Para milhares de pessoas que todos os anos deixam a miséria e os conflitos que os oprimem em seus países de origem e tentam a sorte no continente europeu, a viagem é uma longa travessia entre o inferno e a morte, com o meio do caminho marcado pela humilhação.
Estima-se que 3.600 refugiados morreram nas águas
Estes refugiados, a minoria políticos, a maioria fugida da desgraça econômica imposta pelos próprios europeus às suas terras natais, sucumbem ao frio, à fome, às balas ou ao mar Mediterrâneo, antes mesmo de cruzarem os limites do continente-fortaleza. O Centro Internacional para o Desenvolvimento de Políticas Migratórias estima que foram pelo menos 3.600 mortos entre 1992 e 2005 nas águas entre a África e a Europa.
E de 2005 para cá a situação se tornou ainda mais dramática. No último dia 10 de julho, por exemplo, a patrulha marítima espanhola interceptou, já perto da província de Almeria, uma embarcação com 35 pessoas a bordo, entre as quais três mulheres grávidas. O barco havia saído da África com 49 pessoas. Quinze delas morreram no meio do Mediterrâneo, entre as quais nove crianças com idades entre um e quatro anos. Os corpos tiveram que ser jogados ao mar.
Foi a segunda embarcação interceptada pelo aparato espanhol de caça marítima a africanos em menos de uma semana. Apenas três dias antes, um naufrágio também já perto da costa espanhola deixou um saldo de outros 14 mortos e 23 sobreviventes. Em meados de junho, cem pessoas morreram quando um barco superlotado, que saiu da Líbia rumo à Itália, foi afundado pela tempestade e pelo excesso de deserdados pela devastação neocolonial. A maioria destes corpos nunca foi encontrada.
Ao todo, segundo os dados oficiais — ou seja, contando por baixo — foram cerca de oito mil seres humanos que caíram mortos desde a criação da área Schengen enquanto, e porque, tentavam pisar em solo europeu. Lembrando: a área Schengen é uma convenção que permite exatamente a livre circulação de pessoas entre as fronteiras de uma terra que tenta se demarcar como o lugar por excelência da fraternidade universal, mas que fica assim estigmatizada pelo signo da hipocrisia e da crueldade.
Para outros imigrantes, o trágico destino é decretado meses ou anos depois, em acidentes de trabalho, execuções policiais, extenuação ou doenças perfeitamente tratáveis, mas que não são, porque não existem documentos.
Já para os que não sucumbem em algum momento do sádico processo de triagem imposto pelos dirigentes europeus a africanos, latinos, eslavos e asiáticos, a esperança de alcançar a tão sonhada dignidade entre espanhóis, franceses, alemães e ingleses não resiste à certeza da semi-escravidão ou da deportação. E entre uma e outra estão os lugares para onde vão as milhares de pessoas fugidas da guerra e da miséria que sobrevivem às travessias e aos guardas da fronteira. Para os sem-documentos que ficam sem trabalho, existem os centros europeus de detenção dos "ilegais", onde podem ficar até 18 meses confinados à espera da deportação.
Maus-tratos e superlotação
É lá que são despejados os que escapam da morte mas não escapam da arbitrariedade das autoridades européias. E é na Espanha mesmo que estes centros desnudam de forma mais dramática a falácia européia de acolhimento humanitário dos que chegam lá pelas vias tortas da vida.
No fim de junho, depois de aprovada pelo Parlamento Europeu a chamada Diretriz do Retorno — norma conhecida pelos populares como "Diretriz da Vergonha", porque incita e regulamenta a infame perseguição aos imigrantes nos países da Europa — a jornalista italiana Sara Prestianni, do jornal Il Manifesto, conseguiu entrar em alguns dos dez campos que a imprensa comportada do continente diz serem "centros de acolhimento temporário de imigrantes", mas que na verdade são verdadeiras prisões.
Nelas, conta Sara, há grades nas janelas, mulheres grávidas e crianças entre os internos. Pode-se ler o seguinte relato na reportagem publicada pelo Il Manifesto:
"Diante de nós, puras e duras prisões de seguran-ça máxima onde os imi-grantes são ‘acolhidos’ depois de desembarcarem no território espanhol, ou ‘aguardam’ o procedimento de expulsão. De Madrid às Canárias, o cenário se repete: celas fechadas à chave dia e noite, instalações em péssimo estado, sobretudo nos centros do sul, só pessoal pertencente ao corpo da Polícia Nacional, uma total falta de comunicação com o mundo exterior, um serviço de assistência psico-sanitário ausente ou profundamente deficitário, e numerosos testemunhos recolhidos sobre violências perpetradas contra os imigrantes por parte dos vigilantes".
No centro-modelo de Barcelona — construído para tentar dissimular as condições deploráveis dos outros — há celas limpas, espaços para o convívio, cantinas e tudo o mais. Porém, nem mesmo uma infra-estrutura de penitenciária nórdica justifica o injustificável, ou seja, que pessoas enquadradas pela infração administrativa de não terem papéis sejam trancafiadas como criminosos.
O fato de, mesmo no polido centro de Barcelona, haver celas de isolamento reservadas aos imigrantes "que não se comportam", não deixa margem de dúvida sobre a natureza do tratamento reservado a estas pessoas.
Além do mais, a infra-estrutura "modelo" de Barcelona está longe de ser seguida de forma exemplar. A realidade nos centros em toda a Europa é outra, e deixa à mostra qual é o verdadeiro modelo: o dos maus-tratos e da superlotação.
Em 2005, um incêndio em um centro de detenção no Aeroporto Internacional de Schiphol, em Amsterdam, na Holanda, resultou na morte de 11 "ilegais" e no ferimento de outros 15. O tal centro, na verdade, era uma prisão provisória inicialmente destinada às "mulas" que chegavam da América Latina com drogas dentro do corpo. Quando pegou fogo, suas 12 celas, com capacidade para duas pessoas cada, estavam servindo para confinar mais de 300 imigrantes.
Em junho deste ano um outro incêndio destruiu um dos maiores centros de deportação da França. O fogo foi atiçado pelos próprios imigrantes depois da morte de um tunisiano, provavelmente por causa da superlotação.
Por vezes, a morte pode chegar na viagem de regresso forçado. Assim foi no famoso caso do nigeriano Marcus Omofuma, que no dia 1º de maio de 1999 foi expulso da Áustria amarrado e amordaçado com fita adesiva por agentes de imigração, e acabou morrendo asfixiado em um canto isolado do avião que o levava de volta para a Nigéria.
O nome de Omofuma provavelmente não diz nada, por exemplo, a Nicolas Sarkozy, que transformou em números sórdidos a tragédia de milhares de vidas desperdiçadas, dizendo que pretende expulsar da França 26 mil pessoas até o fim de 2008. Tampouco a Silvio Berlusconi, primeiro-ministro da Itália, que costuma se referir a pessoas como os libaneses que morreram afogados tentando chegar à costa italiana como "exército do mal".