Quem tem menos de 50 anos provavelmente não ouviu falar de Luiz Vieira, a menos que ouça Minha terra, nossa gente (Rádio Carioca AM, 710 kHz/RJ). Levado ao ar de segunda a sábado, das 6h à 8h da manhã, o programa tem como marca restituir parte da nossa cultura musical, trazendo de novo a voz de alguns nomes que fizeram história. Figuras que são muitas vezes deixadas de lado, por conta da amnésia promovida pelos que dominam os meios de comunicação atualmente.
Foi na Rádio Carioca, depois de mais um programa, que Luiz Vieira nos concedeu esta entrevista. Além de contar um pouco mais sobre o seu Minha terra, nossa gente, ele falou de sua vida, do espetáculo em que apresenta estrelas de várias épocas, do rádio de hoje e de ontem e da importância de recorrer às melhores páginas de nossa música popular.
Um historiador informal
Em duas horas diárias de programa, Luiz Vieira presta um tributo aos intérpretes e compositores do país. Desta forma, acaba desempenhando o papel de um historiador informal da música popular — mais do que tarimbado, já que também foi ator dessa trama. É uma atividade que ainda mexe com o experiente artista: “Minha mulher tem que ficar tomando conta de mim, com um remedinho do lado, porque, às vezes, eu fico muito emocionado. Convivi com muitos deles. Quando você começa a falar de coisas que viveu, fica sensibilizado.”
O radialista promete informação e formação cultural para quem sintonizar seu programa nas primeiras horas da manhã. Além de música, o Minha terra, nossa gente traz notícias, causos, curiosidades… Tudo num clima desprovido de vaidades. Alguns quadros têm vinhetas que lembram a época áurea do rádio (a do boletim de notícias é um exemplo).
Mais que exibir a música, Vieira procura contextualizar os autores e as canções apresentadas. “Informamos a data em que a composição foi gravada e fornecemos outros dados. Temos um acervo bastante rico, o que facilita essa coisa. Já tocamos gravações de 1919, da década de 30… coisas do início do rádio no país. Os registros às vezes são ruins, mas, quando você apresenta isso como forma documental, as pessoas digerem facilmente. Temos músicas antigas do Almirante1 quando começou a gravar”, diz.
No roteiro, sempre o destaque a um artista ilustre: “Temos um quadro que se chama ‘Gente que brilha’. Ele foi criado originalmente por Paulo Roberto2, uma das presenças mais luminosas que o rádio já teve. Nós fazemos de um modo diferente, apresentando um aniversariante do dia. Hoje (22 de dezembro) estamos com Altamiro Carrilho3. Ontem foi a vez do Velha, falecido autor da Portela. Também focamos os compositores e cantores atuais. Porém, reservamos um espaço maior para os mais antigos, inclusive porque cerca de 90% de nossa platéia tem mais de 50 anos.” Ou bem mais do que isso, não é mesmo Luiz? “Tenho um ouvinte de 102 anos em Niterói”, garante ele.
Seu programa totaliza vinte e três anos no ar: quatorze deles na Rádio Nacional; oito na Rádio Rio de Janeiro; e um na atual casa, a Rádio Carioca. Nesse período, uma filosofia: reviver. “A proposta é exatamente recordar as canções e os artistas; alguns que já se foram e outros que estão aí, alijados, abandonados”, conta. “Nosso programa há muito tempo faz esse tipo de restituição, porque entendemos que não há ninguém fazendo. Embora com raríssimas exceções, o Rádio hoje parece que se esqueceu das pessoas com mais de 60 anos.”
