Nova direção pós-derrotas: a capitulação

Nova direção pós-derrotas: a capitulação

Entre o PCdoB que dirigiu a mais importante experiência da luta armada brasileira e o PCdoB dos tempos atuais — legalista e conciliador — existe uma diferença grande. Num processo de renegação das idéias e lutas que assumiu desde sua reorganização, em fevereiro de 1962, o Partido Comunista do Brasil defensor da guerra popular, organizador da guerrilha do Araguaia, passou a ser um partido com espírito inteiramente diverso daquele que tiveram os dirigentes e militantes da época dos combates no sul do Pará. O divisor de águas, por assim dizer, destes dois momentos tão distintos do PCdoB — na verdade dois distintos partidos — é o processo de avaliação da própria experiência do Araguaia, e os seus desdobramentos dentro daquela organização.

Perseguição e morte

O terror e os assassinatos da terceira campanha desencadeada contra a guerrilha em outubro de 73, não se restringiram às áreas conflagradas no campo. Também nas cidades a vaga repressiva recaía sobre a direção do PCdoB. Grande aparato foi utilizado na localização e desmonte de sua estrutura, o que resultou no assassinato de importantes dirigentes, como Carlos Nicolau Danielli, Lincoln Bicalho e Lincoln Oest, entre 1972 a 1974, além dos 70 mortos na região do conflito.

Esse golpe no PCdoB muito debilitou a continuidade de suas atividades, especialmente no âmbito de sua direção. Do que se tem registro e é de conhecimento público, o processo de avaliação da luta do Araguaia, tarefa considerada das mais urgentes então, é iniciado ainda em 74, sob o impacto da perseguição, e foi subtraído da luta interna repentinamente. Logo de início, desencadeou-se uma luta em torno de duas posições dentro do Comitê Central a respeito do Araguaia. Conforme se percebe nos documentos oficiais do PCdoB da época — hoje disponíveis em várias publicações — a questão girava em torno dos motivos da derrota no campo de batalha e se os objetivos propostos haviam sido cumpridos. Ângelo Arroio, único dirigente que sobreviveu à terceira campanha, rompendo o cerco dos militares com a ajuda do quase lendário Zezinho do Araguaia, sistematizou a experiência em um relatório, que serviu de base a um documento — onde ele expressa seu ponto de vista — que depois se tornou posição oficial da Comissão Executiva do partido. Nele, as causas da derrota são analisadas como sendo essencialmente de ordem militar e temporária — ocasionadas por fatores como inexperiência em combate, armamento insuficiente, etc.

Outro dirigente do PCdoB, Pedro Pomar, analisava os acontecimentos de modo diferente. Seu ponto de vista, expresso num documento de julho de 1976, situava a derrota no Araguaia como resultado de uma incorreta concepção sobre a Guerra Popular — um problema de fundo ideológico-político, segundo o texto -, no entendimento, preparação, prática e desenvolvimento da luta armada. Pomar, ao mesmo tempo em que destaca o heroísmo dos companheiros tombados na luta e a decisão do partido de se ligar às massas camponesas, ressalta que nenhum dos objetivos propostos ao se conceber a luta foram alcançados.

Porém, num ponto concordavam os dois dirigentes: a guerra popular, como caminho para a revolução brasileira, deveria ser retomada. Arroio propunha corrigir alguns erros, e Pomar rever toda a concepção adotada. Acontece que as discussões dentro do PCdoB foram interrompidas bruscamente pela ação dos órgãos de repressão do Estado que — em circunstâncias até hoje não esclarecidas — cercaram e invadiram uma casa do bairro da Lapa, em São Paulo, onde se realizava uma reunião do Comitê Central, em 16 de dezembro de 76, assassinando no local Pedro Pomar e Ângelo Arroio. Quanto aos outros presentes à reunião, cinco foram presos na rua, inclusive João Batista Drummond, que acabou assassinado no dia 17. Dois outros dirigentes escaparam.

Mais tarde, a direção do PCdoB acusou o, então, membro do seu CC, Manoel Jover Teles— um dos que conseguira escapar -, de ter colaborado com a polícia indicando o local da reunião. Teles, entrevistado pelo jornalista Pedro Estevam da Rocha Pomar, para o livro A Chacina da Lapa — Como o Exército liquidou o Comitê Central do PcdoB (Busca Vida, 1987), negou as acusações, afirmando que abandonara o partido após aqueles acontecimentos, e que enviou um relatório, solicitado pelo partido, sobre o período em que esteve desaparecido. Ao ser informado pelo jornalista de que era considerado traidor, respondeu com uma acusação misteriosa, que dizia haver um problema muito sério dentro do partido e que, sem resolvê-lo, a luta revolucionária no país não avançaria. Seu relatório nunca foi tornado público e o mesmo Teles, ainda vivo, residindo em Florianópolis, se negou a revelar seu conteúdo, afirmando que se a direção do partido não o divulgava, ele também não o faria.

