Antônio Ferrer é um dos líderes do movimento camponês e membro do Partido Comunista Revolucionário da Argentina. Em visita ao Brasil, em dezembro, concedeu esse depoimento à A Nova Democracia, onde traça um vivo retrato da situação camponesa no país vizinho e como historicamente se chegou a essa situação.
O último censo agrário na Argentina foi realizado em 2002. O anterior, em 1988. Passaram-se, portanto, 14 anos entre um e outro. O censo mostra que a produção de grãos na Argentina avançou de 30 para 80 milhões de toneladas. Simultaneamente, desapareceram 100 mil pequenos e médios camponeses, um terço do total. Houve um aumento da produção, particularmente de soja. Em 2005 foram produzidas 85 milhões de toneladas de grãos, sendo a metade de transgênicos e a tecnologia tem possibilitado produção cada vez maior, alentada pelo bom preço da soja no exterior. Toda soja argentina é exportada, uma vez que seu consumo no país é desprezível.
Na Argentina, existem 400 mil “explorações agropecuárias”, conceito muito amplo, porque engloba desde a propriedade da Benetton (monopólio italiano têxtil) que possui um milhão de hectares na Patagônia Argentina — sendo o maior latifundiário de extensão de terra —, até um camponês que possui 2 hectares.
Lá como cá
A Argentina amarga o triste privilégio de ter 6 mil estâncias (latifúndios) de mais de 5 mil hectares, abarcando 52% de toda terra. No outro extremo, entre os que possuem menos de 100 hectares, são 200 mil proprietários e detém apenas 4 % da terra. Assim está apresentado o problema agrário na Argentina. Atrás da aparência de um dos países mais desenvolvidos da América Latina, na realidade o latifúndio reina soberano no país.
Os números censitários apontam que o latifúndio, além de não ter desaparecido, se fortaleceu, crescendo levemente seu número no período em que se realizaram os censos. Curioso é que alguns estudiosos dizem que o latifúndio e os latifundiários são uma coisa do passado. Na cabeça dos pesquisadores e economistas, o latifúndio é um resquício do feudalismo que desapareceu com o desenvolvimento do capitalismo.
Porém, se é certo que os latifundiários são sobrevivência do passado, o capitalismo o desenvolveu sobre novas bases.
Esse reinado hegemônico ao nível da propriedade da terra, dos latifundiários, vem desde 1810, quando a revolução que libertou a Argentina da Espanha apresentou duas tarefas fundamentais: a antifeudal e a democrática. Devido à classe dos personagens que predominaram, a primeira tarefa foi executada com êxito, depois de 14 anos de luta armada (1810 — 1824). Porém, a segunda tarefa, a democratização, principalmente da terra, não foi levada a cabo e, portanto, o fio condutor da história argentina, desde 1810, tem a classe latifundiária como componente da direção do Estado. Claro, esta questão não foi resolvida até hoje.
Muito cedo, houve lutas agrárias dos camponeses pobres e médios ao sul da província de Santa Fé, conhecida como Pampa Úmida ou Pampa Gringa, porque esta região recebeu um número elevado de imigrantes italianos, croatas e galegos a partir de 1890. As pessoas mais pobres da Europa foram trazidas como arrendatários dos latifundiários, que descobriram uma maneira de valorizar seus campos sem inverter capital nas propriedades.
A semifeudalidade
Os ingleses queriam carne, mas não a do gado criollo — que produz pouco -, mas outras de maior produtividade, que não consomem o tipo de pasto encontrado naturalmente no pampa. Os arrendatários então vinham, tomavam uma parcela de terra sob sua responsabilidade por três anos, comprometendo-se a entregar ao latifundiário um arrendamento de 40%. Ao fim de dois anos produzindo trigo, o camponês era obrigado a semear trigo junto com alfafa. A colheita do trigo preservava o pasto recém formado e o arrendatário era transferido a outra parcela. Assim, por três anos o latifundiário recebia 40% de renda e o pasto alfafado. Estima-se que estes imigrantes pagaram aos latifundiários 40 % do produzido durante 50 anos. Isso durou até o governo peronista, que liberou créditos estatais, quando ampliaram os pequenos proprietários, endividados, claro.
