Área confiscada aos latifundiários em Varzelândia, “conquista da unidade”
No início de dezembro passado, o latifundiário gaúcho Narciso da Rocha, presidente do Sindicato Nacional dos Produtores Rurais (Sinapro), esteve na cidade de São Francisco, região do norte de Minas Gerais, cobrando da justiça e da PM local a utilização de força policial para cumprir um mandato de reintegração de posse da Fazenda Caatinga, ocupada por mais de 150 famílias desde o dia 4 do mesmo mês, em favor da Agropecuária Pontal. Na ocasião, em tom de ameaça, afirmou que o norte de Minas estaria se transformando em um novo Pontal do Paranapanema, devido aos constantes conflitos agrários.
As declarações ganharam destaque na imprensa da capital mineira, cujo principal diário, faz parte do espólio do conglomerado Diários Associados, também proprietário de um latifúndio abandonado na mesma região do norte de Minas. Recebeu, além disso, o apoio do secretário de Agricultura de Montes Claros, presidente do Sindicato Rural local, e vice-presidente da Federação da Agricultura do Estado de Minas Gerais (FAEMG), Reinaldo Rabello, que, inclusive, ameaçou “reagir a bala” à “onda de ocupações na região”.
Beirando à histeria, os latifundiários acusam os camponeses de terem incendiado uma das casas da propriedade e abatido um reprodutor que valeria em torno de 15 mil reais. E brandiam uma decisão liminar do juiz de São Francisco, Richardson Brant Xavier, concedendo a reintegração de posse.
Verdades e mentiras
No caso da Fazenda Caatinga, a liminar de reintegração de posse havia sido concedida aos latifundiários quando da primeira ocupação da propriedade, no primeiro semestre de 2002, e teria sido cumprida pela organização Movimento dos Sem Terra (MST), que organizara as famílias acampadas em uma área próxima. Sendo assim, não teria validade, uma vez que a nova entrada das famílias na terra se deu em dezembro, e como no estado foi criada uma Vara de Conflitos Agrários, a competência desta decisão não mais caberia à justiça local.
Quanto à credibilidade do juiz Brant Xavier, descendente de fina casta de latifundiários da região, também não custa lembrar a sua decisão anterior, na Comarca de São João da Ponte, norte de Minas, quando — diante de uma demanda de três famílias de camponeses da região contra um latifundiário de Montes Claros, para reaver um pedaço de terra grilado — negou provimento à ação, com a justificativa de que os camponeses eram “sem-terra”, ainda que eles tenham apresentado farta documentação de propriedade dos hectares que lhes foram roubados nos anos 60, quando policiais espancaram os camponeses para que o pai do latifundiário cercasse o que não lhe pertencia.
A direção do MST na área, responsável por atuar na região por ela própria denominada de “entorno de Brasília”, respondeu que os conflitos ocorreram, a partir do momento em que pistoleiros contratados no Nordeste ocuparam uma das casas da fazenda, e dali partiam para ataques noturnos, quando atiravam contra os barracos dos camponeses. Atacadas, as famílias camponesas reagiram, entraram na terra e expulsaram os pistoleiros. Quanto ao incêndio de casas e abate de animais, historicamente são práticas comuns da pistolagem na região, cuja responsabilidade é imputada aos camponeses.
Novo Pontal
Da parte do latifundiário Narciso da Rocha — que mantém relação pessoal com o latifundiário da Agropecuária Pontal (apesar da propriedade estar em nome da esposa deste, prática comum entre os grandes proprietários para burlar a legislação vigente) —, tal declaração poderia ter sido motivada pelos acontecimentos da Fazenda Caatinga, envolvendo lideranças do MST que sustentaram a ocupação da Fazenda Córrego da Ponte, em Buritis, cuja propriedade é atribuída ao ex-presidente Cardoso. Na época, quando os camponeses se retiraram da fazenda, após acordo com representantes do governo federal, seus líderes foram covarde e traiçoeiramente manietados, tratados com extrema brutalidade e, finalmente, encarcerados. Eles receberam a solidariedade da direção do MST do Pontal do Paranapanema, o que, inclusive, custou a prisão de José Rainha durante todo o processo eleitoral.
