Dizia o Professor Darcy Ribeiro que, na América do Sul, entre os que vivem na orla do Atlântico, não são poucos os que acreditam estar diante da Europa. Trocado em miúdos, esse contingente de crédulos inclui os que têm formação acadêmica e acesso aos mapas, desde os primeiros dias dos bancos escolares. Murcham quando se lembram que à sua frente está a África, e a sua parte mais negra, indomável, amiga, camarada. Mas, retirando o mapa, eles voltam a afirmar que a Europa está à sua frente. Ou seja, a educação colonial fala alto, ao menos para os mais acomodados. As campanhas de subjugação nacional, cuja arma mais poderosa é a censura, vêm impondo, desde os tempos do gerenciamento militar, um sofisticado conceito racial no Brasil. O aparato de divulgação semicolonial — que injeta a cada minuto no cérebro do brasileiro os mais diversos tipos patogênicos de anticomunismo —, há pelo menos três décadas, da mesma forma, vem incluindo entre suas drogas uma variedade de racismo altamente sofisticada.
Depois de pretender retirar do povo o conceito de História, a ponto de dizer que ela acabou, e que o mesmo fim tiveram as classes, quer retirar do homem de pele mais escura, a sua própria nacionalidade. Agora, tudo é afro, afro-descendente. E aconselham esse homem a cultuar um sentimento de orgulho racial, a conscientizar-se da riqueza cultural dos negros. Mas pretendem associá-lo ao antepassado africano? Nem isso. E há algo mais.
O negro brasileiro já passou de africano, há muito tempo, tal como lembrava Noel Rosa quanto ao nosso idioma. A historiografia dominante exige que se considere que, no Brasil, o africano sequestrado, somente ele, era escravo. Nenhum índio, nenhum português, nenhum de seus descendentes foram escravos em todo período escravista. Pior do que tudo, a condição de classe lhe é negada inteiramente. O negro era escravo porque era negro.
Esse afro — que até masca chiclete, fala inglês, se requebra ao ritmo artificial criado pelas corporações estrangeiras, as mesmas que ditam o que devemos ou não ouvir — em nada se identifica com os nossos irmãos africanos, nem mesmo os do continente americano. O nosso negro é brasileiro e, quase sempre, proletário. Enquanto o racismo não passa de uma forma de desviar a luta de classes, a verdadeira história da formação nacional brasileira motiva um grande orgulho entre o povo. O primordial de nossa nacionalidade, hoje, é o homem proletário e as classes oprimidas que nunca permitirão o divisionismo, e sempre combaterão as teorias impostoras.
(Da redação)
A negritude no Ceará
A reivindicação político-racial do negro é um equívoco, porquanto a maior evidência sócio-cultural na nossa sociedade consiste na aspiração ao branqueamento, hoje atenuado, dado o alto grau de miscigenação já alcançado. A esse respeito sirva a valorização erótica das mulatas pelos estrangeiros brancos, especialmente os lusos.
Onde predominou a mão-de-obra escrava — nos setores de mineração e engenhos de cana de açúcar — o balanço demográfico favoreceu o negro, de modo que, na Bahia, por exemplo, é tabu menosprezar o preto, existindo certo temor do branco em exercitar o preconceito, como ocorre também nos Estados Unidos, que exportaram a ideologia da negritude para os demagogos negros, mulatos, cafuzos — e brancos — os quais vem capitalizando proveitos eleitorais.
A negritude é o preconceito de cor às avessas, é o contrapreconceito. É a antítese que não leva à síntese alguma, radicalizando a luta racial, cuja pacificação é o medo recíproco, o estado de permanente insegurança na consciência social. Ou é pelo menos aquela relação de conformação, que foi constatada por uma escritora americana, de que no Brasil não havia preconceito de cor porque o negro reconhecia seu lugar. Ora, não se pacificam as internerações étnicas, se não pela via biológica, ou seja, mestiçamento. O grande perigo está em que o nosso negro discriminado se polarize num estado e se contraponha aos brancos e mestiços de outros estados.
