Mercado da pobreza: O crédito às avessas

Mercado da pobreza: O crédito às avessas

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Enquanto o setor financeiro obtém lucros recordes, o brasileiro tem um aumento de consumo atrelado ao maior nível de inadimplência dos últimos cinco anos. Nunca se obteve tanto crédito direto como agora e o maior mercado consumidor é formado justamente de pessoas com o chamado “menor poder aquisitivo”. Onde está o milagre?

A chave da resposta foi fornecida pelo saudoso jornalista Aloysio Biondi, já em 1999. Num artigo memorável , Biondi expôs as manchetes e lides às avessas empregados pelos monopólios da imprensa para engrupir a opinião pública:

A falta de ética da imprensa chegou a tal ponto, que se chega a inverter completamente a informação, para enganar o público. Excelente exemplo dessa prática ocorreu com uma pesquisa sobre o endividamento das famílias brasileiras, realizada por uma empresa de consultoria. As conclusões foram aterradoras: nada menos de 40% do orçamento familiar já estava "amarrado" com o pagamento de compromissos financeiros: cartões de crédito, cheques pré-datados, prestações diversas. E, mais exatamente: esse comprometimento havia exatamente duplicado, de 20 para 40%, após o Real. Qual a importância desse dado? Ele já mostrava as perspectivas de problemas sérios para a economia, com menos dinheiro disponível para o consumo, isto é, mais recessão e aumento inevitável da inadimplência, ou "calote" forçado, por parte dos consumidores. Os resultados da pesquisa ganharam uma manchete na edição dominical. Mas, pasme-se o leitor: o editor fez uma mágica desonesta. A manchete dizia: "Dobra o acesso do consumidor ao crédito".

De 1999 para cá, pouco ou nada mudou. Tanto o endividamento das famílias brasileiras quanto a manipulação da imprensa permaneceram nos mesmos patamares, com algumas pequenas oscilações.

Pesquisa da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio-SP, entidade patronal), divulgada no dia 17 de julho, aponta um comprometimento de 40% da renda das famílias da região metropolitana de São Paulo com o pagamento de dívidas, contra 34% no mês anterior. No mesmo intervalo, o percentual de consumidores com contas em atraso (inadimplentes) manteve-se inalterado (de 39 para 40%; em janeiro, era de 32%). A proporção de consumidores endividados caiu de 57 para 52%, mas a própria Fecomercio adverte que "caso a elevação da renda continue em um patamar morno aliada à expansão do volume de crédito — tanto o destinado à pessoa física quanto o consignado -, isso poderá resultar em um aumento da inadimplência no futuro." Ou seja: ao contrário do que "pintam" os jornais, o aumento das vendas a crédito não é sinal de "vacas gordas" para a economia verdadeiramente brasileira.

Servidão financeira

O que estes números revelam é a posição imperial do setor financeiro na economia e na vida cotidiana dos brasileiros. Para entender como se concretiza, é necessário analisar mais detidamente os meandros do sistema de crédito.

Quando as pessoas não possuem dinheiro para comprar à vista, consumidor e comerciante tornam-se reféns de bancos e financeiras. O consumidor passa a depender cada vez mais do crédito para poder adquirir o que necessita ou deseja; o comerciante, por tabela, depende do crédito para vender. A economista Leda Paulani, professora da Universidade de São Paulo, denomina esta situação "servidão financeira".

Este quadro tem sido fonte de lucros estratosféricos para os grandes bancos e seus tentáculos. Só no ano passado, os bancos que desde 2002 estão no topo dos setores mais lucrativos do país, atingiram o maior lucro de sua história. Juntos, os cinco bancos mais rentáveis faturaram nada menos que R$ 18,8 bilhões: Bradesco (R$ 5,5 bilhões), Itaú (R$ 5,25 bilhões), Banco do Brasil (R$ 4,15 bilhões), Caixa Econômica Federal (R$ 2,07 bilhões) e Unibanco (R$ 1,84 bilhões). Estes dados correspondem apenas ao lucro direto dos bancos. Não englobam o que eles ganham através de financeiras como Losango (pertencente ao HSBC), Fininvest (Unibanco), Finasa e Zogbi (Bradesco) e Taií (Itaú) — lucros que também situam-se na casa dos bilhões de reais. Na base da pirâmide das vendas a crédito estão os setores "C e D" da população.

