O Brasil que come morre pela boca

O Brasil que come morre pela boca

Cinco décadas de marketing de comida, salgadinhos e refrigerantes produzidos por grupos estrangeiros mudaram radicalmente a cultura e os hábitos alimentares do brasileiro (em condições de fazer refeições), mergulhando o país em uma situação paradoxal: diante de uma legião progressiva de indigentes o governo responde com a criação de um programa chamado “Fome Zero”; ao mesmo tempo, a quantidade de crianças obesas ascende aos 7 milhões, ou 15% do total.

Esse percentual foi apresentado pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) no 12° Congresso Europeu de Obesidade realizado em Helsinque, Finlândia, e permite antever que se fosse necessário ao Brasil mobilizar-se hoje para uma guerra, teria primeiro de vencer um inimigo interno: as péssimas condições de saúde.

Ao que tudo indica, haveria nos dias atuais dificuldades ainda maiores do que em 1943, quando o governo comprometeu-se com os Aliados a enviar 100 mil homens aos campos de batalha, mas a Força Expedicionária Brasileira não reuniu mais do que 25 mil, porque a imensa maioria dos jovens convocados foi dispensada por estar contaminada pela sífilis.

Nesse caso, obesidade pode ser até mais fatal do que as doenças venéreas (exceção feita para a Aids), porque o excesso de peso detona os processos hipertensivos e diabéticos. E no tempo decorrido de 1975 a 1997, enquanto os antibióticos, as “campanhas de conscientização” e a camisinha minimizavam a incidência da sífilis e da blenorragia, o número de obesos dobrou.

Ao longo dos últimos três anos, uma equipe da Universidade de São Paulo (USP), coordenada pelo fisiologista Carlos Eduardo Negrão e pela endocrinologista Sandra Villares, descobriu que nos obesos, durante as atividades físicas ou intelectuais, as artérias dilatam-se mal e o sangue não se espalha pelos músculos. A resistência dos vasos sanguíneos contraídos faz a pressão subir acima do tolerável.

A conquista do mercado

O hot-dog, o hamburger e o ham’n eggs começaram a usurpar o trono tradicionalmente ocupado pelo feijão com arroz e o bife com fritas na mesa do brasileiro — ao menos da parcela da população brasileira que, bem ou mal, dispõe de recursos para se alimentar em horários regulares — com a abertura da primeira casa de fast-food, no Rio de Janeiro, em 1952: o Bob´s, de Robert Falkenburg.

Nem mesmo o frango assado adquirira o conceito de fast-food quando esse americano resolveu aplicar o dinheiro que ganhara no tênis profissional na Falkenburg Sorvetes Ltda, uma loja da rua Domingos Ferreira, em Copacabana (RJ), que vendia exclusivamente sorvete de baunilha, com máquinas e receitas trazidas dos Estados Unidos.

Depois de ter lançado no Brasil o hot-dog, o hamburguer, o milk shake e o sundae, Falkenburg voltou para os Estados Unidos em 1974, após vender o Bob’s à Libby do Brasil, empresa do setor de alimentação que no ano seguinte lançaria o Big Bob, produto pioneiro no conceito de sanduíche-refeição no Brasil. Três anos depois, a rede se expandiu até São Paulo e em 1987 foi comprada pela Vendex do Brasil, transnacional holandesa depois controlada pela Nestlé, que em março de 1996 a vendeu à Brazil Fast Food. O Bob’s conta hoje com 379 pontos de venda espalhados por 22 estados, tendo inaugurado em 2001, em Portugal, sua primeira loja internacional.

O McDonald’s, que aportou no Brasil cinco anos após a partida de Bob Falkenburg, informa que até os dias atuais atendeu mais de 4,5 bilhões de clientes, que comeram cerca de 600 milhões de Big Macs e 2 bilhões de Mac Fritas. É como se a população do Brasil inteiro tivesse ido 25 vezes aos 580 restaurantes, 670 quiosques e meia centena de McCafés da rede, que abrange 128 cidades em 21 estados e emprega 36 mil funcionários.

