O circo sem picadeiro

O circo sem picadeiro

Print Friendly, PDF & Email

Inocente como as dezenas de milhares de crianças que atravessam o país para conhecer o Beto Carrero World, o ministro do Turismo, Walfrido Mares Guia, em maio do ano passado, cavalgou no “Faísca” — o corcel branco do Zorro —, colocou na cabeça a coroa do rei no Excalibur e sentiu as emoções de uma vertiginosa descida de 100 metros no elevador mais alto do mundo. Depois prometeu a João Batista Sérgio Murad, o Beto Carrero, todo o empenho do governo na conclusão da rodovia que leva àquele empreendimento — ignorando sua condenação a três anos e 10 meses de detenção em regime aberto (por sonegação de 20 milhões de reais em impostos entre os anos de 1994 e 1996) com o pagamento de 360 dias-multa.

Não é apenas sonegando impostos que Murad — associado a Gugu Liberato, Hugo Loth Neto e outros — agride a nação brasileira. Também o faz com a distorção dos valores culturais por ele promovida; e com a substituição das nossas incubadoras de talentos — os circos tradicionais, que há milênios povoam o sonho de crianças e adultos — por parques de diversões ditos temáticos, mas que têm por fórmula (franquiada) um arremedo do far west ianque misturado a figuras do lendário estrangeiro e animais africanos e asiáticos. E essa distorção acaba inspirando a elaboração de leis municipais que mantêm o circo verdadeiramente brasileiro à distância dos grandes centros.

Há aproximadamente 5 mil anos o circo ensina que o ser humano é capaz de realizar muito daquilo que, em princípio, lhe parece impossível. E como prova disto não faltam malabaristas, acrobatas, prestidigitadores e, principalmente, palhaços — que conseguem fazer rir, embora tenham o coração sangrando. Além disto, o circo se caracteriza como instrumento da difusão dos imensos conhecimentos acumulados em sua viagens pelos mais diversos países e culturas.

“Distinto público…”

Historiadores afirmam que o circo tem suas origens na China, onde há pinturas milenares alusivas a acrobatas, contorcionistas e equilibristas mostrando agilidade, flexibilidade e força — qualidades que logo seriam associadas à graça, à beleza e à harmonia. Há registros de uma grande recepção a estrangeiros com apresentações acrobáticas fantásticas na China, em 108 a.C., passando-se desde então a organizar o Festival da Primeira Lua, que ocorre até hoje, com aldeões praticando o malabarismo com espigas de milho e equilibrando imensos vasos nos pés. No Egito, pinturas nas pirâmides eternizam figuras circenses e recordam desfiles militares para os faraós nos quais se exibiam domadores com animais ferozes das terras conquistadas. Na Índia, números de contorcionismo, ao lado da música, do canto e da dança, integram espetáculos sagrados.

Há quem diga que o circo está morrendo no Brasil. Porém, o diretor da Escola Nacional de Circo, Carlos Cavalcanti, afirma que vivemos uma transição, fruto do descaso do poder público. —Não vejo possibilidade da arte circense acabar — explica — porque a força da tradição ainda é muito intensa no interior. Mas devemos ficar atentos, pois se o Poder Público não estabelecer políticas de estímulo a esse tipo de manifestação cultural, a situação vai se complicar muito. Desse modo, Carlos Cavalcanti denuncia as muitas prefeituras que, sem o menor espírito de hospitalidade, recebem os circos com uma enorme lista de impostos e taxas a pagar. Segundo o diretor, as dificuldades dos circos em capitais como o Rio de Janeiro começam pela inexistência de espaços adequados e vão até à concorrência dos meios eletrônicos existentes nos shoppings, bem como o cinema, os vídeo-cassetes e os equipamentos de DVD, sem esquecer a falta de segurança para a população.

Autorizados a pagar

A autorização das prefeituras depende da apresentação de enorme quantidade de documentos e o pagamento de elevadas taxas de incêndio, luz, água. E muitas vezes se esbarra também com a legislação.

No Rio, lei da iniciativa do vereador Claúdio Cavalcanti proíbe, desde 1998, que os circos utilizem animais em seus espetáculos. A medida foi copiada pela maioria das cidades do estado e hoje é muito difícil encontrar um circo no Rio de Janeiro.

O presidente do Grêmio da Escola Nacional de Circo, Daniel Elias, aponta os aspectos perversos dessa lei:

— O sindicato dos artistas luta para mudar essa lei, pois ela acaba tirando postos de trabalho de domadores e tratadores. Isso prejudica até outros artistas porque, sem espetáculo, não há trabalho para os demais. Esta lei, que objetiva proteger os animais, acabou estabelecendo tratamento injusto para circos que cuidam bem deles. O que se necessita é de fiscalização mais eficaz e um controle maior sobre o tratamento dado aos animais. Proibir não é o caminho. Os numerosos empecilhos acabam abrindo espaço para os grandes circos, como os de Beto Carrero, em prejuízo dos pequenos, que muitas vezes se constituem em única opção para as massas de baixa renda.