As financeiras atuam dentro das lojas, emprestando dinheiro ao consumidor para que ele adquira o produto que desejar — por meio de cartão de financiamento, carnê ou cheque pré-datado. Maior delas, a Losango afirma ter 14 milhões de clientes (aproximadamente um décimo da população adulta do país). "Você pode nem saber e ser nosso cliente" — diz a empresa em seu saite.

No ano passado, o lucro líquido das Casas Bahia cresceu 34% em relação a 2004 (de 150 para 201 milhões de reais). As transações feitas a partir de programas de "parceria" entre instituições financeiras e o varejo (em especial as grandes redes) cresceram cerca de 20% em 2005.

No entanto, apesar do aumento dos lucros, as lojas de varejo tornam-se cada vez mais dependentes do sistema financeiro. Para não serem tragadas por ele ou para adiar esta absorção, diversas redes buscam associar-se a ele. O Magazine Luiza juntou-se ao Unibanco para criar uma financeira própria, a LuizaCred. O grupo Pão de Açúcar (associado ao Casino Disco) firmou um acordo com o Itaú para a criação de um banco. O Carrefour e a financeira Cetelem manifestaram o propósito de fazer o mesmo, a exemplo de Unibanco e Sonae pertencente ao Wal Mart.

Lucrando com a penúria

É particularmente impressionante ver supermercados como Carrefour, Sonae e principalmente Pão de Açúcar (que atende a classe média alta) ou lojas de vestuário — como Renner e C&A — adotarem procedimentos até então característicos de lojas de móveis e eletro-domésticos. Que necessitem associar-se a financeiras para vender a crédito, é um claro sinal do estado de penúria a que chegou a população brasileira (o Carrefour pretende financiar 3,5 bilhões de reais por ano, um terço de suas vendas). As famílias brasileiras não têm mais dinheiro sequer para os gastos do dia-a-dia: roupas, alimentos, produtos de limpeza, etc.

E a insolvência não se restringe aos (lá na sociologia, anti-científica, porém muito esperta, dos financistas) setores C, D e E: ela atinge também a chamada "classe média". Recentemente, a Petrobrás associou-se à Losango para criar um cartão de financiamento destinado a postos de combustíveis.

Estes dados revelam o grande paradoxo do capital financeiro: ele depende, ao mesmo tempo, da solvência e da insolvência da população e do restante da economia. Enquanto não se torna insolúvel, esta situação é contornada por meio de artifícios dos quais a população nem toma conhecimento.

Chega a ser óbvio que os bancos e financeiras lucrem emprestando dinheiro e que seus lucros são maiores quanto maiores são os juros cobrados por esses empréstimos. É igualmente óbvio que a combinação entre o empobrecimento da sociedade e as altas taxas de juros conduz à elevação da inadimplência. Daí poderia advir a conclusão de que emprestar dinheiro ao consumidor não é um negócio assim tão bom, visto que envolveria uma razoável dose de risco. É sob a alegação deste risco, aliás, que o setor financeiro justifica o fato de os juros serem tão altos, dando a isso o nome de spread.

No entanto, a alta inadimplência não resulta nem expressa prejuízo para os bancos e financeiras. Muito pelo contrário.

O sistema financeiro adota diversas formas de concessão de crédito que se sucedem de modo a constituir uma verdadeira via crucis para quem se aventura nelas. O endividamento é uma situação na qual é fácil entrar e difícil sair.

Via crucis

Imaginemos um cidadão da pequena burguesia média — que a terminologia sociológica dessa mesma classe, de forma anti-científica, insiste em dizer "classe média", nesse caso, média, ou setor "B" da população — com acesso a cheque especial (juros de 161% ao ano, segundo dados do Procon de Natal referentes a maio) e cartão de crédito — cuja taxa é de 222% ao ano, segundo a Associação Nacional dos Executivos de Finanças, Administração e Contabilidade — Anefac, relativos a fevereiro.

Se ele paga uma parte da fatura de seu cartão no vencimento e deixa o restante para a próxima cobrança, entra automaticamente no chamado crédito rotativo: a administradora do cartão toma, em nome dele, um empréstimo bancário para cobrir o que deixou de ser pago. Este empréstimo é tomado a juros substancialmente mais altos do que os normalmente cobrados pelo uso do cartão. A administradora repassa os juros ao cliente e ainda acrescenta-lhes uma taxa adicional, pelo "trabalho" de captar o empréstimo junto ao banco.