As consequências

Pesquisas da Faculdade de Saúde Pública da USP, coordenadas pelo epidemiologista Carlos Augusto Monteiro, denunciam que, de 1975 a 1997, período de 20 anos em que o Bob’s e o McDonald’s impuseram seus produtos à gastronomia brasileira, o número de obesos no mínimo dobrou.

A quantidade de homens obesos aumentou três vezes nesse período, chegando a 6,4% da população masculina adulta. O total de mulheres obesas duplicou, atingindo 12,4% do universo adulto feminino. E aumentou cinco vezes o número de crianças e adolescentes obesas, segundo artigo de Carlos Augusto Monteiro publicado na Public Health Nutrition em fevereiro de 2002, em parceria com Wolney Conde, da USP, e Barry Popkin, da Universidade da Carolina do Norte, USA.

Um novo e grave problema de saúde pública se estabeleceu no país, sem que se saiba quanto isto tem custado à população. Contudo, ao longo de 2002 nada menos que 1,5 milhões de pessoas passaram diariamente pelos balcões do McDonald’s, em cujo caixa deixaram R$ 1,7 bilhões.

O faturamento dessa fábrica de banha aumenta anualmente em R$ 100 milhões, graças à fidelidade de uma clientela certamente ignorante de que nos Estados Unidos o cientista John Hoebel, da Universidade de Princeton, Nova Jersey, tem advertido o mundo de que hambúrgueres e batatas fritas podem desencadear processos de dependência semelhantes aos da heroína e da morfina, devido ao elevado consumo de açúcar e de gorduras. Após várias experiências com ratos, ele concluiu que os alimentos com alto teor de gordura estimulam no corpo humano a produção de substâncias que provocam no cérebro reações químicas de prazer.

Ann Kelley, neurocientista da Faculdade de Medicina da Universidade de Wisconsin, estudou o comportamento de ratos que receberam alimentos doces, salgados e gordurosos. Verificou que, após algum tempo, os ratos passaram a comer até seis vezes mais do que sua dieta normal de gordura, indicando uma efetiva ligação entre substâncias químicas no cérebro e o desejo por esse tipo de comida. “Isto significa”, explicou, “que a simples exposição a refeições saborosas e prazerosas é suficiente para mudar a expressão do gene, o que sugere a possibilidade de se ficar viciado em comida.”

O remédio custa caro

A única medida efetiva para reverter este quadro, segundo especialistas, consiste na promoção de campanhas de reeducação da população para associar dieta saudável aos exercícios físicos. No entanto, isto custaria ao país muito mais do que esse tipo de comida paga de impostos, até mesmo porque muitas dessas empresas andam fazendo contribuições em dinheiro e gêneros alimentícios a programas do tipo “Fome Zero”, descontando, obviamente, sua benemerência do imposto de renda a pagar.

Artigo publicado em setembro no American Journal of Physiology — Heart and Circulation Physiology, assinado por pesquisadores da USP como Ivani Trombetta, Negrão, Sandra Villares e outros, alerta que não há outro jeito realmente eficiente de reverter as consequências do excesso de peso. Reduzir o tamanho das porções ajuda a emagrecer, mas não é tão eficaz na hipertensão e diabetes quanto os exercícios. “E não basta fazer uma atividade física qualquer, como caminhar até o supermercado ou subir as escadas em vez de tomar o elevador”, alerta o professor Negrão, responsá vel pela Unidade de Reabilitação Cardiovascular e de Fisiologia do Exercício do Instituto do Coração (InCor), “o exercício físico deve ser programado e feito com regularidade, respeitando a capacidade física e cardíaca de cada pessoa”, diz ele.

Mas os pesquisadores constataram que já na infância a obesidade afeta o funcionamento do sistema nervoso simpático: o fluxo de sangue para os braços e as pernas das crianças obesas aumentava apenas 14%, enquanto nas magras essa elevação atingia 43% durante o teste de estresse mental aplicado a elas.

Os suspeitos da merenda escolar

A obesidade já supera no Brasil os índices de desnutrição, aproximando-se do quadro norte-americano. Nesse cenário, destacam-se as consequências do consumo intensivo de produtos da Kraft Foods, líder mundial da indústria de alimentos.

