Macartismo e criminalização do protesto na América do Sul

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Macartismo e criminalização do protesto na América do Sul

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Professores peruanos, da Universidade Pública de El Salto, que estavam refugiados na Bolívia foram deportados

O mau cheiro de um ambiente de maior repressão pode ser sentido claramente no mundo, obviamente em alguns países mais do que em outros. Trata-se de uma corrente macartista*, perseguidora do pensamento crítico, baseada em eixos comuns que se alojam nas “tradições” repressivas de cada uma das realidades onde são aplicadas, por mais que alguns governos se cataloguem de esquerda ou não. Em síntese, uma cartilha comum: uma política generalizada de medo, com distintas interpretações que se adaptam a cada cenário.

No espaço limitado de um artigo, tentaremos detalhar, no que for possível, a forma como vêm sendo elaboradas e empregadas depuradas metodologias e tecnologias do medo em alguns países da América do Sul.

Direito Penal do Inimigo**

As leis penais e seus aplicadores, o que engloba as polícias, magistrados e jornalistas que abarrotam as imediações das cadeias e os corredores das sedes do Poder Judiciário, se deram a tarefa de desprestigiar a imagem de pessoas críticas ao sistema, defensores dos recursos naturais e demais direitos do povo. A intenção é apresentá-los como pessoas perigosas, equiparando-os a ladrões e assassinos comuns.

Não é novidade que o direito seja utilizado como espada para atacar o protesto. A questão é que esse fenômeno é cada vez mais notório e descarado na América do Sul. A pretensão é mostrar os lutadores populares não como cidadãos, mas como inimigos, como pessoas perigosas a quem se deve reprimir, inclusive fabricando delitos para desprestigiá-los frente ao povo e, além disso, também lhes são negados os direitos fundamentais que as leis de cada um dos países estabelecem, através do emprego de leis penais de regimes de exceção.

Uma parte desse Direito Penal do Inimigo é a criação de figuras supercriminalizadoras. Dentre elas se destaca como recorrente o delito de pertencer a uma organização ilegal ou terrorista. Trata-se de uma figura que não se baseia em fatos, mas na suposta participação em também supostas organizações criminosas, ou seja, penaliza a condição de membro de uma organização cuja existência não se pode mostrar com clareza e deixa a decisão por conta da imaginação dos magistrados, sem a necessidade de que os supostos membros tenham cometido ações criminosas, nem ao menos tentado ou cometido atos que facilitem um futuro delito.

São, portanto, tipos penais abertos que na prática são aplicados ao livre gosto dos magistrados dóceis e que, em geral, atuam sob pressão do Poder Executivo, sempre acompanhados de muito barulho de alguns meios de comunicação, que na prática se converteram em veículos não informativos destes processos repressivos.

Casos de repressão na América do Sul

Em AND, sempre estamos informando alguns acontecimentos na Bolívia, Peru e Equador que se enquadram dentro da aplicação da doutrina do Direito Penal do Inimigo.

Um exemplo disso foi a prisão de professores na Bolívia, em agosto de 2011, que se dedicavam a dar aulas de reforço de matemática, física e química a estudantes da Universidade Pública de El Alto (UPEA). Chamaram-lhes de subversivos, desprestigiaram-lhes diante dos meios de comunicação de toda a Bolívia, utilizando provas ridículas como panfletos soltos, muitos deles arrancados de paredes das casas vizinhas ao instituto onde trabalhavam e depois lhes foram atribuídos. Também não foram encontradas armas, explosivos, nem planos de futuros ataques que pudessem sustentar semelhante acusação. 

Este abuso flagrante foi perpetrado contra pessoas que apenas trabalhavam honestamente, prestando serviços a estudantes da UPEA, ajudando-os a superar o abismo entre sua educação escolar e as exigências acadêmicas universitárias, um problema estrutural que afeta a milhares de universitários bolivianos.