Isto ocorre por força da chamada cláusula-mandato, presente em todos os contratos de cartão de crédito, pela qual o cliente, muitas vezes sem o saber e em outras sabendo, mas sem poder fazer absolutamente nada, concede à administradora uma procuração para, em nome dele, captar dinheiro junto a instituições financeiras. Esta prática é considerada ilegal pela maioria dos tribunais brasileiros, mas continua a ser amplamente adotada.

O setor financeiro terá lucrado, em todas as etapas descritas, mais do que se o cliente tivesse pago tudo sem atraso. A administradora ganha o valor cobrado pela intermediação; o banco ganha o valor dos juros cobrados pelo empréstimo, isto quando não é ele próprio acionista da administradora, o que lhe garante lucro nas duas pontas do negócio.

Dificilmente, porém, o caso terminará aí. É grande a chance de que o cliente, por conta dos juros cobrados, não possa quitar a totalidade da fatura do próximo mês. A administradora tornará a captar dinheiro junto ao banco e a repassar ao cliente os juros e o preço do "serviço". Isto é, o cliente terá que pagar juros sobre juros — o que também é ilegal.

Para se ter uma idéia de quanto o sistema financeiro ganha com este tipo de situação, o Monitor Abecs (Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Créditos e Serviços) do Mercado de Cartões diz que circulam hoje no Brasil 69 milhões de cartões de crédito, 174 milhões de débito e 101 milhões de cartões de loja. O uso destes cartões cresce a taxas de, respectivamente, 25%, 19% e 16%.

O que ocorreu com o cartão de crédito poderia ter ocorrido, de maneira quase idêntica, com o cheque especial. Perdendo os dois, nosso cidadão da alta pequena burguesia descerá à situação em que se encontra a maioria da população brasileira (novamente, o código tecnocrático: setores "C", "D" e "E"): terá que recorrer a cartões de financiamento e crédito direto ao consumidor, isto caso consiga cumprir uma série de exigências tais como comprovação de renda, nome limpo em cadastros de restrição ao crédito, etc. São consideráveis as chances de que ocorra um processo de crescimento da dívida semelhante ao acontecido com o cartão de crédito.

Em caso negativo — o que é mais provável — , lhe restará tomar empréstimo pessoal em uma financeira, pelo que poderá pagar juros de até 406%, segundo dados do Procon de Natal. De acordo com a mesma pesquisa, a taxa média, nas financeiras, é de 340% ao ano, contra 95% cobrados nos bancos.

Mas é provável que nem isso nosso amigo consiga: para a concessão de crédito, lojas e instituições financeiras têm por hábito consultar os cadastros de uma empresa chamada Serasa — Centralização dos Serviços dos Bancos S.A. A Serasa foi uma das empresas que mais cresceram no Brasil na última década e meia, vendendo ao comércio bancos de dados de consumidores inadimplentes. Segundo seu saite, ela responde diariamente a 3,5 milhões de consultas efetuadas por aproximadamente 300 mil clientes. Os acionistas da Serasa? Os bancos, que têm lucrado bastante com seu crescimento e a diversificação de sua linha de produtos, que inclui até mesmo programas que calculam a probabilidade de inadimplência futura, até mesmo de quem nunca atrasou um pagamento.

Só lhe restará, então, recorrer a algum parente idoso, aposentado ou pensionista, para usufruir a grande invenção das administrações Cardoso e Luiz Inácio: o crédito consignado. (Ver O roubo chamado crédito).

Os juros incidentes sobre estes empréstimos são mais baixos. Afinal, o risco de inadimplência é zero e o serviço de cobrança é gratuito: as parcelas são descontadas no contracheque do aposentado ou pensionista pelo governo, que arca com o custo da operação. Segundo o jornal Valor Econômico de 31 de maio, a taxa média, em março, era de 37% ao ano — mas havia instituições cobrando até 7% ao mês. Há um risco: o aposentado pode morrer. Risco, aliás, considerável, vez que, ao contrair o empréstimo, compromete sua renda por dois ou três anos, o que o impede de comprar remédios e realizar outros gastos essenciais à sua saúde e sobrevivência. As financeiras resolvem o problema obrigando os tomadores de empréstimos a contratar seguros que garantam o pagamento em caso de óbito — prática ilegal.