Mas essa é apenas a ponta do iceberg.
Segundo informações obtidas junto à Vara Agrária do Estado de Minas Gerais, desde sua criação em meados de 2002, das 18 audiências relativas a conflitos pela posse da terra, 12 foram demandadas por ações de camponeses organizados pela Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas Gerais. Apurando ainda superficialmente os fatos, nos últimos dois anos o latifúndio local vem sendo abalado pelo crescente movimento camponês organizado ou apoiado, principalmente pela Liga dos Camponeses Pobres do Norte de Minas, sob a consigna de “Conquistar a terra, destruir o latifúndio!”
Só em 2002, foram tomados pelos camponeses uma série de latifúndios em torno do Projeto Jaíba de Irrigação (Lagoa do Cajueiro, Agrivale, parte da Fazenda Santa Idália, Malhadinha, Yasmine, parte da Fazenda Serra Azul, Serraria) nos municípios de Matias Cardoso, Jaíba e Itacarambi, além das tomadas de terras em Januária, Varzelândia, Janaúba, Porteirinha e Montes Claros. E o que tem se revelado nos embates dos camponeses pela terra no norte de Minas.
Clima inóspito, região de semi-árido com as características do nordeste brasileiro, o norte-mineiro é um sertanejo por excelência. Ao contrário do nordeste, a região não conheceu o desenvolvimento do ciclo do açúcar, apesar de ter se beneficiado do transporte fluvial de mercadorias através do Rio São Francisco neste período, quando os coronéis exploravam a pecuária extensiva. Negros fugidios, quilombos, índios, foram se apossando das terras, cultivando milho e feijão, criando raízes, desenvolvendo uma cultura própria, aprendendo a viver resistindo aos coronéis.
O declínio do nordeste e o desenvolvimento da industrialização do sudeste, do final do século XIX até o início da segunda metade do século XX, consolidaram a formação do camponês norte-mineiro. Vida difícil, miserável — entremeada de secas e enchentes —, mas sem fome.
É a partir de 1964 que se inicia por parte do Estado burguês-latifundiário, a tentativa de implantação do capitalismo na região. O latifúndio local, a ferro e fogo, confirma seus “documentos”, expulsa os nativos de suas posses; a cerca chega na região. Os camponeses resistem. O massacre de Cachoeirinha em 1967, com a morte de 15 posseiros e 62 crianças, perpetrado pelo coronel Georgino Jorge de Souza, marca esse período.
Terras cercadas, o governo do Estado, através da Ruralminas, entrega documentos e a Sudene faz chover dinheiro para os latifundiários, empresários e corporações estrangeiras. Para se ter um exemplo, o município de Jaíba (termo originado do dialeto indígena que significa “água ruim”), segundo documentos obtidos pelo advogado da Liga dos Camponeses Pobres, de uma área total de 330 mil hectares, foram beneficiados por projetos governamentais 230 mil hectares. O latifúndio já não era o dos coronéis, mas do Estado.
Rios de dinheiro foram desperdiçados em estruturas milionárias jamais utilizadas, e a região arrasada pela produção de carvão — uma nova devastação como exigência de formação do pasto, etc. — foi o resultado do investimento especulativo. É então que o Estado passa a interferir através dos Projetos de Irrigação, financiados pelo Banco Mundial, Banco do Nordeste e Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco), os dois últimos controlados pelo latifúndio na figura do senador Antonio Carlos Magalhães. Seriam “ilhas de prosperidade”, já que todo o resto fracassara. E, para proteger o capital investido nestas ilhas, mais expulsão de camponeses via decretação de áreas de preservação ambiental no entorno do projeto inicial.
De tudo, originou a fome, ficaram a doença de Chagas, a febre amarela e a miséria.