O Ceará evidentemente pertence ao rol desses “outros estados”. Aqui não prosperou ecológica e historicamente a economia canavieira, cujo regime de soca ressoca, conferia caráter de continuidade no emprego de mão-de-obra escrava. Certo que se importavam africanos, ao mesmo tempo em que os exportavam para demandas específicas. Meu colega Joaquim de Castro Feitosa, dos Inhamuns, ilustra esse aspecto exportador e reexportador no negócio escravista: um ancestral seu comprava escravos no Maranhão e no Piauí como lotes de bois para engorda, rebotalhos humanos da escravidão — caquéticos, doentes, imprestáveis — recuperava-os fisicamente e afinal os vendia com grandes lucros. A matriarca, mãe desse negociante, certo dia abalada pelas cenas desumanas quando das transferências dessa mercadoria para outras praças, proclamou: “Nesta terra não se vende mais carne humana.”
Um dos impostos mais crescentes desde 1852 e o dos mais significativos da receita estadual (provincial) era o de exportação de escravo. Havia também a siza, menor, arrecadado sobre escravo no mercado interno. O historiador Pedro Alberto de Oliveira e Silva, que informa sobre essas estatísticas, diz que o escravo se tornava uma reserva de valor, convertido em dinheiro qual cheque ao portador, pelo que eram eles mais serviçais domésticos do que homens de lavoura. Ele tinha como virtude séculos de barbárie — sedentarismo e técnicas de utilização de plantas cultivadas e animais domésticos — enquanto o índio ainda desconhecia o trabalho como atividade produtiva, tendo apenas séculos de selvageria. Conheci, criança na fazenda de meus pais no Maranhão, uma família negra que comprara sua alforria no trabalho de vaqueiro, que era sempre retribuído percentualmente, isto é, com uma cria para cinco no total de bezerros produzidos por ano.
A seca foi sempre uma sentença de morte da natureza contra os que possuíam escravos no campo. Diz o historiador Joaquim Alves de Oliveira que durante a mesma, até instituições eclesiásticas que possuíam escravos os abandonavam à própria sorte, ou seja, à intempérie. Os escravos tornavam-se fugitivos, máxima nessas ocasiões, mas haviam os capitães-do-mato contratados pelo governo e os senhores de escravos para contratá-los. Deviam eles ser devolvidos aos seus donos, missão evidentemente facilitada onde a população negra escasseasse não lhes podendo dar algum apoio em massa.
O negro migra quando não existe a solidariedade étnica e social. Antes uns fugiam das fazendas para os quilombos, outros, já livres, iam para comunidades onde houvesse ponderavelmente pessoas de sua raça. À época da libertação dos escravos, estes erravam pelas estradas à cata de um sítio acolhedor, como os hebreus em busca da terra da promissão. Só não saíram todos os do Ceará, que se antecipara ao Brasil na abolição, é que os seus ex-senhores não tinham podido antes vendê-los para os canaviais, minas e cafezais de outros rincões nacionais, coisa que vinham fazendo desde muito. A palavra de ordem: “Aqui não se embarcam mais escravos” sustou a emigração dos negros remanescentes.
No Ceará, quando se vê um negro de fato, já se sabe que ele não é, provavelmente, cearense. Pode até ser querido pelo povo, como o jogador de futebol Popó, ou admirado como aquela alta patente do exército que esteve em Aracati, onde a famosa Castorina o apelidou de “Noite Ilustrada”. Percebe-se, portanto, há meio século, que nós não tínhamos na sociedade uma expressão negra que justificasse a negritude. O historiador Carlos Studart Filho achava que a pigmentação melânica da pele do cearense tende antropologicamente a clarear. Portanto, falar em negritude é, hoje e no futuro, uma contrafação.
Não se negue nem se olvide a história. Houve no Brasil o escravagismo. Uma bula do Papa Júlio II salvou dela o índio — ingenuamente mitologizado e socialmente atrasado — que absorveu a religião do colonizador, ao contrário do negro e do mouro, onde não ocorreu a catequese católica, por razão óbvia: pertenceram eles a estágios posteriores à selvageria, invencíveis dificuldades que os padres não enfrentaram oficialmente.
Saiba-se que cultivar o contrapreconceito de cor é até ridículo num mestiço pobre de melanina. E o é tanto ou mais ressuscitar traços culturais que se perderam. São Benedito virou negro por promessas que fez — diz o hagiológio — solidário ao sofrimento dos escravos, que assistira. Os ideólogos da negritude ignoram que a cultura é um processo social objetivo e não o produto elaborado pela cabeça de um indivíduo.
Osvaldo Evandro Carneiro Martins é professor de filosofia e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará