O campeão da perseverança

O campeão da perseverança

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Menino pobre do interior do Mato Grosso, Rony Dias veio muito jovem para o Rio de Janeiro, sem condições de permanecer em sua terra natal. De lá para cá, na luta pela sobrevivência, Rony tornou-se operário mecânico, dedicou-se à música (integrou grupos de samba) e, com o passar do tempo, foi se firmando no esporte, dedicando-se ao aprendizado de artes marciais.

Rony exibe com orgulho o citurão de campeão profissional 2002, pela Associação de Esportes de Combate do Estado do Rio, filiad á Associação Internacional de Esportes de Combate (ISCA).
O uso dos pés faz do Kick boxing um esporte muito perigoso

Com o fim dos terrenos baldios, graças à especulação imobiliária altamente monopolizada pelos latifundiários urbanos, crianças e jovens se retiraram para os ambientes fechados dos shoppings, clubes e salões, cada qual segundo suas possibilidades, de permanecer freqüentando um ou outro ambiente. Áreas abertas são raras. Restam apenas as do litoral, quadras de esportes em algumas praças e nas escolas para atividades destinadas aos alunos matriculados, mesmo assim, longe de atendê-los satisfatoriamente.

No que diz respeito ao esporte, não são as modalidades esportivas que determinam sua popularidade, mas a base econômica que dita o que pode ou não fazer a juventude, como se lançar aos prazeres da vida "no tempo que lhe deram para viver", ambos mais ou menos afunilados segundo as classes a que pertençam os contingentes juvenis. O espaço fechado, se antes foi preenchido pelo basquete, vôlei, futebol de salão, tornou-se mais acanhado, mais individualista, até que acabou se encontrando com os esportes marciais. Fundiu-se com a propaganda do exercício da violência, do maniqueísmo (o bem contra o mal), da ficção narrando a injustiça vencida pelos ajustes pessoais, etc., divulgados pelo cinema e a TV, mas principalmente se consolidaram diante da inesgotável necessidade que tem um corpo jovem de movimentar-se constantemente, como ser social e biológico.

Se as relações sociais de nossa época ainda não permitiram que a sociedade ultrapassasse a pré-história do Homem, esse ainda exercita uma quantidade muito pequena de movimentos, não os sistematiza, nem realiza plenamente o seu corpo. Os esportes que empregam intensamente as faculdades físicas seguem a mesma linha, ainda que ofereçam maior diversidade de movimentos, reflexos, etc., embora também vivam a infância da motricidade humana.

Os esportes marciais, de maior divulgação, passaram a reunir um considerável número de praticantes, algumas vezes superior ao contingente dos que se dedicam ao "futebol de camisa" (termo antigo, usado no futebol de campo, significando equipe estável e com uniforme completo — da camisa à chuteira).

As possibilidades de lazer para a juventude, que vêm se reduzindo sempre mais, aliadas à propaganda da violência com estilos que fazem moda, atraem os jovens pelos mitos criados em torno das lutas de tradição "oriental", pela capoeira e outras modalidades similares. Os filhos dos trabalhadores, principalmente, são os mais atraídos pelos esportes de baixo custo e de maior animação. Rony Dias é um destes filhos do povo, um mecânico eletricista que se dedicou ao esporte, sustentou-o com seu trabalho, conseguindo, inclusive, destaque na sua modalidade, apesar de todas as dificuldades.

Rony resistiu às adversidades e se tornou campeão sul-americano num esporte mesclado de estilos orientais e ocidentais: o kick boxing. A modalidade é o que menos importa, com todo o respeito pelo campeão. Porque, mais do que isso, Rony venceu por várias vezes torneios brasileiros e um sul-americano, alcançando grande destaque por sua capacidade e disciplina nos combates. Sua trajetória no esporte, até o momento, tem sido brilhante, mesmo irretocável. Evidente, em que pese todas as suas vitórias, seu futuro como atleta é incerto, por falta de condições financeiras para se manter em atividade.

Em relato a AND, Rony Dias expõe a situação: "Depender do esporte no Brasil é uma verdadeira loucura. Não adianta: entra governo, sai governo, e nada acontece. Acredito que não terei outra saída a partir deste ano, senão voltar a exercer outras profissões que aprendi, até mesmo a de mecânico eletricista, pois são insuficientes as aulas que dou em algumas academias. Vamos completar dois meses do novo governo sem que nada mude, ou seja, os preços cada vez mais altos e os salários achatados. Até o ano passado, eu treinava sete horas por dia. Com mais ocupações fora do esporte, nem sei se poderei treinar sete horas por semana, praticamente me deixando sem condição de continuar conquistando títulos ou, o que poderá ser pior, de competir. Prefiro nem pensar nisso. Recentemente, voltei a subir no pódio pela conquista do tricampeonato estadual pelo Vasco e, no final da festa, voltei de carona para casa. É frustrante, desanimador. A minha revolta é grande e a vontade é de chutar o balde."

Uma esperança para poucos

Durante os anos de 97, 98 e 99, o clube carioca Vasco da Gama financiou muitos atletas, num investimento que fez na área do esporte chamado "amador". Durante este período, no qual as finanças do clube estiveram sob controle de um conglomerado financeiro internacional— chamado de parceria —, uma expectativa muito grande se formou em todo o meio esportivo, abandonado pelo Estado, de que seria possível erguer uma estrutura mínima para as diversas modalidades do esporte que não tem espaço no país. Nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg/99, disputados no Canadá, o Vasco levou 84 atletas para as várias competições, o que poucas vezes é possível fazer; na Olimpíada de Sidney, na Austrália, mais de 100. Na natação, só para citar um exemplo, apenas três atletas da delegação brasileira não eram do clube.

