Dando prosseguimento à matéria publicada na edição anterior de AND [Advogados do Povo em missão no Brasil], publicamos nesta ocasião os resultados da Missão Internacional de Investigação da IAPL realizada em Rondônia em dezembro do ano passado e entrevista exclusiva com o presidente e o vice-presidente da IAPL, Dr. Edre Olalia e Dr. Julio Moreira.
Advogados ouviram detentos do Urso Branco
e condenaram a violação dos direitos do povo
A IAPL
A IAPL, sigla de International Association of People's Lawyers, é uma organização composta por advogados, juristas, estudantes de Direito, assessores e trabalhadores da área jurídica. Fundada no ano 2000, ela conta com membros no Afeganistão, Austrália, Brasil, Bélgica, Índia, Nepal, Filipinas, Holanda, Suíça e Turquia, além de observadores na Argentina, Bangladesh, Bolívia, Canadá, Colômbia, Congo, Cuba, Indonésia, Japão, Alemanha, Grécia, México, Paquistão, Coréia do Sul, Coréia do Norte, Espanha, Reino Unido e USA.
Em seu último congresso, realizado em 2006, um membro brasileiro pertencente ao Núcleo dos Advogados do Povo – NAP Brasil, seção brasileira da IAPL, o Dr. Júlio Moreira foi eleito para a vice-presidência da Associação.
A Missão
A missão partiu para o estado de Rondônia logo após a reunião anual da diretoria da IAPL, que aconteceu no Brasil, no final do mês de novembro do ano passado. Além dos membros da diretoria da IAPL, outros advogados foram convidados individualmente pelo NAP e pelo Cebraspo (Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos) para integrarem a missão. Além de desempenhar o papel de anfitrião, o Cebraspo foi o organizador do conjunto de atividades desempenhadas pelos advogados.
Durante a investigação sobre a situação carcerária em Rondônia, a missão realizou o que poucos conseguem: adentrar nas dependências do presídio Urso Branco, masmorra semifeudal condenada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e alvo de um pedido de intervenção pelo o Supremo Tribunal Federal devido às denúncias de violação de direitos dos detentos. Somente uma delegação internacional com a representação de seis países para abrir os portões que já encobriram a tortura e o assassinato de dezenas de detentos. Após a grande repercussão produzida pela presença da missão e a firmeza e persistência dos advogados, a delegação pôde entrevistar a direção do presídio e o Juiz da Vara de Execuções Penais de Porto Velho, Sérgio William Domingues Teixeira.
Na carceragem do Urso Branco, os advogados ouviram e prestaram solidariedade ao camponês José Gonçalves Filho, ativista da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), alvo de uma intensa campanha de criminalização do movimento camponês combativo, desencadeada pelas forças de repressão a mando do latifúndio, contando com a cobertura do monopólio de imprensa serviçal da grande burguesia, do latifúndio e do imperialismo. José Gonçalves Filho, mais conhecido como "Zé Vêncio", foi preso no dia 20 de novembro de 2008 em uma armação do latifúndio e forças de repressão do Estado. Neste dia três companheiros seus, Evandro Dutra Pinto, Edmilson Gomes de Oliveira e Adauto da Silva Filho, todos camponeses, foram assassinados covardemente por pistoleiros numa emboscada no município de União Bandeirantes – RO. Logo após o assassinato, policiais surgiram na área onde José Gonçalves Filho morava com sua família e o detiveram sem maiores explicações acusando-o pelo assassinato.
A delegação de advogados também ouviu os demais presos, visitou a carceragem onde averiguou as condições dos detentos. E como relatamos na edição anterior de AND, também investigaram a situação carcerária na cadeia pública de Ariquemes.
A Missão também levou a sua solidariedade até Jacinópolis, pequeno vilarejo construído por camponeses no estado de Rondônia que se transformou em um grande símbolo da determinação e firmeza camponesa e uma ameaça para o velho Estado, que tentou de todas as formas atacar, reprimir e criminalizar o povo da região, chegando ao ponto de ocupar militarmente a região. [ver AND nº 42, abril de 2008 – Perseguição e assassinato de camponeses em Rondônia]. Em Jacinópolis os advogados se encontraram com Gilson, filho de José Gonçalves e ouviram dele e de muitos outros camponeses o relato de suas experiências de luta, a violência do velho Estado semifeudal e semicolonial, a ação dos bandos de pistoleiros e muitas outras violações dos seus direitos.