Essa é uma das características pelas quais afirmamos que a Argentina teve um desenvolvimento capitalista contido, apertado por duas grandes montanhas, que são o latifúndio e o imperialismo, porque o capitalismo não entrou na Argentina como produto de um desenvolvimento interno da burguesia. Nos alvores da fase imperialista, no século XIX, a oligarquia argentina se associa com vários imperialismos e invertem o que haviam começado. Toda a estrutura passa a servir para fornecer carne e grãos baratos a esses países. As estradas de ferro se encaminham para os portos, bem como a construção de frigoríficos.
Claro que essas inversões não servem ao desenvolvimento nacional, harmônico e integrado, mas a um projeto deformado para explorar melhor a nação.
A oligarquia Argentina tem uma longa tradição que pode traduzir-se assim: “comprar de quem compra de nós”. Inútil é dizer que a Argentina vende produtos agrícolas baratos e importa produtos industrializados, muito mais caros.
O governo de Perón, que classificamos como da burguesia nacional, promoveu a industrialização leve do país, alguma coisa da pesada — aço, petróleo — e no agrário chegou até a lei 13.247, de arrendamento e das parcerias rurais, que pôs um limite ao arrendamento e aumentou o prazo dos contratos, onde o arrendatário passou a pagar menos renda, com mais estabilidade na terra. Apesar disso, a oligarquia latifundiária ficou viva, tanto que 7 anos depois, a oligarquia expulsou Perón do poder.
O “conto chinês”
Na Argentina ocorreu o que chamamos de “conto chinês”, porque Kirschner, em setembro de 2004, dois meses antes da visita do presidente chinês, criou toda uma corrente de informação dizendo que havia feito um convênio com a China e que esta enviaria 20 bilhões de dólares para o pagamento de uma parte da dívida externa. Era uma coisa que faria a Argentina passar do 3º para o 1º mundo graças aos dólares chineses.
Cada ministro que era consultado agregava mais um capítulo à historieta, de modo que ela se tornou um novelão de muitos capítulos.
Quando chegou o presidente chinês, claro, foi uma decepção, porque o convênio era outro, válido até 2020, com muitas coisas vagas. Como os chineses são mais 1,3 bilhão de pessoas, a burguesia argentina acredita que qualquer produto que chegue àquele mercado propiciará um lucro extraordinário.
A oligarquia argentina vem de uma velha tradição de abastecedora de matérias-primas aos distintos imperialismos. Primeiro, de lã de ovelha para os europeus, principalmente alemães. Depois, de carne de primeira qualidade aos ingleses; mais tarde, o de grãos aos europeus; durante o regime militar, o de grãos e carne aos russos — que enfrentavam o boicote ianque pela invasão do Afeganistão — e, agora, abastece de soja à Europa e ao extremo Oriente.
A sojização da Argentina se acompanha de um argumento da oligarquia latifundiária, que diz que a soja não é um grão qualquer porque é processada na Argentina, fomenta a indústria, que emprega mais força de trabalho, o tal valor agregado, etc. Acontece que ao se consolidar a relação com a China como compradora, exportou-se para lá 100 milhões de toneladas de soja, mas já se exporta o grão cru, e não mais beneficiado. Isso acontece com o Brasil também, porque a China é a maior compradora de soja do mundo.
Camponeses se levantam
O início da atuação de nosso partido data de 1968 e conseguimos conformar uma corrente que advoga uma aliança do campesinato com a classe operária no seio da Federación Agrario.
Nesse setor, também temos trabalho no Movimiento de Mujeres em Lucha, que no período de Menem fez toda uma propaganda contra o endividamento dos chacareiros. Menem divulgou muito a necessidade de adquirir tecnologia, isso porque a sojização implica em semeadura direta, que por sua vez exige máquinas que na Argentina custam 30 mil dólares e dependem de um trator que custa 70 mil dólares. Muitos chacareiros adquiriram créditos para comprar os tratores a serem saldados em 5 anos e se verificou que isso era irremissível, porque no final desses 5 anos eles estavam devendo 3 ou 4 tratores.
No governo Menem, desencadeou-se uma jornada de lutas que continua e se incrementa até hoje.
