O relações públicas da empresa ianque Lockheed, uma das maiores fabricantes de armas do planeta, responde à pergunta do entrevistador — algo do tipo: “Por que o USA faz tantas armas?” A resposta do subserviente funcionário surpreende pelo cinismo: “Para nos defender”.
Um corte brusco. Imagens de arquivo mostram episódios de uma história recente: a queda do presidente chileno Salvador Allende (11 de setembro de 1973)1, a questão dos “contras” na Nicarágua2, a invasão do Kuwait pelo Iraque3, a morte de civis em Kosovo (1999)4 etc. Cenas fortes que têm como fundo musical a conhecida canção What a wonderful world, interpretada por Louis Armstrong5. A tradução do título — “Que mundo maravilhoso” — revela uma construtiva ironia.
Os fatos apresentam algo em comum ao longo da sequência: a infalível e explícita ingerência do USA e de sua máquina de guerra em assuntos de outros Estados — seja treinando grupos reacionários, ou invadindo e transformando territórios nacionais em teatro de operações militares. Tudo uma”questão de defesa”, segundo a Lockheed.
Mais uma ironia — desta vez agressiva para o orgulho ianque —fecha a série de imagens: as torres gêmeas de Nova Iorque desabando em 11 de setembro de 2001, no atentado que supostamente foi perpetrado por Osama Bin Laden. A ironia: Osama fora treinado, anos antes, pela CIA. Portanto, se a versão dos falcões (um contingente da extrema direita do qual fazem parte Bush, pai e filho) merecesse algum crédito, o responsável continuaria sendo o famigerado Pentágono e a mais terrível organização terrorista do mundo: a CIA.
Essas imagens fazem parte do documentário Tiros em Columbine (Bowling for Columbine), produzido em 2002, com direção de Michael Moore. O título se refere ao massacre ocorrido em 1999 na escola pública Columbine, na cidade de Littleton, Colorado, quando dois estudantes assassinaram 12 colegas e um professor, matando-se em seguida. Partindo desse e de outros episódios particulares, Moore explicita toda a podre ideologia dominante no USA, propalada pelos parlamentares, corporações e monopólios dos meios de comunicação.
Sem pretender dar respostas claras (seu filme está longe de uma crítica mais consistente), o cineasta faz desfilar alguns argumentos acusatórios. O desenrolar dos fatos e dos depoimentos revela a sociedade estadunidense sendo dominada pelo binômio terror-consumo, sustentáculo da lógica imperialista. Nesse contexto, a massa em pânico acaba apoiando as ações genocidas em nome da “segurança nacional”. Um temor que serve de justificativa ao crescente armamentismo (tanto do país quanto dos cidadãos comuns). E que, de quebra, também sustenta o racismo, a intolerância e a opressão das nações.
Abra uma conta, ganhe uma arma
Michael Moore abriu conta em um banco e saiu de lá armado |
Terror e consumo ensejando um estado de constante tensão. Num clima desses, armas e dinheiro tornam-se valores indispensáveis. O melhor automóvel ao lado da melhor pistola semi-automática: obsessão.
Nada estranho, então, abrir uma conta num banco e ganhar uma arma. É assim que Michael Moore começa seu filme: entrando num banco de Michigan e saindo com uma espingarda de médio porte nas mãos. Tudo muito fácil e rápido. Bastou responder a um questionário vago, com perguntas do tipo: “Você já esteve internado num hospício alguma vez?” Uma resposta negativa (já que a verdade não importa, a priori) e pronto: saia dando tiros à vontade.
É certo que o cliente não se sentirá só, pois o estado de Michigan tem até uma milícia organizada, formada por dentistas, donas-de-casa, corretores de seguros… Seus membros acreditam piamente estar desempenhando o seu dever como cidadãos. “Cuide você mesmo da sua família”, declara uma jovem moça, trajando uniforme camuflado e segurando uma pistola de fabricação nova, enquanto sua filha — de uns dez anos — acena para a câmera. Tudo muito natural, pois eles estão do lado do “Bem”. Dois dos membros da milícia já demonstraram toda essa “bondade” ao explodir um edifício em Oklahoma6.