Rony explica: "Enquanto durou a parceria, tivemos apoio, mesmo no kick boxing, por ser um esporte sem mídia, não olímpico, uma injustiça, aliás, que está para ser corrigida. Todo o esporte torceu pelo Vasco, pois se tivesse continuado com a parceria, o modelo acabaria sendo copiado por outros grandes clubes. Só a nossa equipe tinha 23 atletas, a maioria com títulos internacionais. Tínhamos também uma escolinha, onde eu dava uma ajuda ao técnico Winston José de Sousa. Vibramos muito com a perspectiva que se abria. Infelizmente, aconteceu o que todos sabem, houve desacordo entre as partes, equipes de várias modalidades foram desfeitas e muitos atletas consagrados tiveram que sair. Muitos estão até hoje, sem clube ou mesmo em condições de sequer competir. Um sonho que começou a ser desfeito em 2000, lamentavelmente."

Porém, a iniciativa de um clube ou grupo qualquer não pode resolver o problema do esporte no país. As grandes massas trabalhadoras, sem alimentação adequada para a realização de qualquer esporte — devido aos salários de fome pagos no país—, submetidos aos monopólios internacionais que controlam tudo, usando o esporte para reproduzir seu capital, além de terem superexplorada sua força de trabalho, quase não têm condições para desenvolver atividades de lazer.

Aos trabalhadores não lhes resta o chamado tempo livre. Este é o tempo que as pessoas teriam de ter para si, descontado-se o tempo necessário, ou seja, o tempo de trabalho, de deslocamento indispensável da casa para o trabalho, dos afazeres domésticos, do sono e das refeições. Mas, além de se ocupar com tais coisas, que tempo mais resta a um operário? Não há prática esportiva ou mesmo o mais elementar convívio familiar neste sistema de exploração do homem pelo homem, onde o povo vive somente para trabalhar. Se até mesmo um campeão fica a mercê dos monopólios para prosseguir no esporte, qual é a chance de grandes contingentes de pessoas?

Mais praticantes que o futebol no mundo

Apesar de considerar o "desastre vascaíno" um retrocesso para o esporte brasileiro, Rony permaneceu em São Januário. "Além de ainda possuir a melhor estrutura, é o clube do meu coração. Infelizmente, por conta desta política de exploração do povo e não-incentivo ao esporte, a falência é geral. Prova é que qualquer atleta que se destaque nos esportes é negociado de imediato e por quantias até duvidosas, devido à falência do próprio país. Com a saída dos ídolos, não se cria novos torcedores, a não ser por insistência dos pais, e o público diminui nos estádios. E isto acontece também no vôlei e basquete. Nos outros esportes, a situação é bem pior, pois não há nem verba para a simples sobrevivência. Vários clubes, entre eles, o Flamengo, acabaram com várias modalidades. No voleibol, por exemplo, ficou inviável a simples realização de um campeonato municipal e por pouco o próprio estadual do Rio. Imaginem o kick boxing neste contexto. Sofremos muito com a falta de apoio. E ainda mais sem mídia, que só pensa no futebol. Em pesquisa realizada em 1998, ficou provado que as artes marciais superam o próprio futebol em número de atletas em todo o mundo, mas não interessa. Num país onde os governantes não dão importância à prática de esportes pelo povo, fica difícil admitir uma perspectiva positiva", diz Rony.

Mais de 300 podiuns

Matogrossense de Rondonópolis, Rony tem mais cinco irmãos, três homens e duas mulheres, que também aderiram ao esporte em Poxoréo, onde vivem com os pais. No Brasil, vem ganhando impulso já há dez anos. "Houve um avanço, mas não o que esperávamos, principalmente por falta de apoio do poder público. Uma pena, realmente", lamentou o atleta.

Em 75 campeonatos, Rony Dias ganhou quase todos. São 18 títulos estaduais pelo Rio, São Paulo e Mato Grosso, além de cinco campeonatos brasileiros, e o tri no torneio sul-americano. Das conquistas o que mais o orgulha é a de campeão profissional de 2002, pela Associação de Esportes de Combate do Estado do Rio, filiada à Associação Internacional de Esportes de Combate (ISCA). Pesando tudo isso, Rony não quer nem pensar na possibilidade de parar, mas as dificuldades se agravam a cada dia. Com o nascimento do filho, previsto para julho, aumenta a preocupação com a sobrevivência, e — se nada acontecer —ele poderá voltar à profissão de mecânico eletricista, no intuito de reforçar o pequeno orçamento conseguido com as aulas de kick boxing e com a ajuda da família.

"Fiz vestibular para educação física e estou aguardando o resultado. Novos compromissos poderão representar até meu afastamento do kick boxing, o que, repito, nem gosto de pensar. O ideal, claro, seria continuar competindo, como, aliás, sempre fiz, mesmo com dificuldades. Afinal, temos que dar seguimento à série de títulos e, em última análise, cumprir a minha parte, através do esporte, para a recuperação do país. O problema é que não se percebe que uma das saídas mais importantes para tirar os jovens da ociosidade e do vício é o esporte. Lado a lado com a educação. Em 15 anos, vi muitos jovens serem recuperados pelo esporte. Mas também vi muitos voltarem ao próprio vício, por falta de apoio. O esporte é fundamental para se ter forças para resistir e é preciso resistência para mudar esta situação", finaliza Rony Dias.

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