pessoas, a metade dos habitantes do departamento boliviano de Pando — muitos dos quais terão que ser removidos se as represas forem construídas.
Ironias do “progresso”: até hoje removidos de Tucuruí vivem sem energia elétrica, enquanto a usina produz 8.370 MW destinados ao consórcio mineiro-industrial Cia Vale do Rio Doce, privatizado em 1997, a segunda maior empresa exportadora do Brasil, atrás apenas da Petrobrás3. A história se repete como farsa.
Mega projetos e miséria
São realidades que devemos conhecer: A Vale do Rio Doce explora a serra dos Carajás, uma das maiores jazidas de ferro, bauxita e manganês do mundo. No núcleo Carajás vivem os funcionários da empresa, “um verdadeiro enclave de primeiro mundo no meio da Amazônia” como denunciam os próprios brasileiros e inclusive o New York Times4.
Guardas de segurança custodiam o feudo onde vivem 5 mil pessoas, em 1.274 casas sem muros, seguindo o mesmo padrão arquitetônico dos subúrbios das cidades norte-americanas. No interior há cinemas, clubes esportivos e refinados restaurantes. Qualquer semelhança com as vilas mineiras do magnata do estanho Patiño descrito por Augusto Céspedes em O metal do diabo não é mera casualidade: é a mesma coisa. Fora, sobrevivem como podem cerca de 140 mil pessoas (chegam 50 novas famílias por semana) sonhando conseguir um trabalho na companhia.
Mega-represas, mega-complexos mineiro-industriais, zonas-francas: Antes tudo era selva, hoje são um baluarte do “capitalismo selvagem”.
As represas do Madeira, abastecendo de energia os estados de Rondônia (onde seriam construídas as usinas) e Mato Grosso, servirão para sustentar o definitivo holocausto para as florestas da região, que tem intensificado o cultivo da soja, agora somada à expectativa de ganhos milionários gerados pela produção de biocombustíveis.
Os cientistas calculam que no atual ritmo de desflorestamento (ou seja, sem biodiesel), em duas décadas 60% da selva amazônica brasileira (6 milhões de km²) se degradará irreversivelmente. Entre 2000 e 2005, o Brasil perdeu 130 mil km² de selva (superfície equivalente ao departamento de La Paz).
O caminho já está marcado:
é a aliança de luta e resistência em marcha
com os setores sociais brasileiros da região
Blairo Maggi, “o rei da soja”, o maior produtor de soja do planeta é o governador do estado de Mato Grosso. Depredação da natureza, perseguição, etnocídio e genocídio dos povos indígenas, poder econômico e poder político andam de mãos dadas.
Se não for a soja, serão as vacas: o Brasil é o maior exportador de carne bovina do planeta. Os bovinos introduzidos na Amazônia são a matéria-prima dos hambúrgueres vendidos no Mc Donald’s. Chico Mendes**** — o seringueiro cuja luta em defesa da floresta popularizou a ecologia no mundo — foi assassinado em 1988 por se opor ao crescimento das fazendas de gado.
Em 2005 uma monja de 73 anos, nascida e criada em Ohio, USA, foi baleada por dois pistoleiros quando tentava impedir que o desflorestamento continuasse. Seu nome era Dorothy Stang, uma das quase 800 vítimas dos conflitos agrários no Pará, desde que se instaurou a democracia no Brasil.
A guerra não aparece na primeira página dos jornais e a febre de destruição do planeta parece não cessar: em 9 de julho, o instituto Brasileiro do Meio Ambiente — Ibama concedeu a licença ambiental prévia para a construção das duas represas no Madeira, com 33 “condições”.
Ao saber da notícia, o ex-operário metalúrgico Luiz Inácio exclamou que “estava feliz” por ter conseguido a permissão que Marina Silva — ex-seringueira criada na sombra do malogrado Chico, agora ministra do meio ambiente — qualificou como “consistente”, para justificar a demora em ser outorgada, segundo a agência AFP.
Tudo um show, com cheiro de metano. Luiz Inácio não teve vergonha para explicar sua inexplicável felicidade: “sempre haverão demoras quando se quiser respeitar o meio ambiente ou estar de acordo com a lei”. O movimento social brasileiro suspeita que uma licença assim está cheia de acordos e precariza os direitos da população e seu meio ambiente. Sem falar das comunidades bolivianas…
Na encruzilhada
E nós, o que temos a ver com as represas em questão, com toda essa história negra? O pior: os danos e as injustiças trazidos junto com a construção das represas seriam sofridos na Bolívia também, dado o caráter internacional do rio e a magnitude das obras.