Uma série de depoimentos colhidos por Moore espanta pela convicção da maioria de que não há nada de errado. Como zumbis num transe profundo, os chamados “americanos médios” repetem, como papagaios, o discurso dos monopólios da comunicação, dos potentados e de suas corporações. A nebulosa de pânico no ar cria situações non sense em que as estatísticas indicam queda de 20% nos crimes, embora tenha se registrado aumento de 600% na cobertura da imprensa (as informações são de Barry Glassner, autor do livro Cultura do medo).
A exploração espetacular do crime na televisão propicia lucros enormes. Um dos cínicos produtores da TV ianque diz, sem constrangimentos: “A violência vende bem”. E tais programas, muito além de propagar o temor, cultivam o ódio racial mostrando quase sempre homens negros e latino-americanos presos. Uma associação imediata é pretendida: o perigo está lá fora e ele tem o rosto de um negro ou de um latino. Curioso que as estatísticas, segundo o promotor da cidade de Littleton, indiquem maior incidência de armas nos bairros “brancos” da pequena e alta burguesia.
Quem é perigoso, afinal?
O massacre em Columbine coincidiu com o ataque do exército ianque a Kosovo, na Iugoslávia, palco de uma guerra civil. Era 20 de abril de 1999. O então presidente, Bill Clinton, fez um daqueles batidos discursos na TV, à maneira dos papas: “Estamos rezando pelas vítimas”.
A violência institucionalizada dos “donos do mundo” acaba contrastando com a violência doméstica de dois jovens de classe média. Qual a relação? Para a maioria, nenhuma. Erik Harris e Dylan Klebold seriam adolescentes problemáticos, desajustados, fracos para competir numa sociedade que cobra o melhor. O problema seria unicamente deles. Já o modelo de nação estaria perfeito. Nada errado em bombardear um hospital lotado de civis. A guerra se justifica pelo “Bem” — ao menos enquanto ianques não retornam para casa em sacos plásticos, quando então os magnatas começam a lançar a culpa nos “equívocos da administração”.
Em seu depoimento, Matt Stone, produtor de desenho animado, esclarece algo sobre os valores da juventude no USA. Ele estudou em Columbine e viveu o universo do típico adolescente estadunidense. Segundo Stone, o clima de terrível competição se inicia bem cedo, na escola, incentivado pelos próprios pais e professores. “Se fracassar agora, fracassará para sempre”, resume ele a filosofia recorrente.
Erik e Dylan faziam parte dessa pária de desajustados, engendrada por um sistema que, moribundo, resiste a poder de drogas. Nessa infeliz “pátria livre”, eles compraram armas legalmente (mesmo sendo menores de idade) e resolveram descarregar suas frustrações promovendo uma chacina.
O caso Columbine desencadeou uma onda de “tolerância zero” nos colégios. Uma criança de cinco anos apontando um cachorro quente para a professora foi enquadrada como problemática e perigosa. Astros supérfluos foram acusados de influenciar o comportamento dos jovens. Sacerdotes da ética imperialista — como os “âncoras” de TV — debatiam a virulência do cinema, de jogos eletrônicos, dos miseráveis espreitando do lado de fora… Ninguém parecia se questionar sobre a política ianque, as desigualdades do sistema econômico, o sujo imperialismo. Nada de errado com os arautos do imperium: os “brancos”, os bem-nascidos, os parlamentares, os meios de comunicação, o clero, a magistratura, o exército, a polícia… O medo desviava a atenção do povo de outros temas, como a agressão ao meio geográfico, o desajuste de programas sociais, os escândalos de corrupção, as nações agredidas de forma inexplicável, os gastos excessivos com defesa e o aumento de impostos.
“Sábios homens brancos”
Apenas dez dias depois do massacre de Columbine, Chalton Heston — o ex-ator e agora presidente da Associação Nacional de Rifle (RNA, na sigla em inglês) — resolveu visitar Littleton e deflagrar campanha favorável ao armamento. Heston é, de longe, a figura mais abjeta a aparecer no documentário: um típico reacionário ianque, senhor da razão, convicto em seus preconceitos. Seu cinismo e insensatez passam por cima do sofrimento dos parentes das vítimas.