Ainda que a tarefa pareça titânica, Vieira se anima com alguns fatos. “Não quero ser pretensioso, mas acho que temos colaborado para o estímulo desses novos eventos com pessoas da velha guarda. Isso tem se registrado através de vários projetos.” Ele continua: “Alguns outros ‘loucos’ como nós andam fazendo programas nesse estilo. Cito os exemplos do Gerdau dos Santos, na Nacional (AM 1130 kHz), e ainda o de José Tuva, um velho radialista que está no Guiness Book (livro dos recordes) como o mais antigo programa de rádio no ar. É uma coisa boa porque os artistas estão aí; muitos estão vivos. Costumo dizer que os artistas antigos não perderam seus admiradores; seus admiradores é que perderam seus endereços: não os vêem em lugar nenhum, tocando e cantando.”
O retorno parece recompensador: “Estamos tão bem que não queremos nem falar para não afugentar a sorte (risos). Os ouvintes são fiéis e me acompanham. Estava na Nacional e fui para a Rio de Janeiro. Os ouvintes foram junto, elevando audiência da rádio. Agora, aqui na Carioca, não foi diferente.”
O desfilar das páginas
Luiz Vieira ainda capitaneia um projeto chamado Revivalda, no qual reúne — bem no estilo dos programas de auditório da Era do Rádio —artistas de ontem e de hoje, numa celebração à função social e cultural do Rádio. “Há quinze ou vinte dias (início de dezembro), fizemos o último espetáculo do ano no teatro do Liceu de Artes e Ofícios (Centro do Rio). Estiveram presentes artistas como Carlos José, Jorge Goulart e Carmélia Alves4, a rainha do baião”, recorda.
“Homenageamos o grande intérprete Jorge Goulart, que perdeu a voz após um câncer. Foi emocionante quando pedimos para o público cantar para ele. Quando ele entrou, todos cantaram.” Nesse momento, os olhos de Luiz são tomados por tímidas lágrimas que não chegam a cair. Para segurá-las, uma justificada pausa: “Rapaz, não posso nem falar que dá vontade é de chorar.” “Já fizemos três noites com o (teatro) João Caetano lotado”, orgulha-se o mestre de cerimônias da festa. “Até gente acostumada a platéias internacionais me disse que nunca viu um público tão quente. Nesse último evento, todos os convidados se sentiram muito felizes. Carlos José, um seresteiro, revelou o que significa lembrar as nossas coisas, a nossa gente e a nossa música.”
Tanto sucesso deve-se, em boa parte, ao público que Luiz Vieira cultiva no seu programa. “Sempre digo para os ouvintes que não existe cachê maior do que ouvir a platéia cantando junto. Não houve divulgação para o espetá-culo. Disse para os ouvintes que não queria nota de jornal. Queria era sondar a audiência a partir do show, sondar se estavam prestigiando a música brasileira.” Para 2004, o plano é levar o projeto aos teatros de São Paulo.
A obra suplanta o autor
Usando um daqueles batidos clichês, poderíamos dizer que, no caso de Luiz Vieira, a obra suplantou o autor em diversos momentos. Podemos ter ouvido suas músicas sem nos darmos conta disso, pois dezenas de intérpretes já cantaram seus versos: Lúcio Alves5 (Menino de Braçanã); Carmélia Alves (Forró do tio Augusto e outras); Caetano Veloso (Na asa do vento); Zizi Possi (de novo Menino de Braçanã); Fagner (Paz do meu amor); Sérgio Reis (Cantiga para ribeirão); Maria Bethânia (Estrela miúda); Elba Ramalho (também com Estrela miúda)… e segue a lista. “Como compositor, sou autor de mais de 500 músicas.”
Sobre a desinformação crônica das novas gerações, ele tem a seguinte opinião: “O jovem, em geral, não é culpado. Culpados são nossos disc jóqueis que não tocam música brasileira. Acho que há espaço para todos. Poderiam, ao menos, tocar as músicas comerciais e separar um espaço para as brasileiras, que é para historiar.”