Há também uma outra "solução": o aposentado contrai outro empréstimo, a juros naturalmente maiores, para quitar o primeiro e poder, momentaneamente, comprar o que precisa. Depois, a bola de neve torna a crescer.

Isto é o que a economista Ceci Juruá chama de "processo de auto-enriquecimento do setor financeiro". Ou também:

— O dinheiro que sai do bolso das pessoas de menor poder aquisitivo para engordar os lucros das grandes financeiras — resume o também economista José Carlos Oliveira, professor da Universidade de Brasília.

Mas acabou? Não. Os bancos têm ainda uma forma adicional de lucrar com a insolvência generalizada. Quando uma loja fica sem liquidez e precisa de dinheiro — situação que se torna mais frequente quando o consumidor não pode comprar à vista —, ela vende esse seu crédito a receber acumulado para alguma instituição financeira, abaixo do valor de face. Isto ajuda a explicar por que as instituições financeiras incentivam as vendas a crédito, mesmo em casos em que os juros pareçam pouco rentáveis.

Finalmente, o que fazem os bancos com todos os créditos que têm a receber — de seus clientes, dos emitentes de cheques repassados por comerciantes, de aposentados? Vendem. Isto mesmo. E naturalmente, com lucro.

Estes créditos passam a servir de lastro aos chamados FIDCs — Fundos de Investimentos em Direitos Creditórios. Os bancos vendem aos investidores destes fundos títulos representativos dos créditos que têm a receber — vale dizer, repassam aos clientes o risco de inadimplência e recebem deles dinheiro à vista.

Os FIDC são dirigidos à parcela mais rica da população: o valor mínimo para investimento neles situa-se na faixa de 300 mil reais. Para convencer estes investidores a realizar uma aplicação tão vantajosa para os bancos, o governo isentou os rendimentos dos FIDC do pagamento de PIS, Cofins, CSLL e IRPJ1. Segundo estudo do escritório de advocacia Veirano, de Porto Alegre, que presta assessoria a monopólios e especuladores, a incidência de impostos sobre dinheiro aplicado em FIDC é 50% menor do que sobre a especulação com ações. Também não há retenção de Imposto de Renda na fonte. O IRPF2 incidirá à alíquota de 20% sobre a remuneração auferida pelo cotista; se este for estrangeiro, a alíquota será de 15%.

Economia da dívida

Ceci Vieira Juruá chama isto de "economia do endividamento". Comparando a atual situação ao período do encilhamento (1890), ela aponta as principais críticas ao atual processo de crescimento da economia brasileira, entre as quais podemos destacar a dependência do mercado internacional; a fragilidade do mercado interno sustentado pelo endividamento e o elevado grau de financeirização da economia interna.

Naturalmente, esta situação é vista com bons olhos pelo Fundo Monetário Internacional — FMI, que busca impor sua continuidade. Entre as "recomendações" dirigidas ao Brasil pelo diretor-gerente do órgão, Rodrigo Rato, para 2006, a ampliação do crédito estava lado a lado com a autonomia do Banco Central e a supressão de direitos trabalhistas.

O governo tem cumprido obedientemente as ordens do Fundo: o volume de crédito chegou a R$ 623,9 bilhões, ou 31,6% do PIB, em março (último dado disponível); em março de 2005, atingia 27,7% do PIB.


1 CSLL — Contribuição Social sobre o Lucro Líquido
PIS — Programas de Integração Social
Pasep — Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público
Cofins — Contribuição para Seguridade Social
2 IRPJ — Imposto de Renda Pessoa Jurídica
IRPF — Imposto de Renda Pessoa Física

Hilferding ri por último?

A expressão "capital financeiro" foi cunhada em 1910 pelo economista austríaco Rudolf Hilferding (1877-1941). Militante do Partido Social-Democrata alemão, Hilferding renegou posteriormente o socialismo, tendo sido ministro da Economia da Alemanha durante a República de Weimar. Mas seus estudos sobre o capital financeiro foram importantíssimos para o desenvolvimento do pensamento econômico marxista. Em "O imperialismo, etapa superior do capitalismo", Lênin aproveitou o essencial deles, fazendo algumas correções e aperfeiçoamentos.