Na realidade, os supostos indícios foram obtidos depois que o Estado boliviano violou o princípio de confidencialidade, ao imputar-lhes como delitos os mesmos fatos que estes professores evidenciaram como perseguição política em seu país de origem para pedir o status de refugiados. Isso significa que o Estado comprometido com a proteção jurídica internacional dos refugiados, longe de proteger a essas pessoas, utilizou a informação que detinham para montar uma falsa trama, com a qual expulsaram aos três solicitantes de refúgio, que hoje estão presos no seu país de origem, o Peru.

No Equador, uma montagem parecida incriminou cidadãos do próprio país no início de 2012, para os quais foi inventada uma farsa dentro da chamada “Operação Sol Vermelho”. Também não foi encontrado nenhum armamento, somente mostraram alguns panfletos que demonstravam uma opinião discrepante do governo de Correa, que não merecia ser catalogada como prova de pertinência a alguma organização terrorista.

Como no caso boliviano, é absurdo alegar a existência de uma organização terrorista se não existem atos prévios que possam ser catalogados como terroristas. A dissidência, a liberdade de expressão e informação, exagerando, poderiam ser catalogadas como apologia à subversão, que não está penalizada em muitas legislações, porque um fato subversivo é tão amplo que pode incluir até o simples fato de se negar a cantar o hino nacional. Neste caso, nem sequer se trata de apologia ao terrorismo porque nunca houve um enaltecimento ou tentativa de ato ou delito e, obviamente, muito menos constituem atos terroristas propriamente. Absurdamente, os detidos foram processados por estes crimes, tanto na Bolívia como no Equador, em uma clara intenção de gerar uma atmosfera psicossocial de medo.

Em setembro de 2011, o governo boliviano quis armar um novo escândalo ao tentar vitimizar seu Ministro das Relações Exteriores numa suposta tentativa de homicídio. Os autores do crime seriam manifestantes da marcha indígena do Tipnis (Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure), que não colocaram sequer um dedo no Ministro, somente se puseram contra sua decisão de construir uma estrada em uma área protegida. Com esse pretexto, os indígenas foram reprimidos com uma brutal agressão física quando foram presos.

Nos primeiros meses de 2012, também na Bolívia, foram presos quatro jovens, dos quais dois permanecem presos sob a acusação de pertencer a uma organização terrorista. As provas apresentadas foram máscaras artísticas que eles costumavam fazer porque eram cantores de rock. Também foram acusados de cometer danos materiais contra caixas automáticos de agências bancárias. Além das máscaras, agregaram um vídeo no qual não aparece nenhum dos imputados, mas mesmo assim eles foram acusados de pertencer a uma rede de terrorismo internacional, somente pelo fato de estarem inscritos em redes sociais como Facebook e Twitter, como normalmente fazem milhões de pessoas no mundo. 

Em última instância, tais presos deveriam ser processados por delito de danos materiais e não por crime de pertencer uma organização terrorista, já que não existe nenhuma organização desse caráter que esteja operando no território boliviano. Tudo não passa de um exagero do Ministério do Interior da Bolívia para reprimir as pessoas de pensamento crítico ou simplesmente para gerar medo nos grupos alternativos.

Na realidade, este último caso foi uma cópia fiel de uma mistura de provas e show midiático produzido no Chile, o chamado caso “Bombas”, no qual uns jovens anarquistas foram envolvidos, sem provas, em uma série de atentados contra caixas automáticos. Os jovens chilenos, no fim, foram soltos depois de uma longa batalha legal, enfrentando a farsa montada pela polícia e os meios de comunicação vinculados ao governo chileno, que obedecem docilmente a todas as ordens do Ministério do Interior.

Os traços característicos de ambos os casos — Chile e Bolivia — são tão parecidos que fica difícil acreditar que esta farsa não foi tirada dos manuais de aplicação de regras sujas das operações policiais, que por razões óbvias não circulam publicamente.

