O assalto cartorial

O assalto cartorial

Muito mais por medo de sequestradores do que para evitar atrasos na ida para o trabalho, Adilson Alves Mendes, titular do ultra cobiçado cartório particular do Rio — o do Registro de Imóveis — tornou-se o assíduo passageiro dos helicópteros que decolam de manhã do heliporto de Jacarepaguá para deixar, em helipontos dos luxuosos edifícios do Centro, os endinheirados moradores da Barra da Tijuca. 

Aposentados que povoam as areias próximas ao píer apostam que, logo logo, ele vai se cansar da companhia daqueles com os quais costuma dividir o preço do vôo diário, e adquirir um helicóptero só para si. Afinal, seu ofício é fazer funcionar uma engenhoca que, embora datando do século 15, para fazer dinheiro é tão eficiente quanto qualquer sistema moderno de extorção. A maior dificuldade, porém, reside na ordem prática: no ar, ele não estará tão à frente do negócio quanto na escrivaninha. Para pilotar um helicóptero, exige-se curso superior e muitas horas de instrução. Quanto ao tabelião, desse não se requer nem o equivalente ao antigo primário, excetuando-se o caso de ser analfabeto completo porque lhe seria difícil usar a impressão digital destinada, por exemplo, a atestar autenticidade na cópia de um diploma de físico nuclear.

Roubalheira da autenticação

Em contraste com as facilidades que a vida oferece ao tabelião voador, por todo o Brasil dezenas de milhares de universitários tiveram muita dor de cabeça com o processo de matrícula, no início do ano letivo. É que para muitas universidades, não bastam os documentos originais do estudante. É exigida cópia autenticada de cada um deles.

Em Goiânia, a estudante Lara Mônica da Silva, 19, contou ao jornal Tribuna do Planalto uma verdadeira odisséia:

— Foram quase quatro horas perdidas entre ônibus e espera no cartório, na tentativa de cumprir a exigência, que custa caro demais.

Ao alcançar o objetivo, Lara saiu do estabelecimento com seis carimbos cravados nas fotocópias: dois na de identidade, dois no de CPF, um no certificado de conclusão do segundo grau e outro no comprovante de endereço. É a norma para a autenticação: a cada folha, um carimbo por lado da via. Em Aracaju, cada carimbada dessas custa, ao pobre do estudante, um real e 50 centavos. Em Goiás, a lei estadual 14.376, de 27/12/2002 fixa em R$ 3,00 o preço de uma cópia xerográfica. Em São Paulo e no Rio, a Corregedoria do Tribunal de Justiça baixa, todo ano, uma tabela, mas em não poucos balcões a coisa vai de acordo com a cara do freguês.

Prejuízo financeiro e perda de tempo poderiam ser evitados se a lei — sempre que pode ser acionada em favor do povo — fosse cumprida. Em vigor desde 11 de janeiro de 2003, o novo Código Civil (Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002) desobriga o titular de apresentar autenticação mecânica para comprovar veracidade de seus documentos. Diz o seu artigo 225 que “as reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte, contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.”

A despeito disso, não só entidades privadas, como também órgãos públicos, e sobretudo os cartórios, fazem vistas grossas para o texto da lei. Basta ter de atender a um edital que lá estará a exigência de fotocópia autenticada, com firma reconhecida. O governo, logicamente, é o maior infrator.

Enquanto os reacionários ideólogos da acomodação afirmam não existir semifeudalismo no Brasil, ele se expressa na própria vida urbana.

A Agência Goiana de Transporte e Obras (Agetop), por exemplo, exige, a qualquer um que pretender recorrer de seus autos de infração, fotocópia autenticada de todos os documentos. E ameaça: “A não-apresentação de quaisquer documentos junto com o requerimento implicará no indeferimento sumário do presente recurso.”

O arquiteto João Brasil Nogueira contou, indignado, que, para aceitarem um pedido de revisão de multa de trânsito, outra grande indústria da extorção, foram-lhe solicitadas cópias autenticadas de Carteira de Identidade, CPF, Certificado de Registro e Licenciamento de Veículo (CRLV), Auto de Infração e Carteira Nacional de Habilitação (CNH), além do comprovante de endereço.

— Mesmo levando todos os documentos originais junto com as fotocópias, tive de ir ao cartório para autenticá-las. É uma tremenda falta de respeito.

O superintendente do Procon de Goiás, Antônio Carlos de Lima, diz que o problema é de insensatez grave:

— Falta seriedade. De um lado, o Estado baixa uma norma dispensando autenticação; de outro, estabelece tabela de preços para tudo o que tornou desnecessário. E não há cartório que informe ao usuário que o carimbo é dispensado. Ao contrário, defendem a necessidade do serviço. Ou como diz o mesmo superintendente, numa outra oportunidade:

— Semelhante ao direito penal, quando assevera que o réu é considerado inocente até que se prove o contrário, o documento deve ser considerado verdadeiro até que seja contestado, e, em seguida, provada sua inautenticidade por intermédio de um exame grafotécnico.

Herança colonial portuguesa

Exemplo vivo de estado dirigido pelos monopólios privados, o cartório é, para muitos, a pior instituição que o país herdou dos tempos em que foi colônia de Portugal. Tentativas de extingui-lo do país foram muitas, nenhuma com sucesso. Fortes que são, sempre fizeram da lei uma letra morta.