Segundo Hilferding, a função do banco é, em princípio, "juntar as entradas em dinheiro de todas as outras classes e de as colocar à disposição da classe capitalista sob a forma de capital monetário. Dessa forma, afluem aos capitalistas, além de seu próprio capital monetário (que os bancos administram), também o dinheiro ocioso de todas as outras classes".

A indústria e o comércio precisam de capital para financiar e expandir seus negócios. Quem detém este capital são os bancos, quer seja sob a forma de moeda, quer sob a forma de crédito.

A maior parte dos pagamentos se faz mediante a transferência de crédito. Em vez de dinheiro, usam-se cheques, letras de câmbio, duplicatas, etc. Assim, os pagamentos consistem na troca de pretensões de crédito. Isto é, o crédito passa a ser usado como meio de pagamento, atributo que em princípio seria da moeda.

A indústria e o comércio vêem-se obrigados a aceitar esta situação porque o recebimento do crédito junto ao banco é garantido, o que nem sempre ocorre com um devedor comum. Claro que, por essa "segurança", o banco cobra. Além disso, os bancos têm o poder de emprestar mais dinheiro do que têm depositado. A maioria dos empréstimos a indústrias não se faz em moeda sonante, mas em disponibilidade de crédito.

À medida que cresce a dependência da indústria e do comércio frente aos bancos, cresce também o poder destes sobre aquelas empresas.

Como explica a economista Tatiana Brettas, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, "tendo em vista que o capital da empresa está quase que na sua totalidade imobilizado na produção, a disponibilidade de capital monetário por meio dos bancos é que pode garantir a continuidade do processo no caso do surgimento de algum contratempo ou inviabilidade, mesmo que momentânea, no processo de produção."

O capital financeiro surge como resultado da fusão entre o capital bancário e o industrial. Esta fusão é típica da etapa monopolista do capitalismo e contribui para aprofundá-la.

Muda aí o próprio foco da relação entre os bancos e a indústria e o comércio. O setor bancário passa a ter interesse não mais na simples quitação dos empréstimos, mas no próprio destino das empresas. Nas palavras de Hilferding, "O interesse momentâneo torna-se permanente e quanto maior for o crédito, e quanto mais prevalecer sobretudo a participação do capital de empréstimo transformado em fixo, tanto maior e mais permanente será o seu interesse". Ocorre, então, o que Tatiana Brettas chama de vinculação orgânica entre banco e indústria.

Hilferding concluiu que tal processo teria como resultado final a absorção de toda a economia pelo setor financeiro, vez que não existem obstáculos naturais à formação de monopólios. Em suas palavras, "O que existe, pelo contrário, é a tendência contínua para a sua expansão. As indústrias independentes, como temos visto, caem cada vez mais nas garras das cartelizadas, acabando por ser anexadas por estas. O resultado desse processo é então a formação de um cartel geral. Toda a produção capitalista é conscientemente controlada por um centro, que determina a quantidade de produção em todas as esferas.

Durante muito tempo, esta previsão pareceu haver falhado — o que foi usado por economistas liberais para tentar invalidar toda a análise de Hilferding. Nas três últimas décadas, no entanto, ela tem se aproximado cada vez mais da concretização. Diversos economistas de renome, como François Chesnais, identificam hoje no endividamento o motor da concentração de capital."

Alguns aspectos teóricos

O processo de produção de mercadorias pressupõe uma determinada quantia de dinheiro adiantada, utilizada na compra de mercadorias (M). Estas mercadorias são compostas por uma parte de meios de produção (Mp) e força de trabalho (F). Somente a partir daí é que acontece o processo de produção propriamente dito (P) por meio do qual obtêm-se mercadorias cujo valor é acrescido de mais-valia (M'). A venda destas mercadorias permite a realização deste valor gerado e as transforma em dinheiro novamente (D'). São portanto, dois estágios de circulação (D — M e M' — D') e um de produção que compõem o que chamamos de tempo de rotação do capital. Temos, resumidamente, o seguinte trajeto: D — M — P… M' — D'.

" O capital industrial se expressa de diferentes formas ao longo deste processo, passando de capital monetário para capital produtivo até chegar a capital mercantil. Estes são portanto, desdobramentos de um mesmo capital, capital este que tem sua importância destacada por Marx: "O capital industrial é o único modo de existência do capital em que este tem por função não só apropriar-se da mais-valia ou do produto excedente mas também criá-la1."

