O achamento do Brasil

O achamento do Brasil

O Brasil não conhece Portugal. E Portugal será que ainda lembra do Brasil? 

Arte: Rose Nogueira

Uma afirmação seguida de uma pergunta. A questão, é: o que é mais fácil, aceitar a afirmação ou responder a pergunta? A história de Portugal começa praticamente com a chegada de dom Raimundo e dom Henrique de Borgonha à Península Ibérica como cruzados, no ano de 1086. Mas foi em 1093, quando o rei de Leão e Castela, Afonso VI, presenteou o genro Henri de Borgonha com um território localizado entre os rios Minho e Douro. Boa parte desse território integrava a província romana da Lusitânia. Foi aí, nesse pedaço de chão, que nasceu o Portugal querido pelos portugueses que ainda nele vivem. E também pelos portugueses que vivem fora dele, fisicamente.

E o Brasil?

O Brasil é hoje um país miscigenado de afro-descendentes e de luso-descendentes e etc.; um caldeirão de culturas em estado contínuo de ebulição que existe desde o tempo em que o planeta terra era quadrado, mas a sua descoberta ou "achamento" – como se referiu na sua histórica carta o escrivão Pero Vaz de Caminha ao rei dom Manuel, de Portugal – ocorreu em abril de 1500. Um mês antes, El Rey decidira patrocinar uma esquadra formada por 13 caravelas comandada por Pedro Álvares Cabral para uma viagem à Índia, com o objetivo de fazer e garantir o comércio de especiarias. Mas houve um desvio de rota. Daí, talvez, o termo "achamento" e não descobrimento como seria o mais correto se tivesse havido um planejamento prévio nesse sentido; pois foi o desvio de rota que levou Cabral e seus comandados a aqui aportarem num 22 de abril… Bom, essa parte da história todo mundo certamente já ouviu falar, isto é: que se avistou um belo monte e ao qual deu-se o nome de Pascoal, de Monte Pascoal; daí para Brasil a evolução de um nome próprio para identificar o seu povo, foi um passo miúdo… Brasil por causa da quantidade enorme de um tipo de árvore chamado pau-brasil, que seria cobiçado, disputado a unhas e dentes por muita gente.

Pois bem. Tudo foi narrado tim-tim por tim-tim ao rei dom Manuel, na famosa e importantíssima carta assinada por Caminha no dia 1º de maio de 1500. Uma pérola, sem dúvida essa carta; carta em que o autor vai aos mínimos detalhes narrando tudo o que vê. Não seria exagero afirmar ou reafirmar que Pero Vaz de Caminha foi um precursor excepcional do jornalismo de campo. Para ilustrar este palavrório, extraio da carta um dentre muitos exemplos que registrou: "(são) pardos – referência aos nossos primeiros habitantes -, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas". Na mesma carta-documento fala Caminha também da pureza e ingenuidade naturais dos nossos antigos silvícolas, da presteza desses silvícolas, do imenso respeito daqueles nossos irmãos nativos, mesmo diante de desconhecidos chegados de supetão aos seus domínios, assim sem mais nem menos, sem quê nem pra quê, sem aviso prévio nem permissão alguma, como foi o caso.

E aí começa uma história de cinco séculos mal contada, mal entendida, mal lembrada, mal estudada, mal comemorada e cheia de contradições. A bela carta do escrevinhador Caminha, porém, é uma luz.

O Brasil começa a aprender no seu nascedouro

O alvo inicial de exploração por estrangeiros foi o pau-brasil. Essa primeira investida ou cipoada deveu-se à iniciativa do cristão-novo Fernão de Noronha, ou de Loronha (tem ilha com o nome abrasileirado lá em Pernambuco). Pois bem, Noronha arrendou o Brasil por três anos e depois por mais sete a um consórcio de judeus conversos, em 1502. Em pouco tempo, algo em torno de 70 milhões de exemplares da árvore chamada pau-brasil foi derrubado… Começava aí a devastação ainda irrefreável do nosso país. Um detalhe: em 1826 o pau-brasil serviu como pagamento para amortizar o primeiro empréstimo externo feito pelo Brasil… Pois é, e pensar que essa mesma dívida anda agora para lá, para além, muito além da cumeeira de qualquer teto, chega a doer por cá pelo peito do cidadão que já nasce devendo algo em torno de 1500 dólares. É danado mesmo, não é não?

Pois bem, essa é a história.

