Mariátegui presente, 80 anos depois

Mariátegui presente, 80 anos depois

Em 2007, cumprem-se 80 anos que José Carlos Mariátegui (1895-1930) organizou o 1º Congresso Operário da Central Obrera Peruana, que lançou as bases para a fundação, no ano seguinte, do Partido Comunista do Peru (inicialmente denominado Partido Socialista) e da edição da primeira grande obra marxista latino-americana: os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana.

Mariátegui soube, como ninguém em sua época, apontar o caráter semicolonial dos países sul-americanos e a debilidade das burguesias nativas, sua incapacidade de liderar um processo nacional e seu atrelamento ao imperialismo. O monopólio da terra na estrutura econômica destas sociedades, dando uma qualidade latifundiária ao pseudo-Estado republicano, reforça a sua tese de submissão das classes dominantes destes países ao imperialismo.

Iinterpretando de forma dialética a realidade de seu país, mostrou o caráter indissociável das questões indígena, camponesa, democrática e nacional, e chamou o proletariado a travar a luta classista e combativa contra os seus exploradores e opressores. Tinha uma preocupação permanente com a questão da cultura e da educação e atribuía uma importância fundamental ao movimento estudantil e sua aliança com a vanguarda operário-camponesa.

Suas idéias não foram bem compreendidas pelo birô sul-americano da Internacional Comunista que, por acreditar num papel progressista desta burguesia burocrática, rejeitou suas teses.

Perseguido pelos gerentes de turno do imperialismo em seu país, teve morte prematura, em razão de grave enfemidade, mas marcou com sua produção teórica e sua prática a história da luta operária e camponesa do Peru. Tanto assim que é hoje um dos autores mais publicados neste país e o autor peruano mais publicado além fronteiras.

Seu pensamento revolucionário segue atualíssimo, extrapolando os limites peruanos e servindo de base para explicação da realidade latino americana. Apesar da clareza de seus pontos de vista, o pensamento de Mariátegui tem sido mutilado pelos oportunistas para fundamentar suas posições reformistas e revisionistas, extraindo de sua vastíssima contribuição frases soltas para violar sua essência marxista. Mariátegui não deixou qualquer espaço para ilações reformistas e oportunistas, tanto em sua obra teórica quanto em sua prática.

É inconfundível sua afirmação ao referir-se à revolução: "Aceito a revolução com todos seus horrores, sem reservas covardes".

A obra de Mariátegui, injusta e lamentavelmente, é pouco conhecida no Brasil, reparo ainda por fazer-se. AND aproveita a comemoração do histórico Congresso para publicar trechos de alguns capítulos do livro.

A Espanha nos trouxe a Idade Média: inquisição, feudalismo, etc. Trouxe-nos, depois, a Contra-reforma: espírito reacionário, método jesuítico, casuísmo escolástico. Da maior parte destes fatos nos fomos liberando, penosamente, por meio da assimilação da cultura ocidental, obtida, às vezes, através da própria Espanha. Mas de seu alicerce econômico, arraigado nos interesses de uma classe cuja hegemonia não foi suprimida pela revolução da Independência, ainda não nos liberamos. As raízes do feudalismo estão intactas. Sua sobrevivência é responsável, por exemplo, pelo atraso de nosso desenvolvimento capitalista.

O regime de propriedade da terra determina o regime político de todas as nações. O problema agrário — que a República não pôde até agora resolver — domina todos os problemas do nosso país. Sobre uma economia semifeudal não podem prosperar nem funcionar instituições democráticas e liberais".

"O problema agrário apresenta-se, principalmente, como o problema da extinção do feudalismo no Peru. Esta extinção deveria ter sido realizada pelo regime democrático-burguês formalmente estabelecido pela revolução da Independência. Mas no Peru não tivemos, em cem anos de República, uma verdadeira classe burguesa, uma verdadeira classe capitalista. A antiga classe feudal — camuflada ou disfarçada na burguesia republicana — conservou suas posições. (…) A sobrevivência de um regime de latifundiários produziu, na prática, a preservação do latifúndio".

