Florianópolis não tem mais agricultura e pesca artesanal. As comunidades agro-pesqueiras, que garantiam a subsistência de milhares de famílias, viraram balneários.
Os lugarejos formados no interior da ilha por migrantes açorianos desde o século XVIII “contavam com muitas peculiaridades e características hoje praticamente desaparecidas — os habitantes dividiam-se entre os trabalhos da roça e da pesca; a edificação de habitações feitas de pau-a-pique barreado à mão; a prática da policultura agrícola com a predominância da mandioca, seguida da cana, amendoim, milho, café entre outros produtos(…)” (Uma cidade numa ilha, editora Insular, 1996)
O historiador Sérgio Luiz Ferreira ouviu Zenaide de Andrade Souza, 71 anos, moradora da praia de Sambaqui, e recolheu um depoimento interessante e detalhado sobre o cotidiano dos camponeses ilhéus nas épocas das colheitas.
O relato, constante na obra Histórias quase todas verdadeiras (Editora das Águas, 1998) — que inclui ainda causos e lendas das comunidades de Santo Antonio de Lisboa e Sambaqui — está resumido abaixo.
Quando me lembro das farinhadas (de mandioca), das colheitas do café, da cebola, do milho, do feijão, do amendoim, além das fornadas de rosca de polvilho, parece que estou vivendo tudo de novo. Passei todas as épocas em que o cansaço não atrapalhava, porque o trabalho era acompanhado de muitos momentos de recreação.
Para fazer a farinha (de mandioca) era preciso ter o engenho, bois e recursos humanos. As farinhadas eram feitas no inverno quando a mandioca estava mais consistente, porque fora de época ela se tornava tenra e aguada.
Várias pessoas trabalhavam na farinhada: o forneiro, o cevador, o emprensador e os raspadores de mandioca. Quanto maior o número de ajudantes mais rápido terminava o serão.
À tardinha já se ouvia o cantar do carro de boi que vinha carregado de mandioca. As mulheres já começavam a amolar as faquinhas e a arrumar seus assentos com esteiras de palha de bananeira e banquetas que serviam para os homens. As mulheres usavam um pano enrolado no colo para não pegar nódoa na roupa.
Nessa época a animação tomava conta da vizinhança, o cheiro da farinha impregnava o ar. Nas farinhadas saíam até namoro e casamento. As novidades da comunidade e do mundo eram contadas, uma verdadeira reportagem.
Na raspagem tinha gente de todas as idades. Crianças, jovens e idosos contavam casos, cantavam quadrinhas e música da época. Até desafios eram feitos naquelas noites de serão.
Os moços que queriam entrar no engenho batiam no portão e primeiro as moças olhavam por baixo da fresta para ver se os pés eram conhecidos (tipo do calçado, tamanho do chinelo, etc.). Quando terminava a raspagem, os rapazes ficavam esperando até que varressem o salão do engenho para começar as recreações e as danças. Alguns traziam cavaquinho ou violão. Era uma festa até bem tarde.
Quando o forneiro estava forneando, a mesa do forno ficava coberta de pó de farinha que dava até para escrever recado para os rapazes marcando encontro, etc. Eles liam quando vinham provar a farinha. O forneiro não sabia ler e mesmo que soubesse, era tão querido que não faria fofoca.
José Veríssimo Corrêa era nosso forneiro. Era uma pessoa de ouro, não sabia ler, mas conhecia os astros como ninguém. Sabia as horas em que a maré vazava ou enchia, conhecia tudo sobre a época das plantações conforme as fases da lua, sabia dizer as horas pelas estrelas. Paciente e compreensivo, era contador de anedotas e adivinhações.
Alto e de barba grande, tinha um grande carinho por mim. Quando era hora de lavar a louça — e era muita, pois muitos trabalhadores comiam lá em casa — eu colocava o alguidar em cima da mesa e um “meio alquer” emborcado no chão para poder subir em cima e alcançar a louça no alguidar. Quando o seu Zé vinha jantar, dizia para mim: “Vai lá no forno mexer a farinha que o seu Zé enxuga a louça para ti”.
