Máquina neocolonial tritura pobres no Quênia

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Máquina neocolonial tritura pobres no Quênia

60% da população queniada subsiste com menos de dois dólares diários

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Manifestação em bairro pobre de Nairobi
contra o resultado das eleições

O Quênia, com 34,5 milhões de habitantes, um dos países mais desenvolvidos da África e fator de estabilidade na Costa oriental do continente, está mergulhado, desde as eleições de dezembro, numa crise que fez mais de mil mortos e cerca de 300.000 deslocados. A "oposição", liderada por Raila Odinga candidato do Movimento Democrático Laranja (ODM, no acrônimo inglês), contesta a reeleição do Presidente Mwai Kibaki do Partido de União Nacional (PNU, em inglês), por fraude, no escrutínio de 27 de Dezembro. Efetivamente, Kibaki e Odinga se opõem somente quanto a interesses conjunturais de grupos dominantes, representados por ambos, relacionados ao poder interno e ao imperialismo, aproximadamente como no Brasil, entre PSDB, PT e PD, entre outros. E manipulam em benefício próprio o aspecto étnico, lançando etnias umas contra as outras, na verdade, pobres contra pobres. Por isso, a classificação de "conflito étnico" para descrever a situação atual seria parte da estratégia de desinformação dos monopólios dos meios de comunicação, já que os confrontos no Quênia misturam disputas de classe, demandas com relação ao Estado, como acesso à água e à moradia, protestos contra a corrupção, principalmente no setor de transporte e de infra-estrutura viária, além da sonegação de impostos pela classe dominante, entremeio a rivalidades reais ou provocadas entre as etnias que formam o país.

Apenas os mais pobres entre os pobres, os sem-terra e os desempregados saíram às ruas, para protestar contra a fraude eleitoral. As favelas de Nairóbi são os únicos focos de violência e esse quadro se repetiu em outras zonas do país. "Já viu alguma pessoa da classe média de qualquer das etnias gritando contra Kibaki ou Odinga?", perguntou Raphael Karanja, um jornalista de radio. "Os que protestam são os que têm uma equivocada fé no poder do voto e que acreditam genuinamente que seu voto pode gerar uma mudança que leve a melhores políticas econômicas que aliviem seus problemas de falta de terra, moradia e água potável", argumentou. Nas favelas superlotadas de Nairóbi, os moradores são obrigados a conviver com gangues violentas. As condições sanitárias são precárias. Não há esgotos, e os banheiros são substituídos por sacos plásticos, depois jogados pela janela.

Negociações entre o governo e a "oposição", ambos coligados ao imperialismo europeu e norte-americano, estão em curso desde finais de janeiro, sob a mediação do ex-secretário-geral da ONU Kofi Annan, para tentar chegar a uma solução política para a crise. O líder da "oposição" Raila Odinga deverá ser o primeiro-ministro. Ele afirma que Kibaki não cumpriu no passado uma promessa de dar-lhe um cargo no governo em troca de apoio nas eleições de 2002. As eleições de 2007 não foram as primeiras fraudulentas, nem as primeiras a gerar violência depois de divulgados os resultados. O mesmo ocorreu em 1992 e, em maior escala, durante e depois das eleições de 1997. Odinga aumentou suas expectativas fazendo campanha como o "candidato do povo" e "defensor dos pobres". Recebeu votos de membros de todas as etnias. Com metade da população economicamente ativa desempregada, e com mais da metade dos empregados recebendo salários baixíssimos entre oitenta e cem dólares, os pobres foram induzidos a pensar que a "democracia" lhes permitiria influir nas políticas governamentais.

Depois da pacífica transição de 2002, que tinha por trás a ação dos agentes do imperialismo e dos agentes locais a serviço das oligarquias, a maioria dos quenianos tinha fé de que poderia provocar outra mudança com seu voto, o que explica a tranquila participação popular, sem precedentes, nas eleições de dezembro do ano passado. Mas essa fé foi irremediavelmente abalada. Enviada para a capital queniana pelo Presidente dos Estados Unidos George W. Bush, Condoleezza Rice sublinhou que o país "precisa de um acordo de governança que permita uma verdadeira partilha de poder e uma grande coligação" governamental. Os imperialistas norte-americanos já receberam algumas vezes ajuda do governo queniano em sua luta contra revolucionários islâmicos na vizinha Somália.

O Quênia tem cerca de 40 etnias, sendo a principal a dos Kikuyus, que constitui cerca de 22% da população. Desde 1890, quando o país se tornou colônia britânica, essa etnia foi sistematicamente expulsa de suas férteis terras para dar lugar a ocupantes europeus. Os britânicos arrancaram minerais preciosos, quase esgotando todas as reservas de ouro, madeiras e especiarias e escravizaram a população até que no início da década de 1950, surgiram movimentos de libertação do povo queniano, sendo o principal um movimento da tribo Gikuyu de etnia Kikuyu, denominado Mau Mau (Burning Spears). Assim, no dia 12 de dezembro de 1963, a Inglaterra reconheceu a independência do Quênia, entretanto assumiria a posição de potência neocolonial e manteria o Quênia como semi-colônia.