O conjunto dos movimentos sociais do Norte Amazônico boliviano em unidade com os movimentos sociais do outro lado do rio, já se manifestou contra a intenção do governante brasileiro. A declaração é contundente: não passarão sobre o povo do Madeira5.
As represas de Luiz Inácio são um desafio para o governo boliviano encabeçado por Evo Morales Ayma, o primeiro indígena a assumir a primeira magistratura do país. Até agora, através de seu chanceler, David Choquehuanca, manteve uma posição cautelosa em relação a seu colossal vizinho, uma das cinco potências industriais do mundo: não haverá consentimento boliviano para o início das obras sem a realização de estudos de impacto ambiental na própria Bolívia. Mas os motivos de Luiz Inácio para não respeitar as decisões soberanas da Bolívia — o país mais pobre e vulnerável da América do Sul, já são conhecidos6. Basta ver as negociações pelo preço do gás.
Por isso, é necessário que a sociedade e a opinião pública bolivianas tomem consciência da gravidade do assunto e se pronunciem de maneira solidária com as organizações amazônicas, considerando as intenções proclamadas por Evo e outras autoridades de seu governo de impulsionar um desenvolvimento não destrutivo da Amazônia boliviana, uma das regiões com maior biodiversidade do mundo.
As represas do Madeira seriam o princípio do fim dessas intenções. Por isso, o governo deveria se pronunciar sem rodeios contra a construção desses engendros condenados pela história e tem o imperativo moral de defender os recursos naturais e a justiça social.
Por outro lado, o futuro que nos apresentam as represas do Madeira e o modelo de desenvolvimento que representam e sustentam já são conhecidos. Há anos o modelo de cultivo da soja faz estragos no Oriente do país, onde também os povos indígenas são atacados e ofendidos7.
A Amazônia boliviana segue sã. Apesar das tentativas irracionais de empresários brasileiros associados ao poder político local — como no caso do atual prefeito direitista Leopoldo Fernández, que governa o departamento de Pando, de convertê-la em um campo artificial de pastoreio de gado — o Norte Amazônico da Bolívia tem resistido aos embates com os depredadores. Todavia, é um território onde é possível planificar e implementar uma estratégia de desenvolvimento diferente. Mas, se a batalha do Madeira for perdida, ficará pouco espaço para sonhar. A Amazônia boliviana será mais um apêndice do modelo exportador de matérias-primas do Centro-oeste brasileiro e as conseqüências sociais, ambientais e culturais serão imprevisíveis.
Pela mudança climática, o mundo teria muito que dizer nesta encruzilhada histórica. Mas o mundo — sabemos disso — está dominado pelos mesmos interesses e visão que impulsionam a construção das represas. Por trás dessas muralhas que pretendem cortar o rio estão os bancos multilaterais e os governos extra-continentais que fazem negócios com a biodiversidade amazônica — ou a carne, ou a soja, dá no mesmo.
Para quem escreve, o dilema será resolvido pelo próprio povo amazônico boliviano, que depois de cinco séculos de genocídio e exploração está mais maduro que nunca para enfrentar essa ameaça a seu presente ao seu futuro. O caminho já está marcado: é a aliança de luta e resistência em marcha com os setores sociais brasileiros da região. Daqui, fazemos nossa a consigna de que “não passarão sobre o povo do Madeira” e nos solidarizamos com os companheiros da Federação Camponesa e a Federação de Mulheres Camponesas do Departamento de Pando que impulsionam e conduzem esta cruzada histórica em defesa da natureza e dos povos da selva que sempre conviveram em respeito e harmonia com a floresta.
