Os Retirantes: Cândido Portinari, 1944
Pedro e Maria são os nomes fictícios que dei a um jovem casal, pais de cinco lindos filhos, que conheci e com os quais convivi por dois dias durante a luta pela Fazenda Beirada, em Manga, Norte de Minas.
Quando entrei com os camponeses nas terras da Beirada com uma câmera na mão fazendo a cobertura para AND, permaneci próximo dessa família a maior parte do tempo. Entre as últimas pessoas que conversei antes do ataque dos pistoleiros, estava a sua filha mais velha, uma menina de 11 anos, que carregava seu irmãozinho mais novo no colo. Na manhã após o ataque dos pistoleiros, me reencontrei com Maria, apreensiva, na sede da Liga dos Camponeses Pobres. A sua filha mais velha havia se separado deles na retirada da fazenda e ela buscava notícias. Pude dar a ela pessoalmente a boa notícia: sua filha estava junto com outro grupo de camponeses que, na retirada, protegeram-na e a trouxeram.
Buscando informações atuais sobre as famílias, fui informado pela coordenação da LCP de que Maria, Pedro e os filhos foram acolhidos pelos camponeses da área “Unidos Com Deus Venceremos”, dirigida pela LCP, em Pedras de Maria da Cruz. Conhecendo a história dessa família, os camponeses mobilizaram-se, convocaram a Assembleia Popular da área e destinaram um pedaço de terra, roupas, sementes, entre outras necessidades básicas para eles recomeçarem a vida e retomarem a luta.
Mais recentemente, conversei com o coordenador da área. Ele disse que Maria, Pedro e os filhos estão muito satisfeitos e que não pensam em voltar para a Bahia.
Um mundo novo para Pedros e Marias
I
O cabo do machado rompe o cadeado da porteira.
— A Beirada é do povo! Viva a Revolução Agrária!
Entraram juntos: Pedro, Maria e os cinco filhos.
Vêm da Bahia. Moravam de aluguel. Trouxeram tudo que tinham.
Ferramentas para a luta e para o trabalho. Mala de roupas, a feira do mês, o filho no colo, o fiel cachorro com uma coleira.
Entraram todos.
Cantando. A bandeira da Liga em punho.
A Fazenda Beirada está parada, tem onze pivôs de irrigação, e o povo tem fome.
Muitos já trabalharam naquelas terras. De sol a sol. Deram sangue e suor. E não têm terra.
E o povo quer terra!
Ajeitam um local para as coisas, dão água para as crianças, amarram o amigo canino em um local próximo.
E se preparam para a luta.
II
É madrugada. A pistolagem se exibe, tenta intimidar.
— “Conquistar a terra, destruir o latifúndio”!
Aquele pistoleiro, inimigo do povo, bandido pé-rapado, aponta a espingarda 12 para uma companheira.
— Covarde! Atira se for homem!
E tome cabo de enxada! E tome na cara seu covarde! Vai atirar em criança?
Cai a arma do bandido desconcertado. E tome mais pancada.
Mulher de coragem aquela companheira! E aquele companheiro! Viram como ele deu com o cabo da bandeira no pistoleiro?
Maria, junte os meninos. A pistolagem vai atacar.
Bandidos! Atiram contra o acampamento!
Covardes! Mataram o pobre vira-latas!
Jogam bombas e ateiam fogo em tudo.
Cabo de foice e de enxada contra a pistolagem armada.
— Companheira, temos que sair.
— E a menina mais velha? Pra onde foi?
— Temos que ir.
III
No escuro, Maria, Pedro e os filhos se afastam. Ao longe, o clarão do fogo e das bombas.
— E a menina mais velha?
Chegam a uma área vizinha, a área Vanessa.
Companheiros acolhem os que chegam, oferecem água e um café.
E a noite passa.
Pouco a pouco vão se reunindo na sede da Liga.
— E a Menina mais velha?
— Foi encontrada companheira. Na retirada, um companheiro a viu e trouxe com ele.
Novamente todos juntos!
— E agora?
— Trabalhar.
— Queimaram os documentos, as roupas e a feira do mês. Mataram o vira-latas! Covardes!
— Vamos lutar e vamos voltar. Essa terra é nossa!
IV
Pedras de Maria da Cruz, Norte de Minas. Área “Unidos com Deus Venceremos”.
Para lá foram Pedro, Maria e os filhos.
Acolhidos pela LCP e por todas as famílias.
E não pararam um dia. Trabalharam na roça e no que mais havia.
Reuniu-se a Assembleia Popular.
E com simples palavras, narraram as suas vidas.
Perderam tudo que tinham, deixaram dívidas na Bahia.
Quando as mãos se ergueram, estava tudo decidido.
E assim recuperaram um pouco do que foi perdido.
Ferramentas, sementes, alimentos e roupas. Um lote para viver e trabalhar.
E de todos companheiros, apoio para recomeçar.
Essa é a vida de quem não tem nada a perder, tem um mundo a ganhar.