Voltemos à farinhada. O biju, por exemplo. Era uma coisa deliciosa. Tinha o biju da caieira que se peneirava no forno mesmo, enrolava-se com uma faca como rocambole. O biju Mané Pança começava a ser cozido no forno e terminava na fornalha, com farinha de milho e amendoim enrolado na folha de bananeira.
Enquanto se esperava que tudo terminasse, saíam as conversações dos mais antigos, ensaios para as festas, para as nossas brincadeiras dos domingos. Na brasa que ficava fora da fornalha se assava aipim, batata doce, banana, peixe — corvinas retalhadas, que o cheiro ia longe…
Muitas pessoas traziam mandioca para fazer sua farinha no nosso engenho. Dessas pessoas se cobrava um terço da farinha e a família vinha ajudar e desfrutar das delícias também. Também eu, aos sete anos de idade, fiz uma rocinha de mandioca que rendeu meio alqueire de farinha.
Uma pessoa bastante conhecida em Sambaqui foi a sinhá Rosalina. Ela faleceu com mais de cem anos. Às seis horas da manhã eu já estava com ela raspando mandioca. Ficava com a mão branca de nódoa. Eu, nesta época, tinha seis anos e só saía quando minha mão estivesse branca como a dela.
Contava-me histórias e fazia boneca para mim e saquinho bordado. Dizia que tinha muito medo de “cachorro azedo” (maluco, bravo). Gostava de tirar ostra nas pedras, ensinava remédios de ervas e sabia muitas benzeduras, entre as quais a de afogado. Contava sobre a Revolução de 30 e a gripe espanhola que matou muita gente, inclusive a sua família. Perdeu todos os irmãos.
No tempo da farinhada, tinha também as nossas brincadeiras de criança. Nossas praças eram os muros do bueiro em frente à casa da Jandira Gomes, antiga casa da dona Santa ou no bueiro do seu Durval. No lugar corria uma cachoeira e à noite floresciam lírios. Sentávamos ali contemplando a lua que fazia clarear todo aquele espetáculo do lado contrário do rio. Dali saíam as sugestões para as atividades de domingo.
Na casa do seu Durval fazíamos teatro, vestíamo-nos de mascarados, combinávamos nossos passeios, que dificilmente iam a mais de três quilômetros.
Colheita do café
O café era colhido entre os meses de março e agosto, era o maior cultivo da Ilha. Durante esse tempo havia bastante oferta de trabalho para senhoras e moças. No começo da colheita cobrava-se pelo saco ou alqueire colhido e no final da colheita cobrava-se por dia. Comia-se como se fosse piquenique, assando ou cozinhando carne ou peixe na brasa e comendo com pirão de farinha d’água ou feijão.
Em março as mulheres começavam a preparar suas bolsas de lona ou alinhagem para amarrarem na cintura, um lenço para a cabeça, um gancho de madeira, escada e caixote para medir o café.
O café feito em casa era chumbado, ou seja, era colocado no pilão e socado juntamente com folhas de bananeira para os grãos não saltarem.
Bastante trabalho eu passei com esse negócio de socar café. Eram contadas tantas batidas no pilão para cada pessoa. Eu e minha irmã nos revezávamos. Como eu ainda não sabia contar até 100 e ela sabia, ela me mandava contar quando ela socava. Então eu contava 10, 20, 30, 40, 50… Quando eu socava, ela contava as 100 certinhas. Sobrava para mim!
Um senhor chamado Pedro é que torrava o café. O cheiro invadia a casa. O café era adoçado com açúcar grosso. Açúcar branco só para visita. Quem torrava café tinha que tomar uma xícara do mesmo café, não podia pegar vento ou molhar a mão na água fria.
Durante a colheita havia o jogo do café gêmeo. Era uma aposta que se fazia com outra pessoa. No outro dia, ao encontrar essa pessoa, quem gritasse primeiro “Meu baguinho de café!” ganhava a aposta. A aposta gerava uma torcida muito grande.