Notas do autor:
1 “Balbina é um monumento à incompetência técnica e administrativa e, desde o ponto de vista sócio-ambiental, esta obra não resiste a nenhuma crítica. É um absurdo, simplesmente. Para uma potência instalada de 250 MW (nunca alcançada) provocou-se o alagamento de cerca de 2.346 km² , talvez o maior índice mundial de terras alagadas por mega watt produzido”. En: Silvio Coelho dos Santos, Represas e questões sócio-ambientais no Brasil, Alteridades, 1992, 2 (4): págs 31-37, tomado da Internet. Coelho dos Santos era presidente da Associação Brasileira de Antropologia. Balbina foi construída entre 1981 e 1988, a 140 km de Manaus, para abastecer a zona franca e industrial da cidade, que alguns bolivianos seguem considerando como um “modelo de desenvolvimento amazônico”. A instalação de Balbina obrigou a remoção de duas aldeias Waimiri-Atroari e chegou a áreas trânsito e uso dos sub-grupos isolados Piriutiti y Tiquirié e, talvez, dos Karafawyana. A obra, além de não resolver o aprovisionamento energético para Manaus, ainda tem que ser constantemente reparada, já que as turbinas enferrujam, resultado da má qualidade das águas, efeito da inundação de extensas áreas florestais. 2 Ver: Brasil: O exército assalta Tucuruí. Lula ordena aos soldados acabar com os protestos camponeses na grande central hidrelétrica. 25/05/2007. En: http://pepitorias.blogspot.com/2007/05/brasilel-ejrcito-asalta-tucuru.html e muitos outros sítios na Internet. 3 Vale do Rio Doce, empresa de economia mista fundada pelo presidente nacionalista Getúlio Vargas em 1942 e privatizada em 1997 pelo ex-“marxista” Fernando Henrique Cardoso. Em 2006, a CVRD comprou a mineradora Inco, do Canadá, por cerca de US$ 20 bilhões, convertendo-se na segunda maior empresa mineradora do mundo. Ver: Vale compra Inco e vira segunda maior mineradora do mundo, em Folha de São Paulo on line, 24/10/2006 www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u111871.shtml. 4 Ver: Parauapebas: entre o céu e o inferno, 2/01/2007. En: www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=831. Ver: Larry Rohter: Tucurui Journal. Drowned, Not Downed, Trees in the Amazon Get Nasty, New York Times, 7 de setembro de 2004, en: www.nytimes.com/2004/09/07/international/americas/07amazon.html 5 Para ler a Declaração do movimento social em defesa da bacia do Madeira e da região amazônica, publicada em Porto Velho, em 5 de março de 2007, ver em www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=ES&cod=26807.É um texto notável que, por sua clareza e dureza, explora uma vertente pouco considerada dentro do imaginário amazônico democrático boliviano.6 Itaipú, a maior represa do mundo, é um empreendimento binacional entre o Brasil e o Paraguai. As consequências negativas que trouxe consigo, até o presente, para o sócio menor, deveriam ser levadas em conta pela Bolívia.
7 Basta ver a última denúncia feita pelo governo contra o presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, por apropriação ilegal da Lagoa Coração, território ancestral e mítico do povo Guarayo que habita na Chiquitanía boliviana.
Notas de AND
* Publicado em elDiario Internacional, n° 250, de Luis Arce Borja, um órgão da imprensa de novo tipo, editado em Bruxelas.
** As críticas bolivianas contra o projeto emanam, principalmente, do Fórum Boliviano sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento — Fobomade — representado pelo articulista.
*** A represa de Jirau se localizará a apenas 84 quilômetros do Departamento de Pando, na Bolívia, e terá um reservatório de 258 km², enquanto que a de Santo Antônio, ficará a 190 quilômetros, com reservatório previsto de 271 km². Mesmo que o relevo proteja o Departamento de Pando, é visível o grande impacto que chegará, ao menos, à fronteira Brasil/ Bolívia.
**** Francisco Alves Mendes Filho, Chico Mendes foi cooptado pelas ONGs ambientalistas. A referência com que o notabilizaram é a de sindicalista acreano, quando de fato o arrastaram para a condição de agente ambientalista. Chico Mendes não lutava pela posse da terra, mas pela “conservação da selva amazônica”. Sem expropriar os latifundiários, a linha utilizada pelas ONGs era a de fazer “empates”, arrebanhando voluntários que se postavam nos locais que seriam desmatados por grandes queimadas, outras vezes denunciando essa prática no USA — no senado ianque, no Banco Mundial etc.. Dirigente do Conselho Nacional dos Seringueiros, Chico foi covardemente usado para defender o projeto de reservas extrativistas, uma falsa reforma agrária que dizia defender índios e seringueiros, pelo qual foi premiado no USA e na ONU. Ele foi assassinado em Xapuri — AC, aos 44 anos, no quintal de sua casa, numa emboscada armada por um jagunço (com “fazenda montada”) e seu filho, em dezembro de 1988. Na residência de Chico estavam ainda sua mulher e dois filhos pequenos, além de dois seguranças… Os projetos ambientalistas se desmascaram de vez com o aluguel das reservas estratégicas na Amazônia, enquanto muitos ongueiros continuam ganhando dinheiro com o nome de Chico, na Amazônia brasileira, em todo o Brasil e no exterior.