O amanhã vai chegar

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O amanhã vai chegar

Faz escuro, mas eu canto é um dos mais belos livros do poeta amazonense Thiago de Mello. Escrita e publicada em 1965, a obra já se encontra em sua 21ª edição. O trabalho reúne poemas notáveis como A vida verdadeira, Os estatutos do homem e Madrugada camponesa. A coletânea é uma obra prima da literatura brasileira, que, além de nos levar a reflexões sobre a realidade social, nos empurra, com toda a certeza, para um mundo de palavras muito bem escritas e expostas.

http://jornalzo.com.br/and/wp-content/uploads/https://anovademocracia.com.br/49/20b1.jpgMeados dos anos 60: tempos sombrios e escuros, tempos do gerenciamento militar no Brasil. Nesse ano, Thiago de Mello, genuíno filho da Amazônia brasileira, traz para o seu povo uma poesia desafiadora, um clarão de liberdade. Os seus versos redobraram os ânimos dos lutadores populares, apesar dos ásperos tempos: "Não tenho um caminho novo. O que eu tenho é um jeito novo de caminhar. Aprendi (o caminho me ensinou) a caminhar cantando como convém a mim e aos que vão comigo. Pois já não vou mais sozinho".

Thiago de Mello vivenciou a brutal experiência dos cárceres e dessa experiência vem a inspiração para o título do livro. "No amanhecer de uma cela solitária, num quartel da Polícia do Exército, no Rio de Janeiro, do catre fedorento em que me estendia, confesso que, desalentado, li gravado na parede suja, em letras fatigadas: "faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar".

A partir da publicação dessa obra, são sucessivas edições e inúmeros leitores, de poemas escritos em tempos turvos, quando eram perigosos os artistas e as canções que falavam do "nascer de outro dia". Thiago não relutou, não renegou, marchou em frente, resistindo à sua maneira. O poeta e o revolucionário foram uma só pessoa, dedicada sem medir esforços ou riscos à luta pela emancipação do homem, tanto dos grilhões que as injustas estruturas do velho Estado burguês-latifundiário e serviçal do imperialismo que lhe impunha, quanto das limitações com que o individualismo, a ignorância e o egoísmo lhe tolhiam os passos.

Vida sempre a serviço da vida

Em Faz escuro mas eu canto, Thiago de Mello espalha sua canção de liberdade e contagia os leitores com uma poesia ímpar. São poemas que estão longe de serem enquadrados em um romantismo exacerbado e formal, tampouco nas características do parnasianismo. É uma poesia que fala da realidade sem ser panfletária e tão direta.

No poema Canção para os fonemas da alegria, dedicado ao educador Paulo Freire, Thiago de Mello declara seu amor pelas palavras e sua luta por levar a cultura para as massas populares:

Porque unindo pedaços de palavras
Aos poucos vai unindo argila e orvalho,
Tristeza e pão, cambão e beija-flor,
E acaba por unir a própria vida
No seu peito partida e repartida
Afinal descobre num clarão

O homem, florescido com as palavras, cresce com o conhecimento, chama seus companheiros e espalha o pólen do seu aprendizado. O poeta encerra seu canto com a alegria presente nos fonemas:

Canção de amor geral que eu vi crescer
Nos olhos do homem que aprendeu a ler

http://jornalzo.com.br/and/wp-content/uploads/https://anovademocracia.com.br/49/20b2.jpgEm A vida verdadeira, Thiago de Mello inicia com passagens de sua infância no Amazonas, o gosto da água negra-transparente, e navega nas dificuldades e na coragem para superá-las, nos casamentos, paternidade e empregos. Vida que não se guarda nem se esquiva, assustada. Caminhamos ao embalo de seu canto e aprendemos que o homem é a semelhança do menino com tudo o que ele tem de primavera, de valente esperança e rebeldia.

O poema 39 anos de um cidadão brasileiro, escrito em Santiago no Chile em 31 de março de 1965, é uma certidão de nascimento poética. Os versos dispõem sobre o homem na sociedade, as canoas que cruzaram os primeiros rios, os diplomas e certificados. Um brasileiro, caboclo, reservista, eleitor e desempregado que, ao se olhar no espelho, só consegue encontrar o poeta, pois "a poesia mais que ofício é contingência da minha vida de homem".

Em Madrugada camponesa, o poeta exalta a luta dos camponeses do Brasil. A vida sofrida e honrada de lutar, plantar, colher e compartilhar. O tempo do medo se contrapõe ao tempo de ceifar o trigo.

Não vale mais a canção
Feita de medo e arremedo
Para enganar solidão.
Agora vale a verdade
Cantada simples e sempre,
Agora vale a alegria
Que se constrói dia-a-dia
Feita de canto e de pão

Verdade simples, mas sempre. Conquistas e alegrias… São os significados traçados pelo poeta para os sonhos dos homens e mulheres do campo que lutam todos os dias por construir um mundo onde haja paz, trabalho, justiça, liberdade e terra para todos que nela labutam.

Madrugada camponesa.
Faz escuro (já nem tanto),
Vale a pena trabalhar.
Faz escuro, mas eu canto
Porque a manhã vai chegar
Ainda é tempo
de Esperança!

Otto Maria Carpeux, na "orelha" do livro, apresenta Thiago de Mello como um homem aberto aos anseios coletivos do povo brasileiro, como uma voz que canta, por mais impenetrável que pareça, a escuridão da hora da travessia.

"Freud comparou o sonho a uma voz de criança que canta no escuro porque sente medo. O Canto no Escuro, de Thiago de Mello, ao contrário, nos inspira coragem. Sua poesia também é relógio: dá a hora do galo que anuncia a aurora."

É preciso dizer que Thiago de Mello faz parte e é o herdeiro de uma plêiade de poetas que fazem questão de não marcar diferença entre o ato de viver e o de escrever, emprestando generosamente à arte da poesia as inúmeras lutas do dia-dia. E na história da literatura nacional, felizmente, existem esses poetas, irmãos em armas de Thiago, como Castro Alves, Drummond, Bandeira e tantos outros, conhecidos e anônimos.

Encerramos deixando ao leitor de A Nova Democracia a bela mensagem do artigo final do Estatuto do Homem, escrito em abril de 1964, um dos poemas mais conhecido de Thiago de Mello:

Artigo final

Fica proibido o uso da palavra liberdade,
A qual será suprimida dos
dicionários
E do pântano enganoso das
bocas.
A partir deste instante
A liberdade será algo vivo
e transparente
Como um fogo ou um rio,
E sua morada será sempre
O coração do homem

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