Mais de 80 policiais militares, carros, cavalos, cães e helicóptero. Bombas de "efeito moral" e armas pesadas. O aparato repressivo do Estado, sob a gerência, em Minas Gerais, de Aécio Neves (um dos principais aliados de Luiz Inácio entre os governadores e dentro do PSDB), atacou na tarde de 25 de marçocerca de 40 camponeses que, dois dias antes, haviam reacampado na Fazenda Guiné, em Montes Claros.
Em torno de 20 camponeses e camponesas foram presos, levados para a Polícia Federal, onde foram identificados e liberados. Entre os policiais militares, cinco estavam feridos: três atingidos por pedradas, um por ter se chocado contra uma cerca e caído, e um outro mordido pelo próprio cachorro. Entre os camponeses, um teve o rosto cortado sob o olho esquerdo, atingido por bomba de "efeito moral"; outro foi atingido na perna por disparo de bala de borracha à "queima-roupa". Vários apresentavam marcas de espancamento, como um dos membros da Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas (LCP), com hematomas nas costas e marca de uma mordida desferida por um policial do Gate (Grupo de Ação Tática Especial) da PM de Montes Claros. A resistência da Bandeira Vermelha1, em Montes Claros, que levou ao confronto com a PM, além de desmoralizar a "reforma agrária" e as "desocupações pacíficas" de Luiz Inácio e Aécio Neves, revelou também o sopro do vento das revoltas e frustrações do campesinato e das massas pobres, que em breve será um furacão. A "paciência" acabou.
A resistência
Por volta das 10 horas da manhã do dia 25 de março, uma patrulha da PM foi ao local onde os camponeses estavam acampados. Lavraram a ocorrência e fizeram ameaças. Eram 16 horas quando a PM retornou com todo o aparato repressivo e uma ordem do juiz debaixo do braço. O helicóptero passou a sobrevoar, de longe, o acampamento. Os camponeses, diante do iminente avanço dos policiais, começaram a cantar uma das músicas de luta, o Conquistar a terra, um hino do movimento.
Os policiais se perfilam, seu comando ordena: "avançar, avançar!" Os camponeses se dispersam, recuam. Os policiais entram pela porteira. Chovem pedras e paus. O policial que ia à frente é atingido na cabeça. Um outro se choca com a cerca, buscando o caminho de volta. Não seria preciso o comando da PM ter ordenado: "recuar, recuar!"
Recomposta a formação, a tropa investe uma segunda vez: "avançar, avançar!" Nova chuva de pedras, desta vez vindas de outra direção. Nova contra-ordem: "recuar, recuar!"
Os camponeses acompanhavam toda a movimentação da Polícia Militar, quando ouviram novamente a voz de comando: "avançar pelos flancos!" Desta vez, nem paus ou pedras, mas o chamado firme de um camponês: "100 companheiros na direita, 100 companheiros na esquerda, 200 no meio!" Os militares nem ultrapassaram a porteira.
Pelo rádio, o capitão que comandava a operação pediu que o helicóptero se aproximasse, procurasse as 400 pessoas, mas que mantivesse uma certa distância: "cuidado, eles têm ‘coquetéis Molotov’!"
O helicóptero confirmou o que os camponeses já sabiam: não havia 400 companheiros. A tropa entrou atirando enquanto o helicóptero jogava as bombas e fazia o cerco para que os camponeses não alcançassem a mata.
Selvageria e covardia
Os camponeses presos foram torturados ainda na área da Fazenda Guiné.
Uma camponesa mais velha, talvez por ser negra, foi açoitada com uma vara de pau; um jovem, agredido com paneladas; um menino de cinco anos foi obrigado a se deitar com o rosto virado para o chão, enquanto seu tio era agredido por policiais.
Um dos membros da Liga, identificado depois de detido, já algemado, foi cercado pelos membros do Gate e agredido a socos, pontapés e mordidas.
Deitado de barriga para baixo, também já algemado, um camponês ainda ouviu seu algoz premeditar a agressão: "vamos ver se funciona!", teria dito antes de disparar uma bala de borracha em sua coxa.
Porém, a selvageria e o ódio das classes dominantes não escondeu o outro lado da moeda: sua covardia. Alguns camponeses presos relataram que o Gate, em nenhum momento, entrou em combate, se limitando a dar ordens e a agredi-los depois de dominados.
Superioridade moral
Na sexta-feira pela manhã (26/03), se reuniram todos os camponeses que haviam sido presos e os que escaparam pela mata. Muita revolta, nenhum lamento. Muitas histórias, muitas façanhas. Algumas dores, nenhum arrependimento pela decisão. E a população do bairro se acercava dos camponeses, confortava e manifestava apoio. E muitos se "alistavam" para entrar na Guiné ou em outra terra.