Conclusões preliminares da Missão de Investigação e Solidariedade da IAPL*
A delegação quer expressar sua preocupação sobre as condições carcerárias nas prisões de Rondônia, a repressão de camponeses pobres e as condições de trabalho dos advogados do povo.
1
O principal problema das prisões, particularmente Urso Branco, é a superlotação. O prédio não fornece um tratamento básico de direitos humanos aos detentos, nem uma devida condição de higiene. Os programas sociais são muito insuficientes. Os detentos só podem ir para o banho de sol uma vez por semana por um curto período, quando legalmente eles têm direito ao banho de sol todos os dias. Parece não ser-lhes fornecida alimentação suficiente. Não há programa social para ressocialização. Possuem apenas possibilidades limitadas de receber visitas de seus parentes. Um número significante tem casos se arrastando por muitos anos. Se essa for a situação das condições carcerárias em todo o Estado de Rondônia, é uma situação muito preocupante.
2
A delegação pode falar com vários camponeses detidos e alguns de seus familiares. O caso de José Gonçalves parece ser um exemplo de métodos ilegais de investigação e graves falsas acusações. José contou à delegação que tem sido sistematicamente ameaçado por pistoleiros que aparentemente atuam por ordem de latifundiários. José contou para a delegação que foi capturado depois de um ataque na sua fazenda por policiais e pistoleiros. José foi acusado de assassinato e posse ilegal de armas.
Baseado na informação recebida durante entrevistas com outros presos, foi relatado que métodos similares foram utilizados em outros casos no estado de Rondônia. Os camponeses presos, com quem a Missão conversou estavam lutando por sua terra e sobrevivência própria e de suas famílias. Foram todos acusados pelas mesmas infrações, posse ilegal de armas, mesmo que a posse de espingardas por camponeses seja comumente aceita. A delegação está muito preocupada com esse fato.
3
Nossos colegas advogados falaram das dificuldades experimentadas na prática da profissão. Um de nossos colegas, Ermógenes Jacinto de Souza, que trabalha em defesa do povo pobre, tem sido gravemente ameaçado e obstaculizado em seu trabalho. Expressamos nossa preocupação com o fato de que um advogado trabalhando pelo interesse do povo seja acusado de desacato por exercer sua profissão. A delegação espera que a Ordem dos Advogados do Brasil leve em consideração nossa preocupação com advogados que estão assumindo casos de camponeses pobres encarcerados.
4
A delegação, no momento, está processando toda a informação, materiais e dados que reuniu e ainda receberá. A Missão irá considerar e levar em conta tudo isso e irá incluir no Relatório Final.
Preliminarmente, a Missão quer expressar sua consternação sobre a situação de direitos humanos em Rondônia. Ainda que o Estado brasileiro tenha sido responsabilizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo massacre de Corumbiara e sobre as condições carcerárias do Urso Branco, as violações aos direitos humanos continuam sendo praticadas.
Enquanto o governo brasileiro não toma nenhuma ação decisiva para resolver o tremendo problema da falta de terra para o povo pobre, há relatórios creditáveis e indicações de que oprime aqueles que lutam por um direito básico que é a posse e uso da terra. O problema da terra em Rondônia é a principal fonte da desigualdade social, desemprego e pobreza.
As recomendações feitas pela Corte Interamericana sobre as questões do Urso Branco e das vítimas de Corumbiara devem ser imediatamente implementadas e as violações aos direitos humanos que estão ocorrendo no estado de Rondônia devem terminar.
A delegação espera que a Ordem dos Advogados do Brasil, organizações de direitos humanos e indivíduos preocupados levem em conta nossa preocupação com os casos dos camponeses presos como acima mencionado.
A Missão clama pelo respeito aos direitos humanos dos camponeses pobres em Rondônia e em outros locais semelhantes.
A Missão urge que passos sejam dados para proteger advogados e outros defensores dos direitos humanos envolvidos em ajudar e defender o povo pobre de ameaças, perseguições e outras violações.
*Extraído do relatório da IAPL reproduzido no sítio do Cebraspo
Entrevista com o Dr. Julio Moreira (membro do Núcleo dos Advogados do Povo – NAP Brasil e vice-presidente da IAPL) e Dr. Edre Olalia (advogado das Filipinas, presidente da IAPL)
AND: Qual o papel das missões internacionais de investigação e solidariedade desenvolvidas pela Associação Internacional?
