Massacre de Caarapó: um ano de impunidade e resistência

Massacre de Caarapó: um ano de impunidade e resistência

No dia 12 de junho, cerca de 300 Guarani e Kaiowá1 retomaram a área do tekoha2 Toro Paso (MS), onde incide a fazenda Yvu, cansados de esperar a demarcação. Logo, uma articulação dos latifundiários da região, junto ao sindicato rural e a polícia, planejou o covarde ataque do dia 14 de junho. De um lado, caminhonetes e tratores com pistoleiros uniformizados, armados com espingardas de grosso calibre; do outro, indígenas portando mbarakas3.

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O massacre ceifou a vida do guerreiro Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza, agente de saúde que estava no local auxiliando os feridos. Outros seis foram hospitalizados em estado grave, incluindo uma criança de 12 anos.

A barbárie foi tanta que, não contentes em assassinar Clodiodi, os capangas armados tentaram retirar o corpo com uma pá carregadeira, além de queimar e enterrar motos e outros pertences da retomada.

A terra é deles!

A Terra Indígena (TI) Dourados Amambaipeguá I está localizada nos municípios de Caarapó, Laguna Carapã e Amambaí, com 55.590 hectares que abrigam cerca de 11 tekohas.

No início do século passado estas terras foram roubadas para se tornarem fazendas, confinando os Guarani e Kaiowá na reserva de Tey’i Kue.

Depois de longos estudos antropológicos, o relatório de identificação e delimitação da TI mencionada foi assinado pela Fundação Nacional do Índio (Funai), porém, a demarcação se encontra paralisada.

A falência total das instituições do velho Estado, que deixa cada vez mais claro seu comprometimento total com o latifúndio e a grande burguesia, não deixa nenhuma perspectiva de que a gerência Temer demarque qualquer TI.

Para o povo apenas um caminho: a autodemarcação e o avanço das retomadas.

Os crimes continuam

Seguido do massacre, outros ataques paramilitares aconteceram em Caarapó. Primeiramente, o tekoha Guapoy Guasu foi alvo de tiros, depois um ataque resultou em três feridos, sendo dois menores de idade. Além disso, os pistoleiros prepararam uma emboscada para assassinar um dos sobreviventes de Caarapó, mas não alcançaram o sujo objetivo.

Os crimes também se dão no âmbito jurídico: as reintegrações de posse foram expedidas primeiro nas propriedades menores, tentando ganhar a opinião pública contra a autodemarcação.

Com essa medida sorrateira pretendiam jogar massas contra massas, fomentando uma falsa contradição entre massas camponesas e povos indígenas. Quando, na verdade, tanto para os indígenas quanto para os camponeses, a resolução da questão da terra passa necessariamente pelo fim do latifúndio.

A atrocidade do velho Estado é tanta que retira dos povos indígenas o direito sobre seus próprios mortos.

O Ministério Público Federal, em pedido ao Ministério da Justiça, foi o responsável pela ação que retirou o corpo do guerreiro Clodiodi para que este fosse submetido a uma perícia, numa tentativa de identificar a procedência da arma que retirou sua vida.

A análise, na verdade, deveria ter sido realizada assim que o indígena Guarani e Kaiowá foi assassinado. Acontece que, na época, o médico legista responsável ficou impossibilitado de realizar o exame por conta da falta de materiais específicos.

Desse modo, Clodiodi passou pelos devidos rituais de morte de sua etnia, sendo enterrado em Kunumi Poty Vera4, lugar onde seu sangue foi germinado. Para os indígenas, depois que o corpo de um Kaiowá é posto em terra, não pode ser retirado. Isso porque o desenterro pode trazer outras mortes, doenças e tristezas para a comunidade. “Para Kaiowá não tem essa coisa de tirar morto da terra, não. Enterrou, acabou”, disse a Nandesy5 Roseli, da Reserva de Panambizinho, que foi até Caarapó para acompanhar a exumação.

Os mandantes e executores do massacre continuam impunes, e a farsa de suas prisões não durou 3 meses. Muitas lideranças continuam sofrendo perseguição, tendo suas vidas ameaçadas, além de constantes ilegalidades em prisões de caráter político, como o caso de Alexandre Claro. Fato este denunciado na edição nº 186 de AND.

Vemos que para a “justiça do branco”, as inúmeras fotos e vídeos, as muitas armas apreendidas e entregues à Polícia; as dezenas de testemunhas que presenciaram o ataque, os mais de 20 feridos que ficaram internados no hospital (grande parte em estado grave) não foram provas suficientes para criminalizar os latifundiários responsáveis pela morte de Clodiodi.

O que mais era necessário para a justiça burguesa? Que, em conjunto, os latifundiários assinassem um documento de redenção à justiça?

Avançar as retomadas!

Quando se pergunta aos guerreiros qual o caminho da luta, em uníssono dizem: retomada! Os tekohas são espaços de resistência que avançam heroicamente, onde crianças e jovens, junto às lideranças religiosas, enfrentam o latifúndio e seus bandos armados pela garantia de seus territórios, sua religião, suas danças e festas, sua produção, enfim, suas vidas.

Os documentos finais de cada Aty Guasu6 demonstram a força e sagacidade com que os Guarani e Kaiowá preservam nesses séculos de luta contra a colonização, propondo novas retomadas, cortes de estradas e outras formas de luta combativa. Hoje, na TI Dourados Amambaí-Pegua I constam cerca de 6 retomadas, que articulam-se entre si para resistir às campanhas do latifúndio que criminalizam o sagrado direito à terra.

Longe do que é divulgado pelo monopólio de imprensa, o Agro não é tech, não é pop, não é tudo. O agronegócio é, tão somente, a essência de um Brasil que não deixou de ser semicolônia, mero exportador de cana, soja e milho, matéria-prima suja com sangue indígena, camponês e quilombola.

No último ano, após o massacre de Caarapó, abriu-se uma onda de massacres do latifúndio contra aqueles que lutam pelo seu pedaço de chão. Os mesmos que assassinaram Clodiodi promovem chacinas em Colniza (MT) e Pau D’Arco (PA) e tantas outras regiões para sustentar esta estrutura fundiária caduca.

Somente a aliança entre operários, camponeses, indígenas e quilombolas pode garantir a destruição do latifúndio e a democratização da terra àqueles que nela vivem e trabalham. A resistência dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul aumenta junto à Revolução Agrária, e o sangue do Guerreiro Iluminado germinará as lutas que virão.

Guerreiro Clodiodi, presente na luta!

Terra, vida, justiça e demarcação!

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Notas:

1 – Os Guarani e Kaiowá são etnias diferentes, porém, são etnias irmãs, com forte vínculo político e religioso.

2 – Para os Kaiowá e Guarani, tekoha é o “lugar onde se é”, ou seja, único território onde é possível ser e viver, diferente das reservas.

3 – Instrumento utilizado em suas rezas.

4 – Depois do massacre o tekoha Toro Paso foi rebatizado de Kunumi Poty Vera, nome indígena de Clodiodi.

5 – As nandesy são mulheres Kaiowá que assumem um papel de liderança política, e, sobretudo religiosa, dentro de uma terra indígena.

6 – Grande Assembléia, espaço de deliberação popular de toda a região.

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