A música sertaneja — assim chamada pelas fábricas de discos e pelos locutores de programas de rádio destinados ao interior — engloba sob esse nome uma variedade enorme de gêneros de músicas particulares de uma vasta zona geográfica em que predomina o som de um determinado instrumento: a viola de cinco cordas duplas, mais conhecida como viola caipira.
Desde o aparecimento dos primeiros discos de música sertaneja (inicialmente chamados de música caipira) a tendência foi para o estabelecimento de uma confusão entre as músicas de caráter local de determinadas regiões (toadas de cururu, de cateretê ou de samba rural), e certos gêneros que eram aceitos em áreas mais amplas, com pequenas variantes de estilo, como seriam os casos das modas-de-viola e das toadas (às vezes divididas em "toada mineira" e "toada paulista", por exemplo).
Tudo isso, na realidade, vinha indicar, desde logo, um primeiro sintoma da maior aproximação entre o campo e a cidade, e que se tornara possível desde o fim do século XIX através de quatro veículos de comunicação: dois antigos (o teatro musicado e o circo) e dois modernos (o disco e o rádio).
Nesse sentido pode-se dizer, hoje, que a música sertaneja — pelo menos na forma pela qual a conhecemos gravada em discos — é uma criação não muito antiga, e que corresponde a um produto de consumo destinado a populações identificadas pela origem, com hábitos, costumes e sons ligados particularmente à vida rural.
De fato, desde o fim do século XIX, quando no Rio de Janeiro o comediógrafo Artur Azevedo inaugurou a moda do caipirismo no teatro musicado (primeiro na revista O Tribofe, de 1981, e depois definitivamente a partir da comédia-opereta A Capital Federal, de 1897), o público das grandes cidades passou a tomar conhecimento da vida rural através de uma figura principal: a do caipira "engraçado" ou sem-jeito, que se sentia atrapalhado na cidade, tocava viola e falava das coisas do "sertão".
Do teatro, essa figura mais ou menos "inventada" do caipira (que também começava a aparecer na literatura nos contos do mineiro Afonso Arinos e dos paulistas Valdomiro Silveira e — mais tarde — Monteiro Lobato) passou para o circo e para o cinema mudo (graças às caricaturas de Genésio Arruda, precursor de Mazzaropi). E finalmente, chegou ao rádio e ao disco, a partir da iniciativa do divulgador da cultura caipira Cornélio Pires, que em fins da década de 1920 teve a idéia de trazer tocadores de viola da zona de Piracicaba para gravar nos estúdios da Fábrica Columbia na capital de São Paulo.
Desde o início ficou claro, porém, que esse aproveitamento de violeiros e cantores de modas e cururus amadores não combinava com a estrutura profissional dos meios do rádio e do disco. E foi então que começaram a surgir os "caipiras do rádio", fazendo rapidamente a fama de humoristas como Nhô Totico e Capitão Furtado, e ainda de duplas já interessadas em agradar ao público grã-fino dos shows de cassinos do Rio de Janeiro e dos balneários de Minas Gerais, como seria o caso de Alvarenga e Ranchinho.
O interessante é que, durante certo tempo, os dois tipos de "caipiras" e suas músicas de viola conseguiram coexistir com uma terceira tendência também ligada aos sons particulares das áreas rurais do Centro-Sul: a das "canções sertanejas", sofisticadamente compostas ao piano pelo engenheiro paulista Fernando Lobo, o Marcelo Tupinambá. Logo a partir da década de 1940, porém, a "música sertaneja" produzida na cidade (fosse por caipiras falsos ou verdadeiros) ganhou um público próprio, e surgir então um novo gênero de música comercial dentro do panorama geral da música popular brasileira.
O surgimento da era das duplas caipiras no rádio e no disco anunciava, na verdade, o aparecimento de um público que, não se tendo desvinculado ainda de suas raízes rurais, sentia faltar alguma coisa na música que as cidades lhe ofereciam. Quer dizer, embora já tendo acesso a estilos de vida urbana, ou mesmo residindo na periferia de grandes cidades, as pessoas do interior (ou recém-chegadas de zonas rurais) precisavam de um som que lhes lembrasse a música de sua região, mesmo que fosse estilizada sob a forma vaga e diluída da chamada "música sertaneja".
E é por isso que a essa música de sons ligados à área da viola caipira — que abrange a vasta região Centro-sul, compreendida por quase todo o estado de São Paulo, parte do interior do estado do Rio e ainda grandes espaços de Minas Gerais, Goiás, Paraná e Mato Grosso — viria juntar-se nos últimos anos do século XX uma "música nordestina" também fabricada a partir do eixo Rio-São Paulo, e desde a década de 1960 denominada amplamente de "música de forró". Tudo, aliás, vindo a traduzir, por sua vez, a nova realidade do avanço das áreas urbanas sobre as áreas rurais, consequentemente de um processo de industrialização que, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, passou a movimentar não apenas trabalhadores dessa área Centro-Sul, mas também vastas massas de antigos lavradores nordestinos, migrados de suas regiões para se transformarem em mão-de-obra não especializada nos mais diferentes pontos "do sul", conforme os interesses da "política de desenvolvimento" criadora de bóias-frias.