E se falamos de superioridade moral, um relato simples como todos os outros demonstra a grandeza do espírito dos camponeses. Voltamos ao camponês que recebeu o tiro na coxa. A bala queimara o local atingido, que sangrava. Os policiais perguntavam acusando: "Você é o líder?" — "Não, eu sou de Mirabela" (pequena cidade vizinha), respondia o camponês. "Você é o líder?", insistiam. "Não, eu sou de Mirabela…"
Extenuados e sem resposta, os policiais o levantaram para que fosse até o ônibus que levaria os camponeses presos. Um dos inquisidores, passando recibo de seu fracasso, atacou: "Você é vagabundo, rapaz!" A reposta veio rápida: "E quem foi que plantou esta roça toda? Foram vocês?" Um safanão do policial, com uma ordem impossível de ser cumprida —"Me respeita, rapaz!"—, encerraria o episódio se o camponês não houvesse decidido mais uma vez colocar no seu devido lugar o representante do Estado burguês e latifundiário: "Você me chamou de vagabundo, e eu perguntei quem plantou esta roça. Eu não sou vagabundo, eu sou trabalhador!"
Dois anos de luta pela terra
É preciso ir ao fundo da luta camponesa, da verdadeira saga de heroísmo e resistência do campesinato brasileiro, para compreendermos bem a verdadeira dimensão do problema agrário e sua importância para a conquista da verdadeira democracia em nosso país. Mesmo porque um festival de contra-informação tem sido divulgado nos monopólios dos meios de comunicação nos últimos dias, opondo Luiz Inácio — "não vai ter reforma agrária no grito" — e seu governo a João Pedro Stédile — "a maioria dos latifundiários são gente de bem"— e o MST, com o objetivo de ocultar o verdadeiro caráter de classe das lutas camponesas em curso.
Os camponeses que reocuparam e resistiram na Fazenda Guiné, haviam sido retirados da terra nos dias 4 e 5 de março, por um aparato repressivo que envolveu mais de 150 policiais militares. Ao todo, 58 famílias moravam na área. A terra foi dividida pelos próprios camponeses, que desde abril de 2002 lutavam pela terra. Quando da decisão da justiça e do governo do estado de Minas Gerais de reintegrar o latifundiário na posse, os camponeses já davam como certa a compra da fazenda pelo Incra. E a dinâmica dos acontecimentos demonstra bem a falácia que classes dominantes e oportunismo, representadas por Cardoso e Luiz Inácio, chamam de "Reforma Agrária". Em meados de 2002, quando se tornava iminente o conflito na Bandeira Vermelha (Fazenda Guiné), com o latifundiário brandindo decisão liminar de um juiz de Montes Claros para que a força policial lhe reintegrasse a propriedade, foi obtido o primeiro acordo na então recém criada Vara de Conflitos Agrários do Estado de Minas Gerais. Naquele momento, as classes dominantes, em pugna eleitoral e em meio à crise econômica, recessão, desemprego, miséria etc., não vislumbravam as condições políticas necessárias para reprimir as massas em luta. Tanto que a Vara Agrária reproduziu o mesmo tipo de acordo por todo o estado. O suficiente para que juízes, Ministério Público, governantes etc., proclamassem pelos quatro cantos seus méritos em "pacificar" os conflitos agrários.
Na verdade as decisões provisórias tinham por objetivo ocultar a justeza da reivindicação das massas camponesas, dar cobertura para a manutenção dos privilégios dos feudais e escravocratas latifundiários que constituem a base da exploração da burguesia sobre o proletariado e ao mesmo tempo são a base política de sustentação dos governos pró-imperialistas em nosso país. De toda forma, feito o acordo e os camponeses na posse da terra, iniciou-se um longo e tenebroso processo de enrola. No primeiro momento, a elite latifundiária que controla Montes Claros reclamou ser a área da fazenda de "reserva florestal". A seguir, falou-se que a mesma não poderia ser desapropriada por ter seu subsolo comprometido com direito de lavra mineral, devidamente regularizada. Os próprios camponeses afastaram este impedimento, conseguindo uma carta da empresa (Lafarge, multinacional francesa) abrindo mão de explorar a área. Nada disso, porém foi suficiente para que o Incra desapropriasse a terra e assentasse os camponeses. O órgão repetia os pedidos de "paciência" aos camponeses, que não haveria conflito etc., etc., etc.