Luiz Vieira nasceu em Caruaru (PE), em 1928. Foi criado pelo avô em Alcântara, distrito de São Gonçalo, Rio de Janeiro. Desde cedo buscou um espaço nas emissoras, grande celeiro de artistas nas décadas de 40 e 50. Uma greve de cantores num programa foi a oportunidade para ele entrar no mundo do rádio. De reserva a titular, também na noite carioca: no Cabaré Novo México, na Lapa, faltou o cantor principal; Luiz, na hora e lugar certos, assumiu o posto. Lá pelos anos 40/50 circulou pelas casas de espetáculo e participou de produções nas estações radiofônicas e na recém inaugurada televisão. Seu primeiro sucesso foi Menino de Braçanã, de 1953, em parceria com Arnaldo Passos. Algumas outras canções: Estrada de Columbandê, Prelúdio para ninar gente grande (sucesso de 1963), Guarânia da lua nova, etc.
Em muitas de suas composições, um traço de regionalismo, com destaque para a incorporação da fala do povo. Um exemplo é Na asa do vento em parceia com João do Vale/ (veja quadro).
“Na época não fazíamos música para ganhar dinheiro apenas; fazíamos com o prazer de ouvi-las no rádio. Hoje, os compositores são fabricados para fazer circular muita grana. Com cinco anos de sucesso, o cara já compra três BMWs! Nenhum dos compositores de minha época ganhava tanto como hoje. Mas os frutos que os jovens colhem hoje foram plantados por antigos como Pixinguinha, Ataulfo Alves6”, analisa Vieira.
Rádio, política e valorização
Sobre o rádio atualmente, ele diz: “Passou a se tornar mais noticioso do que cultural, embora tenha sido criado para levar cultura para o povo. Passou a ser informativo, noticioso ou demagógico, promovendo caridades… para alguns radialistas virarem deputados (risos). O viés informativo é até positivo, mas culturalmente o rádio acabou”. E sobre o entreguismo ideológico da maioria das emissoras? “De forma lastimável o rádio se abre à cultura norte-americana. Falo disso e me lembro de meu avô, que dizia que beber na garrafa era falta de educação. Um dia vi, num anúncio da Coca-Cola, um sujeito bebendo no gargalo. Falei com meu avô e ele disse: ‘Isso não é gente da gente; não é cultura nossa’.”
Vale lembrar, todavia, que a invasão cultural imperialista (principalmente ianque) começa sua história bem antes — ainda que hoje atinja graus sem precedentes. De acordo com José Ramos Tinhorão, um dos maiores pesquisadores da música brasileira, desde princípios do século XX, com o desenvolvimento da tecnologia da gravação, uma onda de “americanização” vem se desenvolvendo no campo musical. Já depois da Primeira Guerra (1914-18), o país fora invadido por estilos como o fox-trot, o one-step e o ragtime, e a partir de 1923 multiplicaram-se os adeptos do jazz. No período em que Luiz Vieira conheceu o sucesso (décadas de 40 e 50), os ecos da chamada “política da boa vizinhança” (1933-1945) tinham uma força enorme. Os modelos culturais e o estilo de vida ianque seduziam grande parte da burguesia, prontamente arrebanhada pelo servilismo dos meios de comunicação — jornais, cinema, televisão e o próprio rádio7.
Com tanta subserviência, haveria possibilidade de, hoje em dia, contar com o poder público para valorizar a música popular e seus verdadeiros artistas? “Isso é negócio que amedronta os políticos. E o político é como pé de juazeiro: não dá nem encosto (risos). Querem é fazer coisas demagógicas”, resume Luiz Vieira.
Bom que o mundo não é feito só de políticos: “Uma menina de uns 20 anos, neta de uma ouvinte, estava assistindo ao programa hoje, aqui no estúdio. Ela foi levar a avó para assistir ao show no Liceu de Artes e Ofícios. Ficou encantada e disse que não perde mais. Ficou apaixonada pelo jeito que a gente faz o programa.”