Dr. Julio: A IAPL, como uma organização internacional de advogados em defesa dos direitos dos povos, atua na denúncia de graves violações a esses direitos, amparada pelo extenso rol de declarações e tratados internacionais em matéria de direitos humanos. O fato é que os governos, com base na política da "guerra ao terror", e outras políticas, como a de criminalização e extermínio do povo pobre que ocorre no Brasil, violam as normas que eles mesmos ratificaram na ordem internacional.
Além de exigir o cumprimento das normas internacionais, a IAPL atua fortalecendo as organizações locais, a exemplo do Núcleo dos Advogados do Povo do Brasil, reconhecendo o papel principal das organizações locais para a solução dos problemas de cada povo.
Desde sua fundação, em 2000, a IAPL tem sido um relevante instrumento de troca de experiências entre vários países, pois há muitas coisas em comum quanto aos tipos de violações, como desocupações forçadas de camponeses, prisões arbitrárias, execuções sumárias, bem como ataques aos advogados no exercício da profissão.
Dentro de suas atividades, a IAPL realiza missões internacionais de investigação, chamadas no sistema jurídico internacional de "Fact-Finding Missions", ou seja, o envio de uma delegação internacional de advogados para investigar as violações, entrevistando-se com vítimas, autoridades governamentais e entidades e indivíduos em solidariedade, bem como documentando com material audiovisual.
AND: E qual foi a motivação da realização, desta vez no Brasil, de uma Missão como essa?
Dr. Julio: Após receber uma série de denúncias sobre desocupações forçadas, prisões e assassinatos de camponeses organizados em luta pela terra no Brasil, especialmente na região amazônica, e dirigidos contra a organização Liga dos Camponeses Pobres, a IAPL foi convidada a realizar uma missão internacional de investigação, visando constatar in loco as alegadas violações.
A Missão se dirigiu ao estado de Rondônia no dia 1º de dezembro de 2008, e percorreu o estado por quatro dias, apurando três aspectos de violações: situação carcerária em geral e camponeses presos por perseguição política, em particular; ataques à organização camponesa (acusações, desocupações forçadas e execuções sumárias); ataques à advogados no exercício da profissão. As constatações da Missão foram expostas à imprensa de forma objetiva nas Observações Preliminares.
Os advogados internacionais tiveram acesso às dependências internas do presídio Urso Branco. Receberam relatórios de organizações não governamentais, como a Comissão Justiça e Paz, e também do Juiz da Vara de Execuções Penais de Porto Velho, o Dr. Sérgio William Domingues Teixeira, e tiveram conhecimento do pedido de intervenção federal feito pelo Procurador Geral da República a partir das denúncias feitas anteriormente. Além disso, a presença da Missão foi determinante para a interdição daquele presídio.
AND: Eu tenho que lhe perguntar sobre a viagem que vocês fizeram a Rondônia e sobre as conclusões que tiveram a respeito das condições de vida e de luta dos trabalhadores de lá.
Dr. Edre Olalia: O que nós percebemos em Rondônia foi um povo muito organizado e com um alto grau de militância. Lá os trabalhadores são bravos e grandes conhecedores dos seus direitos. Nós ficamos impressionados com a determinação e a maneira como eles se organizam. Isso tudo com uma experiência de muito tempo sofrendo diferentes tipos de ataque e repressão do latifúndio, com o aval do Estado.
AND: Em comparação com outros países que a IAPL visitou, o que vocês puderam constatar?
Dr. Edre Olalia: Eu, particularmente, estive nas Filipinas e na Índia e basicamente percebi que em Rondônia o movimento camponês é mais organizado e combativo, diferente da Índia, onde nós também estivemos em uma missão. Lá, milhares de pessoas não têm nem um lugar para dormir. A maioria daquele povo não sabe dos seus direitos, mas eles têm certeza de que algo está errado. O que eles querem é o mesmo: um pequeno pedaço de terra para plantar e viver. Eles reivindicam sua liberdade, mas não têm a organização do povo de Rondônia, porque em Rondônia muitas pessoas solidarizam-se com a causa, assim como outras forças de fora daquele estado, e isso é muito importante. Logo, a diferença do Brasil, especificamente Rondônia, é que lá os trabalhadores são vítimas e já descobriram que são vítimas e em outras localidades que visitamos os trabalhadores ainda não tomaram essa consciência.