"Ninguém ignora que a solução liberal deste problema seria, de acordo com a ideologia individualista, o fracionamento dos latifúndios para criar a pequena propriedade. É tão vasto o desconhecimento, diariamente constatado entre nós, dos princípios elementares do socialismo, que jamais será óbvio ou inútil insistir em que esta fórmula não é utópica, nem herética, nem revolucionária, nem bolchevique, nem vanguardista, mas ortodoxa, constitucional, democrática capitalista e burguesa. E que tem a sua origem no ideário liberal em que se inspiram os Estatutos constitucionais de todos os Estados democrático-burgueses.

(…) Coerente com a minha posição ideológica, penso que a hora de ensaiar no Peru o método liberal, a fórmula individualista, já passou. Deixando de lado as razões doutrinárias, considero fundamental um fator irrespondível e concreto que dá um caráter peculiar ao nosso problema agrário: a sobrevivência da comunidade (Obs: Mariátegui se refere a um tipo de organização indígena-camponesa, oriunda do sistema de aldeamentos incas, chamado de ayllu, posteriormente traduzido como comunidade) e de elementos de socialismo prático, na agricultura e na vida indígenas".

"(…) o progresso do Peru será fictício, ou pelo menos não será peruano, enquanto não for obra e não signifique o bem-estar da massa peruana, que na sua maioria é indígena e camponesa".

A terra e os incas

"No que diz respeito ao problema indígena, a subordinação ao problema da terra é marcante, por razões especiais. A raça indígena é uma raça de agricultores. O povo incaico era um povo de camponeses, dedicados habitualmente à agricultura e ao pastoreio. As indústrias e as artes tinham um caráter doméstico e rural. No Peru dos Incas enxergava-se, com maior clareza que em outros povos, o princípio de que ‘a vida vem da terra’.

As obras públicas, as obras coletivas mais admiráveis do Tawantin-suyo (Denominação do império inca, na língua quêchua), tiveram um objetivo militar, religioso ou agrícola. Os canais de irrigação, da serra e da costa, os terraços de cultivo dos Andes, ficam como os melhores testemunhos do grau de organização econômica alcançado pelo Peru incaico.

Sua civilização caracterizava-se, em todos os seus aspectos predominantes, como uma civilização agrária. ‘A terra — escreve Valcárcel, estudando a vida econômica do Tawantinsuyo — na tradição reinícola, é a mãe comum: das suas entranhas emergem não apenas os frutos, mas o próprio homem. A terra proporciona todos os bens. O culto da Mama Pacha (Mãe Terra) é irmão da heliolatria, e como o Sol não é de ninguém em particular, também o planeta não o é. Irmanados os dois conceitos na ideologia aborígene, nasceu o agrarismo, que é a propriedade comunitária dos campos e a religião universal do astro do dia’. (Mariátegui cita trecho do livro Del ayllu al império — Da comunidade ao império — de Luís E. Valcárcel)

O comunismo incaico — que não pode ser negado nem diminuído por desenvolver-se sob o regime autocrático dos Incas —, é por esta razão chamado de comunismo agrário.

Os caracteres fundamentais da economia incaica — segundo César Ugarte, que define, em geral, as linhas de nosso processo com muita ponderação — eram os seguintes: ‘Propriedade coletiva da terra cultivável pelo ayllu, ou conjunto de famílias aparentadas, embora dividida em lotes individuais intransferíveis; propriedade coletiva das águas, terras de pastoreio e bosques pela marka, ou tribo, ou seja a federação de ayllus estabelecidos em torno de uma mesma aldeia; cooperação comum no trabalho; apropriação individual das colheitas e frutos’ (Mariátegui cita trecho do livro Bosquejo de la Historia Económica del Perú Esboço da História Econômica do Peru — de César Antonio Ugarte).

A colônia: destruição e atraso

"A destruição desta economia — e, em consequência, da cultura que se nutria dessa seiva — é uma das responsabilidades menos discutíveis da colônia, não por ter provocado a destruição de formas autóctones, mas por não trazer a sua substituição por formas superiores.