A classe operária sofreu a pior baixa de salários da história, pois de um dia para o outro os que ganhavam 300 dólares passaram a ganhar 100. E como os principais prejudicados foram os assalariados, os principais beneficiados exportavam, por que o que se exportava por 100 pesos, passou a valer 300 pesos. A soja semeada em 2001 valia 170 pesos a tonelada; quando foi colhida, em maio de 2002, valia 900 pesos. O campesinato médio, vinculado à produção de grãos ficou tranquilo e o governo aproveitou para impor um imposto interno de 20 % para todas as exportações de grãos. Mas, como o aumento havia sido tão escandaloso ninguém protestou.
Aí começou a aparecer a Argentina mais profunda, o campesinato pobre que tem assento principal nas províncias de economias regionais e é majoritariamente composto pelos povos originários (na Argentina, a palavra índio soa como provocação, porque Colombo lhes pôs este nome acreditando ter chegado às Índias).
Temos uma experiência de quatro anos, mas já conseguimos construir organizações de massas, uniões camponesas por região, sendo que a principal está na província do Chaco, com camponeses pobres que são da etnia toba. Estes companheiros têm pequenas parcelas de terra, muito pequenas, dois ou três hectares por família. Começamos o trabalho com um grupo de quase 700 famílias que estão em um lugar que se chama Pampa do Índio e ganhamos companheiros. A primeira luta com eles foi conseguir as sementes de algodão para toda a semeadura. Há doze anos não plantavam algodão porque não tinham dinheiro para comprar as sementes.
Para esta primeira conquista, marcharam 140 quilômetros até a capital da província do Chaco, que se chama Resistência. A marcha durou quatro dias e as famílias foram inteiras, chegando a cidade em 11 de outubro de 2002, porque os indígenas tomam o 11 de Outubro como o último dia de sua liberdade, uma vez que a América foi descoberta em 12 de outubro de 1492.
O resultado desta marcha foi que o ministério do desenvolvimento nacional liberou as sementes e, fortalecidos, os camponeses conformaram legalmente a união camponesa. Este ano o algodão foi semeado em novembro e houve uma seca que fez com que a colheita fosse muito baixa. Além disso, a tonelada que valia 1.200 pesos na semeadura, baixou a 400 pesos na colheita. Aí sobreveio a fome. Reuniram-se em uma assembléia, com muita discussão e se decidiu começar uma luta por um subsídio em dinheiro para que os camponeses se aguentassem — da semeadura até a colheita do algodão.
Diante de nossa análise, junto com os aborígenes, de que este governo era muito soberbo, muito duro, decidiu-se fazer um acampamento na praça central de Resistência. Chegaram à Resistência em 18 de junho, foram marchando até a casa do governo e, junto com as manifestações de apoio de outros setores, armaram o acampamento na praça.
Havia segurança, cozinha, toda organização que implica uma atividade desse tipo. Foram 30 dias de acampamento até que o governo cedesse, e aprovasse um subsídio de mil pesos por família e 200 quilos de mercadoria por mês. Não conseguimos o máximo, mas estava dentro de nosso planos.
Isso estimulou outros movimentos camponeses e setores de camponeses pobres não organizados. Mostrou-se que um caminho com linha correta, com organização e com firmeza se pode conseguir tudo.
Isso está impulsionando outra organização de camponeses pobres, a primeira construída pelo partido, constituída pelos companheiros do cinturão verde, os camponeses que produzem verduras em um arco ao redor das grandes cidades.
La Plata é a capital da província de Missiones, a mais importante do país, não em tamanho, mas economicamente. A produção no cinturão verde é feita nas quintas e existe uma modalidade de trabalho pré-capitalista, que é a meia: o dono da terra a arrenda e o camponês emprega seu trabalho e de sua família. Há mais de 20 anos organizamos a Associação de Meeiros e afins de La Plata, que vem travando duras lutas desde então. Esta é a experiência de trabalho com camponeses pobres mais antiga que temos. Cada uma dessas famílias tem seus filhos nas cidades, habitando as favelas. Eles estão voltando ao campo e passamos a organizar a esses jovens para ocupar as terras dos latifundiários.