Eu só apostava com pessoas idosas. Um dia apostei com o sr. Adeodato Conceição e ganhei um sabonete. Outra vez apostei com o sr. Oséas de Sousa Dutra e ganhei um corte de fazenda de cinco metros, comprado na venda do sr. Isid.
Quando a gente apostava com namorado, a mocidade fazia torcida, escondiam a pessoa, avisavam. Tinha gente que ficava trancada dentro de casa e chegava a tapar o buraco da fechadura para nem ver o olho da pessoa. Outros chegavam a dormir em casa de vizinho, mas se achava até pelo perfume que se usava naquele tempo — sabonete Eucalol, lavanda e óleo Dirce (que se usava para encrespar o cabelo). Quem fizesse aposta com o tio Aníbal só perdia, porque ele passava o dia inteiro atrás das piteiras e pitangueiras, chegava a faltar o serviço.
Colheita do milho
O milho se colhia quase no verão. E era plantado em qualquer lugar, pelo sistema de coivara, que consistia em queimar a capoeira e depois plantar sobre as cinzas.
À tardinha se comia milho cozido sentado na praia com a família e os vizinhos. À noite fazia-se serão para descascar e debulhar o milho.
Na época da colheita, todo mundo contava os carreiros da soca de milho para ver se achava 15 carreiros. Qual nada! Achava-se 20, 24, 10, 12, mas 15 nunca.
A palha seca era desfiada para encher colchão. Todos os dias tinha-se que mexer bastante para ficar bem fofo. As camas das noivas eram tão estufadas que não se chegava em cima para mexer nos presentes. À noite quando o noivo ia se deitar tinha que fazer uma corrida para dar o embalo e cair em cima do colchão.
Colheita da cana
Para as pessoas que consomem o açúcar é fácil, mas para quem cultiva é bem difícil. O trabalho é cortar a cana. Por causa do pique, tem que usar camisa de manga e calça comprida.
Da roça se levava o carro carregado de cana cortada e limpa para moer na engenhoca. A garapa era colocada num caldeirão de cobre. Ali fervia e tornava-se melado de caldeira até finalmente chegar ao ponto de açúcar. Quando se colocava o açúcar no cocho, criava uma espuma branca que era chamada de flor de açúcar, outros chamavam de bacia. Minha mãe repartia com os vizinhos, que levavam para comer com pão ou bolo de milho.
Colheita do amendoim
Colocava-se o carro de boi dentro do engenho e começava-se a depenar o amendoim e depois pondo para secar.
Depois de torrado no forno, socado no pilão com farinha de mandioca peneirada e açúcar, tornava-se a famosa farinha de amendoim. Aquilo dava uma energia!
Colheita do feijão
O feijão era fácil de arrancar da terra, mas para secar dava bastante trabalho.
Era preciso colocar os pés secos com as vagens que abriam e deixavam cair os grãos. Era preciso juntar grão por grão para não misturar com a areia. No dia em que batiam o feijão, colocavam lona por baixo e batiam com o magual (dois pedaços de pau amarrados com tira de couro no meio), mas os grãos saltavam longe e era preciso catar.
Depois era ventilado na peneira e escolhido, isso que era chato. Mas, fazia-se tudo cantando.
Pela tardinha, depois das tarefas da colheita, ainda tinha a arrumação da casa que competia às mulheres. Tinha que catar lenha, graveto, recolher a roupa, abastecer a casa de água, que era carregada em potes de barro e latas com alças de arame. As chaleiras de ferro tinham que ser areadas com areia bem fina.
As comidas eram salgadas e colocadas no fumeiro para não estragar. O peixe fresco tinha que ser consumido logo. O escalado era amarrado com embira de bananeira e pendurado num balaio (o escalamento do peixe é uma forma de salga). No arame em que se pendurava o balaio era colocado um quadrado de lata para o rato não passar para dentro do balaio.
Era um trabalhão!