Nesse período, os latifundiários passaram a se armar, contratar milícias para atacar camponeses e o governo reacionário a promover reintegrações de posse acertadas entre Aécio Neves, seu Comando Militar, os dirigentes da Faemg (Federação da Agricultura do Estado de Minas Gerais) e Sindicatos Rurais, e também enquadrando a Vara de Conflitos Agrários, que, com 80% de seus "acordos" vencidos, sem que o Incra (governo federal) apresentasse solução, se transformou em uma indústria de concessões de liminares de reintegração de posse, assumindo seu insignificante papel de apêndice das classes dominantes na repressão "democrática" as massas oprimidas. Mesmo porque Luiz Inácio também não revogou a medida provisória de Cardoso que impedia a vistoria do Incra em terras ocupadas e criminalizava as tomadas de terras pelo movimento camponês.
Porém, não é possível compreender tudo o que aconteceu se não levantarmos o problema de como os camponeses viveram, lutaram e produziram nesse período, dois anos, na contramão da política agrícola latifundiária batizada de "agronegócio" pelo governo oportunista FMI-PT.
A luta pela produção
Ao contrário do MST — que dirige suas ocupações de terra no sentido de que os camponeses permaneçam acampados até que o governo (seja qual for sua composição de classe) libere recursos e créditos —, a LCP do Norte de Minas orienta suas lutas na direção do corte imediato das terras, para que os camponeses possam produzir e se organizar politicamente independentes das classes dominantes, que controlam e gerenciam o Estado. Assim é possível lograr uma união consciente em que a cooperação para alavancar a produção se realize a partir dos interesses do campesinato e seus aliados (classes oprimidas), e não forçada pelo discurso hipócrita das classes dominantes (burguesia e latifúndio), de um associativismo que reproduz o mesmo sistema de mando e privilégios individuais, se sobrepondo ao interesse coletivo, que caracteriza a sociedade burguesa (imperialista) de nossos tempos.
A iminência da destruição da lavoura da Bandeira Vermelha, ou sua apropriação pelo latifundiário, revelou o verdadeiro caráter da luta camponesa. Os que trabalham são os camponeses pobres, os que roubam são os latifundiários protegidos pelo Estado. Um dos pilares da luta camponesa, a luta pela produção — a produção que o povo conhece, e não o saldo da balança comercial, do qual Luiz Inácio, Palocci e a imprensa submissa até babam quando falam — revelou sua magnitude.
Na Bandeira Vermelha, em lotes individuais, as 58 famílias plantaram pelo menos 250 hectares de milho, 50 de feijão, mandioca, abóbora e hortas individuais. Cerca de 40 cabeças de gado, 50 porcos e mais ou menos 200 galinhas também alimentavam a população da área. Produzindo individualmente, a princípio, os camponeses, orientados pela Escola Popular em formação na área, com o apoio de estudantes do Núcleo de Ciências Agrárias (NCA) da UFMG e também estudantes da Unimontes, quantificaram sua produção e fizeram cursos rápidos na Semana do Produtor Rural do NCA. Planejavam ainda cursos de alfabetização e uma produção cooperada em maior escala, partindo da base daquele primeiro plantio.
Ao mesmo tempo, diversos desempregados dos bairros vizinhos à Bandeira Vermelha buscavam lenha nos lotes e em troca ajudavam no plantio e se apoiavam nos outrora desamparados camponeses. As áreas que os técnicos do Incra afirmavam não "prestarem para nada" eram utilizadas coletivamente para o pouco gado pastar. Projetava-se a exploração da cachoeira do local, com a edificação de infra-estrutura simples para e também promover visitas organizadas de estudantes colegiais na área, que serviria tanto de diversão como para conhecimento e estudo sobre questões minerais.
Enfim, estava em curso o que se poderia chamar de uma transformação agrária verdadeira. E por mais que as televisões pretendessem transmitir a mensagem que aos camponeses só restava resignar-se com as decisões do juiz, e a esperar a "Reforma Agrária" de Luiz Inácio, o que calou fundo na população foi a revolta e o apoio necessário para que os camponeses de Montes Claros, com o apoio da Liga e de lideranças de outros acampamentos da região decidissem, mesmo que em pequeno número, retornar para a Fazenda Guiné e resistir.
Estes são os fatos. Ao contrário dos arroubos de Luiz Inácio e da farsa do MST, os camponeses resistem, lutam, e forjam os elementos objetivos e subjetivos da necessária revolução agrária e democrática que o Brasil tanto precisa.
1 Nome dado ao acampamento pelos camponeses em homenagem a heróica luta ocorrida em Betim, em abril de 1999, dirigida pelo LPM (Luta Popular pela Moradia) e MCL (Movimento das Comissões de Luta), onde os trabalhadores resistiram à repressão policial comandada pelo Prefeito do PT, Jésus Lima. Dois trabalhadores foram assassinados, mas as casas e lotes, enfim, conquistados.