Segundo os coordenadores da Liga, uma das fazendas roubadas em 1967 pelo coronel Georgino foi conquistada pelos camponeses em 2001, durante uma renhida luta, aliada à situação sem precedentes de miséria e ao fracasso das direções oportunistas no movimento camponês. Também o esgotamento do modelo capitalista-latifundiário (a grande maioria das propriedades está abandonada, praticamente só produzem os latifundiários que controlam o poder político — deputados, prefeitos, vereadores, amigos dos gerentes de bancos estatais, multinacionais, etc.), pavimentou o caminho para o levante camponês.
Na trajetória do movimento, estão as tomadas da Fazenda Yasmine — onde havia um “projeto” prevendo a ocupação da área por cinco mil cabeças de gado, e que, quando os camponeses entraram, não encontraram mais de 200 cabeças, propriedade de um vizinho que alugara o pasto; da Fazenda Guiné, em Montes Claros, propriedade atribuída aos seculares latifundiários da família Ribeiro Pires, cujo confisco feito pelos camponeses foi saudado pela população da cidade; e da fazenda abandonada do ex-deputado Wilson Cunha, onde se plantava algodão, tinha escolas, casas e mais casas e galpões fechados. “Os camponeses perderam o medo, confiam na aliança operária e camponesa”, afirma um dos coordenadores da Liga.
As afirmações do dirigente da Liga podem ser confirmadas. Visitando algumas dessas áreas, encontramos vaqueiros que se rebelaram contra seus amos, confinantes que tiveram terras griladas e, nas áreas em torno do Projeto Jaíba, irrigantes que não puderam pagar os altos preços cobrados pelos serviços de irrigação e foram buscar a sorte junto a outros camponeses. Ultimamente, os trabalhadores desempregados e explorados nas cidades médias e grandes da região ingressaram no movimento.
Equívocos e temores dos latifundiários
Ao que tudo indica, o norte de Minas não é, nem será, um novo Pontal do Paranapanema, uma vez que a luta camponesa realmente sacode o Brasil por toda a parte, e não em bolsões isolados. Simultaneamente, o movimento camponês, em sua marcha, vem suplantando as direções oportunistas que tentam submetê-lo às mistificações reformistas. O que parece aproximar o norte de Minas ao Pontal é a combatividade da massa camponesa, e a consolidação, em cada uma dessas áreas, de uma direção forjada na confiança que só as mais duras batalhas conseguem lograr, em que pesem as diferentes orientações que tem o movimento nas duas regiões.
Do ponto de vista econômico, enquanto o norte de Minas revela ser uma das regiões mais pobres do Brasil, a do Pontal está encravada numa das áreas de maior industrialização do país. São duas agriculturas completamente diferentes.
Todavia, há grandes razões para os temores do senhor Narciso. Não é apenas a economia que o latifundiário nativo assiste se deteriorar de forma imprevisível, mas todo um sistema político, que demonstra ser frágil e inútil diante dos avanços do movimento de massas.
O sertanejo afogado em sangue na região de Canudos, Caldeirão, Pau de Colher, e em tantos outros massacres, antes, simples lembranças literárias, anunciam a presença de uma consciência que cresce de forma avassaladora… finalmente História. A economia das imensas extensões de terras facilmente roubadas do povo trabalhador e negociadas com o imperialismo em troca de favores e pequenas fortunas, se arruína a cada dia. Os pregões na Bolsa; os sermões nos templos, nas redes de TV e nos parlamentos; a legislação draconiana; a capacidade de mando e certas rédeas do poder — que, em parte, estavam nas mãos da oligarquia latifundiária, têm passado para as do patrão maior. Os pelegos, educados com tanto zelo, como numa última cartada, tiveram que ser promovidos a “governo”, o que significou desnudar a face pura e já em avançado estado de putrefação do poder. Aqui e ali, a terra roubada das famílias dos trabalhadores do campo vem sendo expropriada do expropriador e transformada em chão camponês, livre e verdadeiro. Se o sertanejo era, “antes de tudo, um forte”, hoje, é bem mais que isso, porque ele começa a remover montanhas de séculos de escravidão e exploração, no norte de Minas e no Brasil inteiro. E o ódio nutrido contra os trabalhadores por gente como o senhor Narciso também os ajudou a entender tão pujante realidade.