Nem Assad nem intervenção estrangeira

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Nem Assad nem intervenção estrangeira

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Protestos em maio de 2011: cartazes com dizeres:
“Darra está sangrando” e “Quem mata seu próprio povo é um traidor”

As forças armadas ianques “começaram a reanalisar potenciais opções militares” na Síria, segundo o jornal The New York Times (12 de Fevereiro). Um responsável militar não identificado disse a esse jornal: “Estamos vendo toda uma gama de opções, mas quanto a definir um rumo de ação, não vi nada”. A matéria diz que as “possíveis opções” consideradas incluem “tudo, desde não fazer nada a armar os rebeldes para ações encobertas, ataques aéreos ou a utilização de tropas terrestres”.

Esta admissão surge numa altura em que o USA já está apoiando várias formas de intervenção na Síria, incluindo os esforços da Turquia para usar elementos militares da oposição síria na formação de um exército sob o seu controle, e dinheiro e armas que supostamente estão a afluir para o país a partir do Qatar e da Arábia Saudita. Os sauditas quase certamente estão apoiando seus congêneres fundamentalistas islâmicos sunitas, tal como têm feito em todo o mundo.

Há muitos anos que o USA mantém em relação à Síria uma política muitas vezes ambígua, trabalhando para isolar e debilitar o regime, ao mesmo tempo que também reconhece a sua importância para a preservação da atual situação na região, numa altura em que isso tem sido um importante objetivo ianque. Nos anos 70, Hafez al-Assad, pai de Bashar, esmagou o movimento revolucionário palestino então instalado no Líbano, impôs a paz com Israel, apesar da ocupação sionista desde 1967 dos Montes Golã sírios e apoiou o USA durante a invasão do Iraque em 1991.

Quando a revolta síria estalou em março de 2011, inspirada por similares revoltas espontâneas que derrubaram Mubarak no Egito e Ben Ali na Tunísia, o USA não apoiou a sua principal reivindicação, a queda do regime. Pelo contrário, Washington apelou a Assad que implementasse reformas econômicas e políticas com o objetivo de satisfazer o movimento e, ao mesmo tempo, tornar mais fácil atrair a Síria para a órbita do USA.

Salameh Kaileh, um proeminente marxista palestino que vive na Síria, disse em agosto de 2011, numa entrevista ao SNUMAG que essa revolta foi desencadeada pelos estratos médios das zonas rurais. Nas pequenas cidades de província, ela envolve agora todas as classes sociais, incluindo os comerciantes e capitalistas locais, disse Kaileh.

“Há razões para que Damasco e Allepo não tenham se mexido”, disse ele nessa altura. “Primeiro, a concentração de forças de segurança torna qualquer protesto aí muito difícil. Além disso, essas duas cidades se beneficiaram das mudanças econômicas do período anterior. Assim, vimos Aleppo se beneficiar da abertura econômica à Turquia e ao Iraque. Damasco, por seu lado, se beneficiou do desenvolvimento da economia de serviços e turismo. Mas, no entanto, nestas duas cidades há muitos setores pobres que estão começando a se movimentar”.

O perigo do conflito étnico

Essa situação é complicada pelo perigo de a revolta ser esmagada e degenerar num conflito étnico e religioso. O regime tem as suas principais forças sobretudo entre os clãs alauitas (um ramo do Islã xiita), com o apoio de forças cristãs, uma configuração herdada da ocupação francesa. A revolta está enraizada sobretudo entre a maioria sunita, bem como entre os curdos. Imperdoavelmente, o regime também tem desfrutado do apoio ou da neutralidade de quase toda a suposta esquerda da Síria, que têm desempenhado um papel muito pequeno no movimento de massas.

A revolta utiliza slogans e pratica atos que realçam a unidade do povo sírio contra o regime, enquanto Assad alimenta as faíscas do conflito étnico para se apresentar como única alternativa. Mas, claramente o regime não é o único a ver o potencial da divisão do povo como forma de atingir os seus objetivos reacionários.

Só em 18 de agosto o USA pediu a Assad para sair. Isso não aconteceu porque o governo Obama repentinamente descobriu o quão sanguinário é o regime sírio. Já tinham decorrido cinco meses de massacres de manifestantes civis desarmados e durante anos o USA entregou presos à Síria, justamente para que eles fossem torturados. Mas o USA viu tanto uma necessidade como uma oportunidade na atual situação.