O fato é que com a Chacina da Lapa encerraram-se os debates sobre o Araguaia, e a direção que assumiu o partido a partir daí passou a rever totalmente sua orientação.

Balanço crítico ou Operação Capitulação

De fins dos anos 70 até hoje, de maneira progressiva, a orientação político-ideológica do PCdoB veio se alterando, num ciclo de renegações de posturas assumidas, que mudaram profundamente seu caráter. Os parâmetros teóricos e políticos que guiaram suas atividades desde 1962, e especialmente a partir de 1966 — data de sua VI Conferência, que lançou as bases para o Araguaia — foram sendo negados, em incompreensíveis processos de mudanças, sem qualquer caráter autocrítico. O que deixa evidente que estas mudanças não se tratavam de balanço autocrítico é o simples fato de que, na época, a posição oficial fixada foi o documento Grande acontecimento na vida do país e do PcdoB, alvo de divergências no Comitê Central. Ela nunca seria revista e é apresentada como justa. E a brusca mudança de linha implementada pela nova direção, simplesmente é justificada como uma questão de mudança da realidade do país. No entanto, esse movimento foi sendo feito ao estilo revisionista, de forma gradual e transitória, claramente para não gerar descontentamentos com as bases que continuaram seguindo a nova direção de João Amazonas. No primeiro Congresso realizado após estes acontecimentos — denominado VI Congresso, 1982 — é mantida, aparentemente, a defesa da luta armada, porém não mais como guerra popular, conforme texto Apreciações críticas sobre a violência revolucionária, do PCdoB.

Documentos como Guerra Popular: caminho da luta armada no Brasil, de 1969, e outros, foram lançados em desgraça e o balanço da experiência ficou restrito ao documento aprovado pela Comissão Executiva e publicado no órgão A Classe Operária, em 1975. Com estes fatos, a nova direção deu por encerradas as discussões, provocando cisões.

Já o documento de Pedro Pomar, que divergia em profundidade do balanço tornado oficial e que reclamava levar a fundo a avaliação crítica e autocrítica, foi desprezado e só teve divulgação anos depois, aparecendo no livro Araguaia: O partido e a guerrilha, de Vladimir Pomar, filho de Pedro e também membro do Comitê Central na reunião da Lapa.

Entrevista reveladora

As palavras proferidas por João Amazonas em entrevista ao Jornal do Brasil de novembro de 2002, ao falar sobre o Araguaia, ilustram bem a conversão da ideologia e linha política sofrida pelo partido, caracterizando-se, na verdade, ser o atual PCdoB um outro e completamente diverso agrupamento político. Nelas estão declarações — não desmentidas ou negadas — terríveis. Indagado sobre os objetivos da guerrilha, ele nega enfaticamente que o PCdoB lutasse pelo poder, afirmando que se combatia apenas pela democracia que os militares haviam suprimido no país. Questionado sobre o aprendizado da luta armada, Amazonas responde simplesmente: "a direção do partido se inspirou em alguns livros sobre a luta armada; de algum modo tivemos de improvisar…", quando é sabido que o partido havia elaborado um documento sobre a guerra popular inspirado no que se denominava à época Pensamento Mao Tsetung.

Ao falar dos mortos e desaparecidos, Amazonas afirma categoricamente que não existe mais nada a fazer, e que se deve crer na versão do Coronel aviador Pedro C. Cabral, participante da repressão à guerrilha e autor do livro Xambioá, no qual afirma que os corpos dos guerrilheiros foram incinerados na Serra das Andorinhas-PA. Ele avalisa essa versão militar com argumento que poderia ser visto, no mínimo, como ingênuo, se não fosse tão grave o assunto e ele, pessoa tão vivida. "Não duvido do Pedro porque ele é evangélico e por isso não pode mentir", diz. Acontece que Xambioá é considerado, por familiares dos guerrilheiros e militantes revolucionários, uma versão destinada a difamar os guerrilheiros e a lançar pistas falsas na investigação sobre os acontecimentos — um trabalho de contra-informação. Na verdade, essa versão é das Forças Armadas, interessada no fim das buscas na região.

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