Parte da geração de líderes, após 1963, incluía representantes de etnias diversas, como Kikuyos, Luos, Kalenjin. O primeiro presidente foi Jomo Kenyatta, Kikuyu, quem incluiu o Quênia entre os membros da Commonwelth, em 1964, mas Daniel Arap Moi, da tribo Turgen da etnia Kalenjin, foi o político que mais tempo passou à frente do país na direção do partido KANU — Kenya African National Union, pró-ocidental, com o apoio dos EUA. Ele governou de 1978 a 2002, num regime ditatorial e corrupto. Embora a cláusula da constituição queniana que proibia partidos de oposição tenha sido revogada nos anos 90, Moi permaneceu no poder para cumprir um quarto mandato depois das primeiras eleições multipartidárias, em 1997. Kibaki e Odinga foram ministros do ex-presidente Moi.

A maioria dos manifestantes pertence às etnias Luo e Kalenjin, enquanto o maior número de vítimas da violência são kikuyus, etnia dominante no país. Mas essa linha divisória étnica oculta padrões históricos de desigual distribuição dos recursos no Quênia. O principal problema é a distribuição da terra. "O Estado mostrou uma escandalosa parcialidade a favor de uma tribo, à custa de todas as demais, quando o país conseguiu a independência e as parcelas abandonadas pelos britânicos foram distribuídas entre a população local", disse um professor de economia da Universidade de Nairóbi, que não revelou seu nome, porque é funcionário do governo. Os Kykuyus se apoderaram da maior parte da terra, inclusive áreas que jamais haviam ocupado, porque controlavam o primeiro governo independente que lhe deu tratamento preferencial e créditos para comprá-la. "Isso fez com que famílias Kikuyus conseguissem terras em meio a áreas tradicionais de outras tribos, especialmente no fértil Vale do Rift, região de violentos conflitos fundiários e de disputas eleitorais, desde que foi introduzido no Quênia um sistema multipartidário em 1962", explicou o professor de economia.

A brecha entre a pequena minoria rica e a maioria de pobres se estendeu tanto durante os últimos anos que mesmo um cidadão comum tendo os recursos e querendo construir uma casa decente encontra travas burocráticas a cada passo que não pode superar, se não subornar funcionários corruptos. Não há bairros de classe média em Nairóbi. Apenas sofisticadas casas ou áreas marginalizadas.

— Os ricos se tornaram super ricos e adotaram uma cultura de consumo desenfreado, com grandes e caros automóveis e casas ainda maiores e caras. Por outro lado, os pobres ficaram mais pobres. A classe média diminuiu, com uns poucos que conseguiram uma ascensão social e uma maioria que sobrevive à beira do abismo econômico e social. — acrescentou o professor.

No governo Kibaki, a economia cresceu, impulsionada pelas exportações do agronegócio e pelo turismo. O Quênia é famoso por suas reservas ecológicas, praias e sítios arqueológicos. Nairóbi, elevada, a partir de 1995, a centro financeiro tem importância regional. Desde o biênio 1996/1998 está em curso um plano neoliberal de desenvolvimento, com reestruturação de estatais e cortes no funcionalismo. Os Estados Unidos e a União Européia investiram muito dinheiro no Quênia e apostaram em Kibaki para a construção da "democracia" de corte neoliberal, conforme os interesses do grande capital internacional, após 25 anos da ditadura de Moi. Embora o imperialismo tenha se equivocado, conjunturalmente, em sua tática de dominação política, os países ricos relutaram, mas aceitaram a declaração de vitória eleitoral de Kibaki, pressionando-o apenas para que inclua em seu governo os líderes da "oposição", de modo a acalmar o descontentamento e tentar chegar a algum tipo de pacto de governabilidade.

As preocupações do imperialismo se devem à importância econômica do Quênia para a África oriental. Seus portos e estradas garantem o abastecimento de Uganda, Ruanda, Burundi e partes significativas da República Democrática do Congo. Esses são países marcados por conflitos muito graves, nos quais a escassez de combustíveis ou de produtos industriais pode resultar em novas ondas de violência numa região já bastante conflagrada. A indústria queniana produz plásticos, artefatos de madeira, tecidos, cigarros, couro, cimento, metalurgia e comida enlatada, e também, refina petróleo. O turismo rende bons lucros, principalmente em Mombasa, no litoral, e na savana queniana, no interior. O País exporta chá e café e importa maquinários, alimentos, equipamentos de transporte, petróleo e seus derivados. Mas o imperialismo, em aliança com uma burguesia burocrática * e subserviente, de forma parecida a outras semicolônias, encontra crescentes dificuldades para controlar o Quênia e toda África oriental. A tendência é o crescimento da rebeldia popular.


* Sobre a burguesia burocrática e suas frações, ver matéria na página 7.
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