1 Almirante (Henrique Foréis Domingues — 1908-1980): cantor, compositor, pesquisador e radialista nascido no Rio de Janeiro. Em 1928 foi cantor e pandeirista do grupo Flor do Tempo, depois transformado no Bando de Tangarás. Estreou no rádio em 1938. Em 1965, seu arquivo sobre música brasileira foi incorporado ao Museu da Imagem e do Som (MIS), no Rio de Janeiro. Morreu aos 72 anos devido a um aneurisma cerebral.
2 Produtor da Rádio Nacional. Entre seus programas de maior repercussão estão “Gente que brilha”, “Lira de Xopotó”, “Honra ao mérito”, “Obrigado doutor” e “Nada além de dois minutos”.
3 Altamiro Carrilho: compositor e flautista nascido em Santo Antônio de Pádua (RJ), em 1924. Ainda na ativa, completou, há pouco, 60 anos de carreira. Formou seu primeiro grupo em 1950. Compôs na época o famoso maxixe “Rio antigo”. Atualmente faz apresentações com seu conjunto de choro por diversas cidades brasileiras.
4 Carlos José: paulistano, nascido em 1934, veio para o Rio de Janeiro na infância e começou cedo a tocar violão. Gravou mais de 25 discos. Nos anos 90 lançou CDs com regravações de seus maiores sucessos, como “Cabecinha no ombro” (Paulo Borges), “Naquela mesa” (Sergio Bittencourt), “Olhos nos olhos” (Chico Buarque) e “Guarânia da saudade” (Luiz Vieira). Jorge Goulart: carioca, nasceu em 1926. Iniciou sua carreira cantando em casas noturnas do Rio de Janeiro. Participava de programas na Rádio Tupi e em 1945 lançou seu primeiro 78 rpm. O primeiro sucesso foi “Xangô”, de Ary Barroso e Fernando Lobo. Carmélia Alves: carioca, filha de pais nordestinos, nascida em 1923, iniciou a carreira de cantora em programas radiofônicos de calouros, e conseguiu um contrato na Rádio Nacional em 1940. Seu repertório era composto basicamente de sambas.
5 Lúcio Alves (1927-1993): mineiro de Cataguases, filho de um maestro de banda, começou a tocar violão na infância. Mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro, onde começou a participar de programas de rádio. Nos anos 40 criou o grupo Namorados da Lua. 6Pixinguinha (1898-1973): considerado um dos grandes da música popular brasileira e mundial. Compositor, arranjador e instrumentista, deixou músicas de enorme sucesso, entre elas “Carinhoso”, em parceria com João de Barro.
6 Ataulfo Alves (1909-1969): mineiro, veio para o Rio por acaso, onde trabalhou, entre outras coisas, como farmacêutico. No fim dos anos 20 passou a se envolver com blocos de carnaval e artistas de rádio. Teve sambas gravados por Almirante (“Sexta-feira”) e Carmen Miranda (“Tempo perdido”).
7 Os exemplos são quase infinitos, mas é interessante citar também a invasão de marcas e produtos que passaram a fazer parte do dia-a-dia do brasileiro a partir dos anos 40: eletrodomésticos GE, filmes da Eastman Kodak, sabonetes Lever (“nove entre dez estrelas do cinema usam”), canetas Reynolds Pen (cuja propaganda, na década de 40, estampava: “Eis a mais assombrosa mágica do Tio Sam!”).
Na asa do vento
Luiz Vieira e João do Vale
Deu meia noite, a lua faz um claro
eu assubo nos aro
vou brincá no vento leste.
A aranha tece
puxando o fio da teia,
a ciência da abêia,
da aranha e a minha,
muita gente desconhece,
muita gente desconhece,
ô lá lá, viu?
Muita gente desconhece.
A Lua é clara, o sol tem rastro vermelho
é o mar um grande espelho
donde os dois vêm se mirá
Rosa amarela, quando murcha perde o cheiro
o amor é bandoleiro, pode inté custar dinheiro
é fulô que não tem cheiro
e todo mundo qué cheirá,
todo mundo qué cheira,
ô lá lá, viu, todo mundo qué cheirá.