A Constituição de 1988 tem a mesma disposição da velha Carta de 1891: “Art. 236 – Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público” (?!). Até a promulgação desse texto constitucional, o termo genérico “cartório” era usado para designar ofícios judiciais, extrajudiciais e dos distritos policiais. Aquele artigo 236 substituiu o termo “cartório” pela expressão “Serviço Notarial e de Registro”, consagra do também pela Lei Federal 8.935, de 18 de novembro de 1994, para identificar os antigos cartórios extrajudiciais, necessários à garantia da publicidade, autenticidade e eficácia dos atos jurídicos. Tabelionatos de Notas, Registros Civis das Pessoas Naturais, Protestos de Títulos, Registros de Imóveis e Registros de Títulos e Documentos e de Pessoas Jurídicas que ainda são dados de mão-beijada pelos donos do poder a seus cupinchas, ou conquistados através de concursos de cartas marcadas, como o demonstram alguns processos em curso no Rio e outros grandes centros.

A luta para extirpá-los da estrutura judiciária é tão antiga quanto sua própria existência. Nasceram de um vício de origem: de que todos devem ser questionados, como se ninguém fosse inocente até prova em contrário. Tudo, para existir, tinha de ser certificado. E pago. Para que existisse “fé pública”.

A fé pública — o termo nos remete à separação não concluída, mas oculta até onde leva a coveniência, entre Igreja e Estado — existe em Portugal desde 1305 e, de lá para cá, várias propostas de emenda constitucional foram elaboradas, algumas até aprovadas, no Brasil e em Portugal. Nunca cumpriram o preceito constitucional que obriga qualquer um a atender, gratuitamente, os brasileiros que, por falta de identificação, não têm acesso aos mínimos direitos do cidadão, simplesmente porque não podem pagar.

E aqui nem se fala das pequenas fortunas cobradas de um pai que, ao transferir duas casas para o filho, só de taxas tem de vender uma para conseguir transferir outra. A questão é mais grave porque abala a própria noção da tão decantada (e debochada) cidadania de “classe média”. Quem pode pagar, registra os filhos, paga para dizer que nasceu e para alguém dizer que morreu. Os que não podem pagar, continuam fora da vida pública. Na Região Norte, metade dos habitantes, comprovadamente miseráveis (ou, preferindo “abaixo da linha da pobreza”) não têm certidão de nascimento.

Gratuidade da burocracia

À União sempre coube a prerrogativa de legislar com exclusividade sobre os serviços notariais e de registro, tendo as Constituições de 1934 e 1967 — alteradas pela Emenda nº 1, de 1969 — sido mais explícitas no sentido de constitucionalizar e apontar a natureza eminentemente pública desses serviços. A Carta de 1934 já chegava a estabelecer a gratuidade tanto para a celebração do casamento e o respectivo registro civil quanto para a habilitação.

Na Proposta de Emenda Consitucional, comparavam-se impostos e emolumentos: “Aumentos de impostos são decisões que passam pelo crivo de toda a sociedade por meio do Legislativo. Isso porque são custos impositivos, sem saída para o cidadão. Custas de cartórios são da mesma natureza, com uma diferença: impostos vão para o Estado; custas de cartório, para seus donos. No meio forense, estima-se que um cartório de notas, em São Paulo, renda R$ 1 milhão por mês para seu proprietário. Meia dúzia de mesas velhas e alguns tabiques malcheirosos, em cima de um chão encardido, rendem para o proprietário mais do que uma empresa média com mais de mil funcionários.”

Em 2000, a lei federal 10.169 tentou acabar com a farra. Quando a lei chegou às mãos de Cardoso para promulgação, havia sido suprimido o dispositivo que eliminava os chamados “penduricalhos cartorários”. Acabou sendo vetada, permitindo a continuação dos abusos. Os cartórios trocaram seis por meia dúzia e passaram a cobrar R$ 10 por R$ 1.000 onde antes cobrava-se 1%.

Nem cumpre a lei

Por exemplo, desde 1997 a certidão de nascimento é um documento gratuito. Naquela época, 40% das crianças que morriam antes de completar um ano de idade eram enterradas em cemitérios clandestinos, sem prova de sua existência. No Maranhão e Piauí, o índice beirava 90%. Ainda assim, a maioria dos cartórios se recusava a cumprir a lei e cobrava para expedir o documento. Uma intensa campanha nacional pelo registro civil gratuito reverteu, em parte, o quadro. Mas continua a não haver estimativa detalhada sobre a quantidade de crianças que passaram a ser registradas. Para obter esse número, o governo depende das informações que os cartórios têm de repassar. Uma pesquisa do IBGE indicou que desde 1991 o número de sub-registros (diferença entre o total de nascidos vivos estimados e o total registrado) tem-se mantido estável, oscilando de 20,9% a 29,8%.

Mesmo sem considerar o poder aquisitivo da esmagadora maioria da população, o país não superou até hoje as dificuldades de levar uma família a registrar o nascimento nos cartórios. Seguem até motivos relacionados à distância entre o local de nascimento e os cartórios, além da dificuldade por eles próprios imposta, como as que insistem em ignorar a lei que criou em 1997 a gratuidade para o registro civil de pessoas naturais.

A eficiência e os propalados benefícios que o exercício privado das atividades notariais e registrais trariam para a população não se confirmaram, haja vista que referidas serventias — como de resto todo negócio que divisa apenas auferir lucros —, estão eminentemente voltadas para o mercado, sem qualquer preocupação político social.

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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