Pois um dos aspectos mais curiosos desse moderno processo de "desenvolvimento" viria ser exatamente, no plano cultural, o da crescente diversificação do mercado musical, em termos de consumo de cada vez maior número de gêneros de músicas ligadas mais ou menos autenticamente a esse não muito bem difundido caráter rural. E tanto é verdade que, apesar das gravadoras multinacionais tentarem impor seus gêneros universais a todo o povo brasileiro, com caráter de monopólio musical, o mercado dessa genérica "música sertaneja" da área da viola caipira, sulina ou nordestina, continuaria a crescer, como se o público submetido ao processo de urbanização recente se recusasse a passar musicalmente da manteiga de leite de vaca para a margarina.
Um sintoma comercial desse fenômeno cultural relacionado com fatores econômico-sociais é o fato de as fábricas de discos terem começado a criar, a partir da década de 1970, uma série de selos "regionais" e "populares" dirigidos a um público que sabiam ser marginal, não apenas socialmente, mas também em relação a valores estáticos urbanos determinados pela cultura da classe média que domina os meios de divulgação no país. Do ponto de vista econômico esse interesse novo pela "música sertaneja" — sulina ou nordestina – também se explica: é que segundo levantamentos em torno do mercado de discos no Brasil — e apesar de não frequentarem as paradas de sucesso das rádios ou da televisão -, os gêneros de música dirigidos a esse público marginal (em relação ao mercado "oficial" são consumidos pela gente não identificada que compra nada mais, nada menos, do que 40% dos discos prensados no país considerado o sexto mercado da indústria de música de massa em todo o mundo).
Foi sob esses selos (Rodeio, da WEA, Jangada, da EMI-Odeon, Premier, da RGE, Caboclo, da Continental) e, principalmente, através da marca Chantecler, a mais especializada de todas e com maior elenco, que se editavam já em 1980 cerca de trinta discos de música sertaneja por mês, o que perfazia um total de 250 músicas a disputar a divulgação — apenas na capital de São Paulo — através de treze programas dirigidos à gente do interior e da periferia da cidade em sete emissoras de rádio e duas de televisão.
Esses programas eram irradiados em sua maioria ou muito cedo, pela manhã, ou tarde da noite, não apenas porque quem ouve música sertaneja é pobre, e pobre levanta cedo e só volta para casa à noite, mas porque as direções das emissoras reservavam os melhores horários do dia para os programas e músicas da preferência das camadas de classe média, às quais se dirigiam quase todos os anúncios produzidos pelas grandes companhias de publicidade (que garantem o faturamento das rádios).
E eis, afinal, como se pode explicar por aí o preconceito das pessoas da cidade contra os gêneros de música que se englobam sob o título genérico de "sertanejos": é que, como os chamados horários nobres só transmitem a música da moda, geralmente internacionalmente, aquelas que falam a linguagem do homem das áreas rurais passam automaticamente a ser julgadas músicas que "não estão com nada", ou "não têm nada a ver". Isso, naturalmente, constitui um grande erro. Um erro que geralmente leva pessoas que se acham culturalmente superiores à gente do interior à enorme contradição de gostar do som country (o som dos caipiras norte-americanos que não entendem, por ser cantado em inglês), e a desprezar as toadas e modas-de-viola, que falam de tantas coisas que deveriam conhecer.
No fundo, o raciocínio que conduz essas pessoas das grandes cidades a desprezar o que chamam de "música caipira" é mais ou menos o seguinte: caipira é gente de áreas subdesenvolvidas, logo sua cultura e sua música são subdesenvolvidas. Ora, quando se recorda que todos os sons da chamada música sertaneja da região Centro-Sul partem da viola, basta ouvir o especialista nesse instrumento Renato Andrade para se comprovar o engano. Isto porque, com uma viola de dez cordas nas mãos, Renato Andrade já demonstrou em seus discos ser esse instrumento um dos mais ricos de possibilidades sonoras do mundo, pois pode produzir desde sons harmônicos, até sons que se aparentam com os da harpa de concerto, da guitarra portuguesa, do bandolim e do próprio cravo. O que, aliás, confere à sonoridade das músicas à base de viola uma ponte com a música de Bach, fato por sinal já demonstrado com a transposição de peças desse grande compositor universal para viola caipira pelo professor Teodoro Nogueira.
De qualquer forma, o que ninguém hoje pode duvidar é que, menos de um século após a figura do coronel caipira ter subido ao palco do teatro musicado, no Rio de Janeiro, para fazer rir o pretensioso público da então capital do país, a música da área rural — falsificada ou não — ganhou um espaço no mercado do disco brasileiro. Um espaço que, no momento, mesmo as gravadoras multinacionais são obrigadas a admitir — embora às vezes sob a forma aviltada do "breganejo" -, confirmando uma imagem da realidade da música popular brasileira gravada em discos, que o humorista e compositor Arioswaldo Pires, o Capitão Furtado, gostava sempre de repetir:
"Uma gravadora, no Brasil, é como uma casa que tem na frente um belo jardim — o da música estrangeira e da nacional produzida por esses moços universitários — mas no fundo tem uma roça cultivada com muito cuidado para manter a tal fachada e o tal jardim".
Artigo: "Música sertaneja é esse negócio" de José Ramos Tinhorão. In: Cultura Popular: Temas e Questões, Editora 34, 2ª Edição, 2006.