A importância do crédito se intensifica principalmente no primeiro estágio da circulação, D — M (Mp, fundamentalmente), em que é necessário que haja um capital adiantado, cuja magnitude varia dependendo do fôlego existente na produção e das condições em que ela acontece. Hilferding chama a atenção para o fato de que:

" […] a quantidade de dinheiro adiantado será determinada pelo preço total das mercadorias por adquirir. Assim sendo, adiantamento aumentado do capital monetário nada mais significa senão uma compra maior de mercadorias apropriadas à conversão em capital produtivo (Mp + T2), ou seja, um maior volume de meios de circulação e de pagamento.3"

Em vista disso, podemos concluir que, quanto menor for o tempo de rotação do capital, e, neste sentido, quanto mais rápido um ciclo produtivo for fechado, mais rapidamente o capitalista terá acesso ao capital dinheiro acrescido de mais-valia. Isto significa que, em tese, menor será a necessidade que ele terá de crédito (capital adicional adiantado). Adicionalmente, quanto menor o tempo de rotação, mais rapidamente se realiza a mais-valia, o que significa maior rapidez na acumulação. São estes, em linhas gerais, os fatores que impulsionam o grande capital a encurtar os estágios da produção.

***

O processo de financeirização está intimamente articulado a todas as transformações aqui elencadas e vem ganhando força principalmente a partir das últimas décadas do século XX. A questão que se coloca é que, tendo em vista a busca pela obtenção de D', ou seja, de mais dinheiro, no mais curto período de tempo possível, este processo tem como base de constituição a eliminação do próprio processo de produção4, encurtando o ciclo de forma a termos apenas D-D'. Ou seja, a geração de mais dinheiro sem passar pelo processo de produção-distribuição-consumo de mercadorias. Do ponto de vista da obtenção do retorno para o capital, este caminho é perfeitamente compreensível tendo em vista que "o processo de produção não passa de elo intermediário inevitável, de mal necessário do mister de fazer dinheiro" 5. O que interessa para o capitalista é obter D', de modo que, o melhor caminho a ser seguido para atingir este objetivo é sempre o menor caminho.

No entanto, o movimento que parece muito "lógico" do ponto de vista do capitalista individual, do ponto de vista do processo de acumulação em seu sentido ampliado, possui contradições significativas. O que aparece como sendo "[…] um valor que valoriza a si mesmo […]" é, em essência, reflexo de uma punção da mais-valia gerada no circuito produtivo ou, em outras palavras, uma transferência de riqueza. Transferência esta que tem como um de seus principais mecanismos o serviço da dívida pública, que sustenta uma grande parte dos rentistas através do comércio de títulos públicos. Não há, nesta esfera, produção de mercadorias nem de mais-valia, não há criação de valor. O que existe é um constante deslocamento de uma parte de dinheiro ocioso para a esfera financeira em detrimento da produtiva a qual, por meio do capital financeiro, constitui-se no espaço privilegiado de produção de valor.

Trechos extraídos do artigo Os fundamentos do processo de financeirização no capitalismo contemporâneo, de Tatiana Brettas. Revista O comuneiro, nº 2, março de 2006.
1 Karl Marx . O Capital . Livro 1, vol 1 e 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p.56.
2 Hilferding usa a letra T para identificar o que Marx identifica com a letra F, a força de trabalho
3 Hilferding, Rudolf. O capital financeiro. SP, Nova Cultural, 1985, p.74
4 "A forma dinheiro do capital, A [D], abre e fecha o circuito capitalista A — M — A' [D — M — D'], de tal modo que é possível considerá-la em si mesma, deixando de lado não apenas a forma mercadoria (meios de produção, produtos), mas o processo de produção inteiro. A — A' [D — D']: dinheiro gerando dinheiro como a pereira produz pêras, diz Marx, a propósito do capital de empréstimos (financeiro)" (Suzanne de Brunhoff. A hora do mercado: crítica do liberalismo . São Paulo, Editora Universidade Estadual Paulista, 1991, p. 155).
5 Karl Marx . O Capital . Livro 1, vol 1 e 2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980, p. 58.
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