Como disse Kaileh, o USA está agora tentando impor uma mudança de regime, mas uma mudança controlada, esperando evitar a libertação de forças ingovernáveis, entre as quais as próprias massas populares sírias, que poderiam levar a uma destabilização de toda a estrutura de domínio do USA na região, incluindo os regimes das vizinhas Turquia e Jordânia.

“Seguindo o modelo tunisiano e egípcio, essa mudança (desejada pelo USA na Síria) não seria radical, mas uma mudança dentro do próprio regime”, disse Kaileh. Uma possível forma seria uma divisão dentro da estrutura de poder, em particular nas forças armadas, e um golpe de Estado, espicaçados ou mesmo provavelmente fomentados por uma intervenção militar estrangeira.

Necessidade e oprotunidade

“A necessidade foi a de se envolver para resolver uma situação – uma insurreição popular – que coloca em perigo os interesses ianques. A oportunidade é a possibilidade de conceber o afastamento de um regime que antes era estável e formava um bloco com a República Islâmica do Irã, o Hamas palestino e o Hezbollah do Líbano, colocando sérios problemas ao USA e ameaçando os seus aliados regionais reacionários. Não é coincidência que a ânsia ianque em derrubar Assad surge no meio de um aumento das ameaças de ataque ao Irã e/ou apoiar Israel nesse ataque.

Enquanto a revolta popular no Oriente Médio e Norte da África continua a desafiando alguns dos atuais regimes e formas de domínio imperialista, em vez de ceder à vontade popular ou mesmo se retirar ligeiramente, o USA tem trabalhado em defesa dos seus interesses no meio destas águas turbulentas.

Aos chamados modelos tunisiano e egípcio foi agora acrescentado o “modelo líbio”, em que o USA e as potências europeias invadiram e derrubaram o regime de Kadhafi. Essa demonstração de força visou não só afirmar o controlo da Líbia, mas também proclamar e manter o domínio regional face tanto aos povos como a outros rivais, incluindo a Rússia e a China.

A interferência estrangeira e a alimentação da guerra civil pelo USA e seus aliados na Síria são exactamente o tipo de coisa por que supostamente a ONU existe para impedir. Há alguns anos, o USA ventilou ameaças contra o regime de Assad por interferir no Líbano e exigiu que a ONU interviesse.

A diplomacia das canhoneiras

Agora essas potências tomaram a posição oposta em relação à Síria: a interferência externa pode ser justificada porque Assad está a “matando seu próprio povo”. Além disso, se é verdade que forças ligadas à Al-Qaeda no Iraque estão agora combatendo na Síria, isso não está desligado do fato de os Estados do Golfo estarem apoiando outras forças fundamentalistas islâmicas. A questão, para o Ocidente, é que a interferência deles (ou de movimentos apoiados por eles) é boa, enquanto qualquer outra é uma desculpa para… uma intervenção da OTAN.

Como salientou Robert Fisk no jornal britânico The Independent, uma ilustração particularmente aguda da hipocrisia do USA e da Europa é que os monarcas absolutos da Arábia Saudita e do Qatar são agora retratados como os campeões regionais da “democracia” na Síria. O fato de o regime saudita ter enviado tropas para esmagar uma revolta da maioria xiita no Bahréin e de andar disparando sobre manifestantes xiitas na Arábia Saudita Oriental tem sido educadamente ignorado.

A crescente importância da aliança entre o USA e os Estados reacionários do Golfo – motivada pelo pavor que a “Primavera Árabe” produz em todos eles – é exemplificada pelo fato de eles terem conseguido alterar a posição da Liga Árabe da noite para o dia, de uma aparente neutralidade em relação ao regime de Assad para a proposta de um plano assombrosamente arrogante e detalhado para o que deve acontecer posteriormente na Síria, começando por uma transferência de poder de Assad para outras pessoas dentro do regime dele, com ou sem golpe militar.

A Liga Árabe apelou para uma “missão conjunta árabe-ONU de manutenção da paz” na Síria, mas isto não tem a ver com paz. Apelou ao fornecimento “de todas as formas de apoio moral e material” às forças de oposição, mas isso não tem a ver com ajudar a implementar o que tem sido até agora o principal impulso da revolta popular: o fim da opressão.