No Peru de Ollanta Humala, as coisas não são diferentes. A criminalização dos protestos contra os empreendimentos extrativistas mineiros em Cajamarca, La Oroya e Puno, as greves dos professores e demais setores sociais, são sempre associadas ao Partido Comunista do Peru (PCP), conhecido como Sendero Luminoso (SL), com o único objetivo de desprestigiar as lideranças populares, sob o estigma de terroristas. Cada vez que aumenta o descontentamento social e começam as manifestações populares, o Estado peruano opta pelo fácil expediente de utilizar todo o repertório legal repressivo antiterrorista que construiu nos últimos 30 anos.

Com o surgimento do Movimento pela Anistia e pelos Direitos Fundamentais (MOVADEF), partido político não reconhecido pelo Estado peruano, que se autoproclama (falsamente) seguidor da ideologia do marxismo-leninismo-maoísmo-pensamento Gonzalo, muitos dirigentes sindicais, membros de partidos políticos no Congresso e lutadores populares foram vinculados a este movimento ou ao PCP nos últimos meses. A caça às bruxas, cuja principal caixa de ressonância são os diversos canais de televisão e meios impressos peruanos pressionam para que se endureça ainda mais o sistema repressivo do país, que já conta com algumas das leis mais repressoras do continente.

Inclusive pessoas que já cumpriram pena, como Alfredo Crespo, membro do MOVADEF e advogado de Abimael Guzmán (o Presidente Gonzalo), continua sendo hostilizado para que pague uma reparação civil, chegando a embargar suas fontes básicas de vida. O cúmulo dessa situação foi o fato de sequestrar bens de Crespo como um colchão, com a intenção de provocar medo e humilhação, mas isso é uma mensagem política muito clara.

No Brasil, o Código Penal também tem sido usado para reprimir os protestos sociais, como no caso dos trabalhadores da Usina de Jirau, em Porto Velho (RO), que foram processados por uma série de crimes, em especial o de incendiar os alojamentos da obra da hidrelétrica. Também já é conhecida a utilização de políticas do medo para reprimir as favelas, em especial as do Rio de Janeiro, sob a desculpa de que se trata de uma luta contra o crime organizado e o narcotráfico, com os quais os meios de comunicação brasileiros estigmatizaram os bairros pobres da cidade, como se a pobreza em si já fosse uma condição de delinquência.

Também não podemos esquecer a “flamejante” República Bolivariana da Venezuela, porque contra a retórica revolucionaroide de Hugo Chávez pesa a prova da publicação, em 30 de abril de 2012, da Lei Orgânica do Crime Organizado e Financiamento do Terrorismo (www.mediafire.com/?93813cdsp2imt7w) que é uma cópia fiel da proposta de um manual repressivo difundido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) (www.imf.org/external/pubs/ft/SFTH/esl/).

Finalmente, não é a intenção desse artigo apresentar uma imagem de um maquinário que reprime a todo o povo como se fosse um plano super racional. Na realidade, o que fazem todos os países é copiar metodologias dos manuais enviados pelos centros de poder mundial, ainda que essas políticas do medo globalizantes tenham se misturado com as máfias e grupos corruptos locais, que disputam entre si quem leva a melhor parte do butim, o que já é parte do folcloredas classes dominantes da América do Sul.

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* Macartismo: movimento iniciado no USA em 1951 pelo senador Joseph McCarthy (1908-1957), caracterizado pela perseguição a pessoas acusadas de ser simpatizantes do comunismo e de realizar atividades anti-ianques. Essa perseguição atinge cerca de 6 milhões de estadunidenses. Entre eles destaca-se o casal Julius e Ethel Rosenberg, que, acusado de passar o segredo da bomba atômica aos soviéticos, é executado em 1953 na câmara de gás.

** Mais informação sobre o Direito Penal do Inimigo pode ser encontrada no livro: Gunther Jakobs y Manuel Cancio Meliá. Derecho Penal del Enemigo. Madrid: Thomson-Civitas. 2003.

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