Ah!, sim, havia sem dúvida uma preocupação muito grande da parte da Coroa Manuelina em preservar a terra recém-descoberta. Uma terra virgem, rica em tudo como, aliás, é até hoje a terra brasílis; por isso mesmo também ainda muito cobiçada. Não foi à toa que Caminha, ainda na carta a dom Manuel, descreveu a maravilha que avistou há 500 anos. Disse ele, num determinado trecho: "…A terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho (…) Águas são muitas, infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem…"

Em 1530, foi enviado ao Brasil Martim Afonso de Souza com a missão de expulsar estrangeiros e procurar e extrair ouro e outras riquezas; riquezas essas que encontraria logo depois. Também a ele coube a responsabilidade de fundar povoados para garantir a defesa do litoral brasileiro. Na bagagem trouxe, entre outras coisas, sementes, instrumentos de trabalho e animais domésticos.

Mas e Portugal, o que nos legou como herança cultural?

Vejamos.

Vem do latim popular a palavra cultura. Ali pelo século 13, ela servia para designar o cultivo do campo, do gado. Mas no sentido figurado só começou a se impor por volta da primeira metade do século 16. Por volta dos 700, porém, já era bastante conhecida, principalmente pelos franceses.

Por muito tempo a palavra "cultura" andou na boca de muita gente que não entendia direito o seu significado. Hoje, depois de tantas andanças, pode finalmente ser entendida como identidade de uma nação. No começo, os franceses chegaram a entendê-la de forma particular, particularizada ou particularista; os alemães logo a entenderam de forma mais abrangente, e como tal é que devemos também entendê-la. Pois bem. Mais do que folk-lore (ciência do povo), cultura é a idéia definida como identidade de um povo, de uma nação. E neste sentido podemos afirmar que Portugal nos deu muito. Nos deu o que tinha de melhor, culturalmente falando.

Principalmente na literatura e na música. Camões e Eça, por exemplo, são pilares portugueses indisfarçáveis de ótima qualidade da arte do bem-escrever. Dos portugueses herdamos o cordelismo, toadas e repentes, também a chula ponteada, a tirana, o lundu, a cana-verde, ou caninha-verde ainda de tanto agrado no interior de São Paulo; o recortado, as folias de reis, os autos natalinos… Muitos desses autos e gêneros musicais – e de danças – estão há tempo extintos em Portugal, como o repentismo, que ganhou força repentina no nosso Nordeste, principalmente na Paraíba, Ceará e Pernambuco. O repentismo é uma forma peculiar de arte chamada cantoria, comumente desenvolvida em versos de improviso cantados ou declamados ao som de uma ou mais violas; o mais comum de se ver é em duplas masculinas. Sua origem é moura, herdada pelos portugueses, mas foram os portugueses que o trouxeram para cá. O seu berço português fica lá para as bandas dos rios Minho e Douro. Essa é boa herança.

Além dessa herança, Portugal também nos deu sua língua.

A língua portuguesa tem suas origens fincadas no latim vulgar, e não no latim culto dos documentos romanos do século III a.C. À época, Roma era o Império, e a Península Ibérica a sua presa, digamos assim. Os romanos invadiram a Península e expulsaram os cartaginenses para que eles não ameaçassem a sua soberania, no tocante ao Mar Mediterrâneo. Os cartaginenses foram os primeiros povos oriundos do Mediterrâneo, assim como os fenícios e os gregos. Eram ameaça para os antigos romanos. Como resultado da cultura imposta pelos romanos na região da Península nasceu, além da língua portuguesa, a língua espanhola (mistura do latim arcaico com as línguas faladas na Península). Mas aí vieram os árabes três séculos depois e por lá permaneceram durante 700 anos; também impondo-se, culturalmente. O resultado disso foi mais uma língua: o galego-português. Bom, mas esta é outra história; e é história longa.

O que hoje se percebe, infelizmente, é que o Brasil pouco sabe de Portugal; e que Portugal pouca ou nenhuma importância tem dado ao Brasil. Por que? Estamos num mundo globalizado e cheio de miséria e contradições; e como se ainda não bastasse, vivemos mais uma vez as mazelas de uma guerra de consequências impensáveis. Que tal o Brasil descobrir Portugal, depois de se descobrir, naturalmente; e Portugal conhecer o Brasil de hoje, de um povo que há 500 anos ainda clama por liberdade?

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