Isso se parece mais com a “diplomacia da canhoneira” do século XIX, quando as potências ocidentais usavam os seus navios de guerra para forçar os governos locais a aceitarem ponto-por-ponto uma agenda imposta. O fato de essas exigências virem de bocas árabes não altera o fato de que foi o USA que escreveu o roteiro, ou pelo menos lhe deu sinal verde. Como é que as monarquias do Golfo poderiam ameaçar a Síria sem o espectro das canhoneiras (e aviões e exércitos) ocidentais a assomar por trás delas?

Com o pretexto de que Saddam Hussein estava a “matando seu próprio povo”, duas invasões separadas por uma década de sanções criminosas não só resultaram na morte de centenas de milhares de pessoas, como também mergulharam o povo iraquiano na noite mais negra que ele já enfrentou, uma situação muito desfavorável à revolta. Então, com o mesmo pretexto, surge o modelo “líbio” em que um regime que se tinha tornado altamente complacente com os interesses ocidentais (sobretudo com os britânicos e italianos) foi derrubado no meio da libertação de todo o tipo de interesses e forças reacionárias, tornando a vida na Líbia hoje num inferno maior que em qualquer momento anterior.

Nada bom para o povo

Agora, o USA não está em condição de montar uma nova invasão em larga escala, graças ao fracasso dos projetos ianques no Iraque e no Afeganistão. Por outro lado, o tipo de guerra “barata” na Líbia (barata para o USA e outros membros da OTAN, não para o povo líbio, que ainda está pagando um preço horrendo) pode não ser possível na Síria, onde os últimos cinco meses de revolta têm mostrado que o regime reaccionário têm uma forte base social, bem como um verdadeiro exército.

Os estrategas ianques (veja-se, por exemplo, www.ForeignPolicy.com) lamentam o fato de que uma “zona de exclusão aérea” teria pouco efeito na Síria, onde o regime não tem usado aviões militares, e de o poder aéreo não poder ser aplicado para ajudar as forças anti-regime porque a extensão dos combates que agora decorrem acontece em cidades densamente povoadas. “O que é apresentado como alternativa a uma intervenção militar [terrestre] servirá mais provavelmente, quando falhar, para abrir caminho a uma intervenção”, avisa Marc Lynch nessa publicação.

Um golpe de Estado irá proporcionar-lhes uma solução? Isso é uma possibilidade, mas a Síria não é como a Tunísia e o Egito, em que as forças armadas estavam intimamente ligadas ao USA e tinham a sua confiança e não estavam totalmente identificadas com o regime na mente das pessoas. As forças armadas sírias acumularam enormes dívidas de sangue com importantes setores do povo.

Não é possível prever o que irá acontecer, mas nessa altura já deveríamos saber, depois de tudo o que vimos no Iraque, no Afeganistão, na Líbia e em tantos outros lugares, que aquilo de que os imperialistas são capazes às vezes é pior do que podemos imaginar – e que as consequências das intervenções deles são sempre desastrosas para o povo.

Novo fatos da guerra na Síria

28 de abril de 2012. O cessar fogo negociado pela ONU e o regime de Bashar al Assad nem bem completava duas semana e um inédito ataque marítimo contra as tropas governistas teve lugar no porto de Latakia, cerca de 40 quilômetros da fronteira com a Turquia. No confronto, vários militares resultaram mortos ou feridos, enquanto não havia informações sobre baixas entre os atacantes.

Mas essa não foi a primeira violação do cessar fogo. Desde o início, assim que os “observadores” da ONU deixavam as localidades, o conflito se reacendia e as notícias de mortos não param de chegar.

No mesmo dia 28, a marinha do Líbano apreendeu um carregamento de armas destinadas aos “rebeldes” sírios. Segundo os militares libaneses, os três contêineres de armas teriam origem na Líbia. Um repórter da BBC afirmou que o porto no norte do Líbano onde o carregamento foi interceptado é uma base de apoio aos opositores do regime de Assad.

A essa altura parece óbvio para as potências imperialistas que a saída para a crise na Síria é a negociação entre as partes beligerantes (solução que, claro, não inclui o povo sírio). Os planos imperiais de seguir os mesmos passos da guerra na Líbia, derrubando o regime de Assad e conduzindo um mais a seu gosto ao posto de gerente de plantão estão naufragando.

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