Moore encerra o filme justamente conversando com ele em sua mansão, na Califórnia. Como entrevistador, o cineasta peca por sua mordacidade um tanto histriônica (em vários momentos Moore parece querer ser a estrela de seu filme), o que acaba fazendo Heston se esquivar. Entretanto, algumas pérolas do pensamento conservador são obtidas na conversa.
Heston seria uma piada… caso não existisse. O antigo canastrão dos filmes doutrinários made in USA existe agora fora das telas, onde desempenha um papel ultra-reacionário. Suas declarações primam pelo extremo obscurantismo.
Perguntado sobre o porquê do USA ser (entre as potências, sem incluir colônias e semicolônias) um dos países mais violentos do globo — 11.127 homicídios por ano dentro de suas fronteiras — o ex-ator não teve dúvida: a causa de tanta violência seria (pasmem) uma “mistura étnica maior”. Para Heston, a pujança de sua nação se deve à contribuição dos “sábios homens brancos” que a constituíram. E para defender a sua NRA, Heston se arvora na Segunda Emenda da Constituição, que diz que o porte de armas é facultado para qualquer ianque “de bem”. Uma emenda escrita por esses “sábios homens brancos” quando o país estava em guerra civil, num contexto completamente distinto.
Falando de sua visita a Flint — cidadezinha onde uma criança de seis anos matara acidentalmente uma outra de mesma idade — Heston destila o mais descarado escárnio: “Não estava a par do acontecido.” Nesse e em outros momentos, Heston e seus asseclas passaram por cima do sofrimento alheio e foram defender a sua Associação Nacional do Rifle bem em cima das poças de sangue ainda frescas.
1 Em 1973, o presidente do Chile, Salvador Allende, resiste ao golpe perpetrado pelo imperialismo ianque com ajuda da burguesia reacionária e dos latifundiários. No dia 11 de setembro, no Palácio de La Moneda, Allende é alvejado por vários disparos quando resistia aos bombardeios e aos grupos especiais de assassinos sob o comando de Augusto Pinochet. Allende fora eleito em 1970 pela frente denominada Unidade Popular — uma frágil e comprometedora aliança de “socialistas, comunistas e social-democratas cristãos”. 2 Em 1986, Ronald Reagan, presidente do USA, sofre sérios reveses. A venda de armas para o Irã é denunciada. O dinheiro apurado destinou-se aos contra-revolucionários (os “contras”) treinados pela CIA para atacar a Nicarágua. 3 O Iraque invadiu o Kuwait no dia 2 de agosto de 1990. O USA, juntamente com a Arábia Saudita e outros países, formaram a “Força Aliada”. O Iraque recebeu um ultimato para desocupar o Kuwait até o dia 15 de janeiro de 1991. Como não demonstrou nenhuma intenção de sair, as Forças Aliadas começaram a bombardear Bagdá em 17 de janeiro de 1991. No cerne do conflito, o interesse imperialista na rica região do petróleo. 4 Depois da guerra na Bósnia, cresce a tensão entre os kosovares de origem albanesa e os sérvios na província de Kosovo. Em janeiro de 98, ocorrem confrontos entre as forças sérvias e os guerrilheiros do Exército de Libertação de Kosovo (ELK). No ano seguinte, USA e União Européia forçam os dois lados a retomar negociações sobre o futuro da província. A Iugoslávia rejeita a proposta de autonomia para a província seguida pelo envio de uma força de paz internacional. No ano seguinte, a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) decide atacar a Iugoslávia — sem consultar a ONU ou qualquer outro organismo internacional. Durante 78 dias, Sérvia, Montenegro e Kosovo são bombardeados sem parar. Centenas de pessoas morrem e mais de um milhão fogem para a Albânia e Macedônia. 5 Louis Armstrong (1900-1971), trompetista e cantor de jazz. 6 Um deles, Timothy McVeigh foi executado com uma injeção letal em 2000. Além de ter sido membro da milícia, fora soldado condecorado por sua participação na Guerra do Golfo. O atentado ao prédio Alfred Murray, em Oklahoma deixou um saldo de 168 pessoas mortas naquele 19 de abril de 1995.