O regime colonial desorganizou e aniquilou a economia agrária incaica, sem substituí-la por uma economia de maiores rendimentos".

"Sob uma aristocracia indígena, os nativos constituíam uma nação de dez milhões de homens com um Estado eficiente e orgânico, cuja ação atingia todos os âmbitos de sua soberania; sob uma aristocracia estrangeira, os nativos reduziram-se a uma dispersa e anárquica massa de um milhão de homens, entregues à servidão e ao ‘felaísmo’ (Felá era o lavrador egípcio, casta tida como inferior, à qual cabia os trabalhos mais rudes).

O dado demográfico é, a este respeito, o mais convincente e decisivo. Contra todos os reparos que — em nome de conceitos liberais, isto é, modernos, de liberdade e justiça — se possam fazer ao regime incaico, está o fato histórico — positivo, material — de que assegurava a subsistência e o crescimento de uma população que, quando chegaram ao Peru os conquistadores, estava por volta dos dez milhões e que, em três séculos de domínio espanhol, baixou para um milhão. (Há indícios de que cerca de 40% da população indígena peruana, quatro milhões de pessoas, foram mortas apenas no primeiro século da invasão européia).

"Este fato condena a colônia, e não de pontos de vista abstratos ou teóricos ou morais — ou seja qual for a qualificação — da justiça, mas dos pontos de vista práticos, concretos e materiais da utilidade.

A República: burgueses fracos, fazendeiros fortes

"O feudalismo é o peso que nos deixou a colônia. (…) Examinaremos agora como se apresenta o problema da terra sob a República.

Para determinar meus pontos de vista sobre este período, no que diz respeito ao problema agrário, devo insistir num conceito que já expus, concernente à revolução de Independência no Peru. A revolução encontrou o Peru atrasado na formação de sua burguesia. Os elementos de uma economia capitalista eram, em nosso país, mais embrionários do que em outros países da América, onde a revolução contou com uma burguesia menos larval, menos incipiente."

"A revolução não podia prescindir de princípios que consideravam a existência de reivindicações agrárias, fundadas na necessidade prática e na justiça teórica de libertar o domínio da terra das travas feudais. A República inseriu estes princípios no seu estatuto. (Mas) o Peru não tinha uma classe burguesa que os aplicasse, em harmonia com seus interesses econômicos e sua doutrina política e jurídica. Porém a República devia constituir-se sobre princípios liberais e burgueses. Acontece, porém, que as consequências práticas da revolução, no que dizia respeito à propriedade agrária, eram obrigadas a deter-se nos limites que os grandes proprietários lhe fixavam.

Por isto, a política de desvinculação da propriedade agrária, imposta pelos fundamentos políticos da República, não atacou o latifúndio. (…) A aristocracia latifundiária, ou seus privilégios naturais, conservaram posições de fato. Continuava a ser, no Peru, a classe dominante. A revolução não elevara, realmente, ao poder, uma nova classe. A burguesia profissional e comerciante era muito débil para governar. A abolição da servidão não deixava, por isto, de ser uma declaração teórica. Pois a revolução não tocara no latifúndio".

"(Hoje)…a economia do Peru é uma economia colonial. Sua movimentação, seu desenvolvimento, estão subordinados aos interesses e às necessidades dos mercados de Londres e de Nova Iorque. Estes mercados enxergam o Peru como um depósito de matérias primas e uma praça para suas manufaturas.

A agricultura peruana obtém, por isto, créditos e transportes apenas para os produtos que pode oferecer com vantagem nos grandes mercados. As finanças estrangeiras interessam-se um dia pela borracha, outro pelo algodão, outro pelo açúcar.

O dia em que Londres possa receber um produto a melhor preço e em quantidade suficiente da Índia ou do Egito, abandonará imediatamente à própria sorte seus fornecedores do Peru. Nosso latifundiários, quaisquer que sejam as ilusões que tenham acerca de sua independência, não deixam de agir, na realidade, apenas como intermediários ou agentes do capitalismo estrangeiro".

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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