No Brasil, o Ministério da Saúde criou uma política nacional de alimentação e nutrição, tornando obrigatória a discriminação das calorias nos rótulos de alimentos industrializados, e diz ser também obrigatório as prefeituras empregarem 70% do orçamento destinado à alimentação de alunos do ensino público na compra de alimentos frescos, como frutas e legumes.

A princípio, a medida deverá eliminar da merenda escolar produtos como o biscoito Negresco— versão brasileira do Oreo, o rechaft Foods associava-se a fabricantes de cigarros (R.J. Reynolds, Philip Morris) acusados de adicionar ao fumo substâncias estranhas para aumentar a dependência dos fumantes, a empresa começou a ser acusada de fazer o mesmo com o biscoito Oreo. Não tardou a abertura de um processo, nos Estados Unidos, no qual denunciava-se que o recheio do Oreo provocava entupimento das artérias. A indústria apressou-se em anunciar alterações nas receitas de seus produtos.

A história da Kraft Foods começa em 1903, nos Estados Unidos, quando James Lewis Kraft, dispondo apenas de uma carroça alugada e capital de 65 dólares abriu em Chicago uma distribuidora de queijos. Já a penetração da J.L Kraft no Brasil deu-se através de produtos como o fermento em pó Royal, chocolates Lacta (Sonho de Valsa, Diamante Negro, Ouro Branco), Ki-Suco, Gelatina Royal, Tang, Bis, Trakinas, Club Social, Maguary, Iracema e Philadelphia Cream Cheese. Hoje, tem 11 fábricas no Paraná, São Paulo, Minas e Ceará, operando nos segmentos de chocolates, biscoitos, sucos concentrados, bebidas em pó, queijos, castanhas, sobremesas e fermento em pó.

Outras empresas, como a Coca-Cola, vêm sendo criticadas por fecharem acordos com escolas, destinando-lhes verbas caso vendam exclusivamente produtos da sua marca, havendo nos Estados Unidos sérios temores do setor quanto a possibilidade de terem de se defrontar com uma avalanche de processos, a exemplo do que aconteceu com a indústria do fumo.

Em consequência, desenvolve-se no Congresso e nos legislativos estaduais intenso lobby patrocinado pelas indústrias de junk food.

O lobby da gordura

No estado americano de Wisconsin, os deputados têm apresentado à Assembléia, com grande frequência, numerosos projetos de lei com vistas a impedir a abertura de processos contra empreendimentos locais por parte de pessoas com problemas de obesidade. Os parlamentares reconhecem que é ridículo legislar nesse sentido, mas ressaltam que não faltam motivos para isso. Exemplificam com o caso de Caesar Barber, de 56 anos, operário de manutenção cujo peso está próximo a 135 quilos, que aponta o McDonald’s, o Burger King, o Wendy’s e o KFC como responsáveis pela precariedade de sua saúde (com diabetes e dois infartos) e reclama que aquelas empresas não revelaram os riscos da comida gordurosa e salgada que lhe serviram quatro ou cinco vezes por semana. Segundo a porta-voz da Associação de Restaurantes de Wisconsin, Sara Stinski, “é preciso intensificar o lobby para evitar que esses processos judiciais, abertos contra grandes cadeias de fast-food localizadas nos grandes estados, acabem se alastrando para estados menores, contra cadeias menores.”

A Organização Mundial da Saúde (OMC) admite que chega a 700 milhões a quantidade de pessoas com sobre-peso — peso um pouco além do considerado saudável — destacando outros 300 milhões de obesos, dos quais pelo menos um terço está nos países “em desenvolvimento”. Além de gastar US$ 55 bilhões ao ano para tratar problemas decorrentes da obesidade, o governo americano vê a questão como uma epidemia, que tem exigido a promoção de “campanhas” nacionais incentivando, por exemplo, os pais a levarem os filhos para a escola a pé, em vez de usarem o carro. Mas cadeias de junk food e obesidade são duas coisas que têm se expandido, paralelamente também, em nações da Europa e nos países semicolonizados, obrigados a aderir ao estilo de vida norte-americano, marcado pelo sedentarismo, refeições fartas e biscoitos em abundância, a qualquer hora.


*Archibaldo Figueira é jornalista e escritor. Autor de A Hering de Blumenau e Lobby, do Fico à UDR. [email protected]
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