Cantora, compositora, instrumentista e pesquisadora de cultura popular, a paulistana Daniela Lasalvia, sozinha ou nos dois grupos que participa, defende a cultura brasileira e trabalha novas vibrações sonoras através de percussão corporal e instrumentos feitos de sucata. Seu trabalho solo lhe rendeu o disco Madregaia, com duas músicas gravadas em tupi-guarani, tambores negros, bois do nordeste, música mineira, tudo falando de povo e natureza.
— Apesar de não ter músicos em minha família, desde menina me interessei por esse universo. Comecei bem pequena a estudar piano, depois violão. Mais tarde estudei canto popular, e fiz canto lírico na Rússia. Também estive no Chile ampliando meu conhecimento musical, — conta Dani.
— Comecei a cantar profissionalmente há 15 anos, através de Dércio Marques, que me convidou para participar de um show seu e de uma gravação. Então o caminho se abriu para mim, e logo comecei a pesquisar coisas bem brasileiras para poder gravar, além das minhas próprias composições, mas como não tinha verba o primeiro disco demorou quase dez anos para sair, — explica.
Lançado em 2007, o álbum duplo Madregaia , que significa ‘Mãe terra’, contém 26 músicas, com requinte de letras, melodia e arranjos bem elaborados, mesclando o folclore brasileiro e elementos étnicos da música mundial, em um trabalho essencialmente brasileiro.
— Entre outras, trato da formação do povo indígena brasileiro através da história de ocupação dos Tupis e dos Guaranis com a canção Quiquiô (kikiô) ; canto a história de hábitos ritualísticos de um toré, dos já extintos índios Tremembé de Almofala (CE), com a canção Água de Mani . Tive o privilégio de ter essas duas músicas, originalmente escritas em português, traduzidas para o tupi-guarani e assim gravadas, — conta orgulhosa.
— Canto a influência negra do ‘Côco de Zambê’, típico do Rio Grande do Norte, com ‘Olê Caninana’. Falo da história do rio Tietê, tão castigado pelo homem, falando do passado e alertando para o presente, na canção Tietê meu rio . Homenageio o também sofrido rio São Francisco na canção Feixe e Variante . Canto Mandu , que fala do rio Mandu, de Minas. Tem também uma canção chamada Meninos , só com vozes de crianças, e Palmas D’Água , feita somente com voz e percussão corporal, — acrescenta.
— É uma variedade grande de estilos, algo que gosto muito de fazer. Algumas pessoas dizem ser regional por ter viola, folia, bois, mas não concordo. Basta dizer que também tem Chico Buarque, Valsinha , e Heitor Villa-Lobos, Melodia sentimental . Essencialmente é o que chamo de música boa o que me interessa realmente fazer — continua.
Brasilidade e musicalidade em grupo
Além do trabalho solo, Dani participa de dois grupos essencialmente brasileiros: NOP – Núcleo Orgânico Performático e Vozes Bugras.
— O NOP surgiu de uma oficina de percussão corporal feita por Stênio Mendes, e que tinha também Fernando Barba, do grupo Barbatuques, como nosso professor. Dessa oficina, que foi um importante laboratório, além do NOP e também das Bugras, surgiu também o próprio Barbatuques: o Barba selecionou pessoas de lá para participar do grupo, — comenta.
— Somos sete componentes, trabalhando a possibilidade de utilizar os recursos da percussão vocal/corporal e estimular a investigação de materiais alternativos e suas possibilidades sonoras. Nossos instrumentos são feitos a partir de sucata, por exemplo, temos uma espécie de piano construído com garrafa pet, e tubos de PVC, com um som muito bonito, afinado com ar comprimido, — explica entusiasmada.
Já o Vozes Bugras, segundo Dani, busca resgatar canções, contos, ritos, mitos e lendas que remetem à identidade bugra-cabocla-mulata-mameluca-cafuza brasileira.
— O nome surgiu de uma brincadeira com o disco O Mistério das Vozes Búlgaras , da Bulgária. Brincamos que como cantamos o negro e o índio, teríamos que nos chamar Vozes Bugras. Depois viemos a descobrir que a denominação depreciativa ‘bugre’, dada aos indígenas brasileiros pelo colonizadores, provém do termo francês ‘bougre’, referente aos ‘hereges búlgaros’, resistentes à ocupação de seu território em séculos passados, — relata.
— O grupo é formado por sete mulheres, com muita percussão e pesquisas de canções indígenas e negras, algo ‘super raiz mesmo’. Entre outras, cantamos muitas músicas de domínio público, também nossas composições e de nomes importantes como Clementina de Jesus, — fala.
O repertório das bugras é uma espécie de resgate das raízes brasileira.
— Começamos pelas indígenas, como a Lenda da Mandioca, seguida pelo torém dos índios Tremembé de Almofala — CE, Água de Mani / Navura / Vamo pus cuibá , pelas águas do Ju Paraná , dos índios Juruna, adaptado por Marlui Miranda, e o canto das crianças Guaranis, Oreyvy Peraa Va’ekue , clamando pela devolução de sua terra, — conta.
— Depois vamos para o legado cultural vindo da África, falando da magia dos tambores, como no La Cacundê da comunidade do Quilombo do Mato do Tição/MG, e muitas outras coisas fantásticas. Também tem a canção popular do norte, o Boi Papai Curumiaçu, Mamãe Curumiari , carrega a fusão do indígena, do branco e do africano. Exaltando o valor de cura das plantas, vem o canto da Jurema , catimbó do Pará, na abertura da canção Boiadeiro , carregada da cultura do sertanejo em seus aboios, — continua.
Apesar do trabalho intenso com muito material recolhido e composições próprias, os dois grupos ainda não conseguiram gravar discos.
— Temos isso como projeto, juntamente com o meu segundo disco solo, ainda sem datas previstas. Contudo, não paramos de fazer shows , nos apresentando em todo o país, e principalmente aqui em São Paulo, — finaliza Dani.