Daniel observa que a sobrevivência de um circo pequeno é muito difícil, principalmente porque não há incentivos para a atividade, no seu conjunto

— A Funarte, bem como outras entidades governamentais semelhantes, oferece prêmios para os circos, mas no final só os grandes, que estão em maior evidência, ganham a premiação. Os empreendimentos de Beto Carrero se enquadram perfeitamente neste caso. A marca é tão forte que já são cinco os circos que a utilizam através de franquia. Além do espetáculo, vendem numerosos artigos com essa marca e adotam a estrutura empresarial baseada no esquema de João Batista Sérgio Murad, de modo a aproveitar-se das leis de incentivo à cultura, que favorecem mais os grandes.

Observe-se que uma das principais exigências da legislação de incentivo é que o circo esteja registrado como empresa, ou seja, tenha CN PJ. Ao contrário de empreendimentos como o de Beto Carrero, a grande maioria dos circos não passa de uma “troupe”, que nem tem conta em banco por não dispor de endereço fixo. São grupos de artistas que saem ao encontro do público para levar-lhe alegria, esteja onde estiver. Muitos retratam o circo como uma cidadezinha ambulante povoada por famílias de artistas que moram em traillers e como mobiliário consiste nas lonas, armações, cadeiras, arquibancadas, roupas. Os animais “domésticos”, em vez de gatos e cachorros, são elefantes, leões, zebras e espécies exóticas.

Já os grandes circos, estruturados como empresa, não têm muita dificuldade para encontrar patrocinadores que financiammelhorias nas instalações (atraindo assim maior público) e despesas de deslocamento, como transporte e passagens.

Para demonstrar como tudo isto é problemático, o diretor da Escola Nacional de Circo, recorda que, para levar o “Lê Circ” de Salvador a Brasília, o proprietário desembolsou 75 mil reais só com combustível, pedágio e manutenção de suas 15 carretas.

— O valor do pedágio — observa — varia conforme a quantidade de eixos do caminhão. Não seria o caso de o Governo estebelecer condições especiais para o deslocamento das companhias? Para Carlos, despesas desse tipo só podem ser encaradas se houver algum patrocínio.

— O “Lê Cirq” chegou em Brasília sem saber se acharia um patrocinador, mas se fosse um circo grande não teria essa dificuldade. E sobraria a bilheteria para o pagamento de artistas e manutenção do figurino.

Já se registra um certo êxodo de artistas circenses brasileiros para o exterior. O mágico Romano Garcia Filho, o Romaninho, uma das principais estrelas do mexicano Circo Tiane ressalta:

—O êxodo é uma resposta de alguns dos melhores artistas do mundo à decadência do mercado brasileiro.

Romaninho recorda que ganhou fama internacional no circo Garcia, lamentando a falência deste e de outros circos renomados:

— O Garcia era o mais antigo do Brasil e, depois do seu fechamento, não fiquei um só dia desempregado. O mundo se rendeu ao talento brasileiro.

A Associação Brasileira de Circo (Abac) estima que, nos últimos três anos, 300 dos 4 mil artistas circenses brasileiros tenham se transferido para circos de outros países, com grande sucesso. No estrangeiro, além de trabalharem menos, os artistas brasileiros recebem salário melhor e mais ajuda de custos. Romaninho, que trabalha em Guadalajara, no México, explica: — Faço apenas dez espetáculos por semana e folgo na segunda-feira. Me apresento para uma média diária de 2.500 pessoas e tenho casa, comida e passagens aéreas para mim e minha família. O que mais posso querer? — revela o mágico.

O mercador vai à escola

As irmãs acrobatas Luciene e Licemar Medeiros são outro exemplo de sucesso brasileiro no exterior. A dupla é a maior sensação do espetáculo Zumanity, do Cirque du Soleil, em Las Vegas, EUA. Desde a primeira apresentação, a presença das Irmãs Botero, como são conhecidas, é o ponto alto do espetáculo.

—O interessante é lembrar que elas chegaram a ser rejeitadas pelo circo tradicional no Brasil — conta a empresária das artistas, Isabel Toledo de Assumpção.

Ninguém revela qual o salário das Irmãs Botero, mas especula-se que ultrapasse US$ 15 mil por mês.

— Não podemos falar, porque o circo é muito rígido, existem normas — explica o pai das artistas, Marcos Medeiros — Em média, um artista circense, no exterior, recebe US$ 100 por espetáculo.

Até quem trabalha em um dos melhores circos brasileiros, quando recebe uma proposta do exterior não recusa. A Família Moura, do Mundo Mágico de Beto Carrero, é um exemplo. Foram contratados pelo maior circo tradicional do mundo, o Ringle Bros, dos Estados Unidos, por conta de sua coragem e inovação demonstradas no trapézio.

— O sonho de todo artista circense é trabalhar no Ringle, é o topo, é como o jogador da periferia chegar à Seleção Brasileira — diz o trapezista Wilson Moura, um dos dez integrantes contratados.

A qualidade dos artistas brasileiros é tão reconhecida no exterior que já existem “olheiros” vindos para contratar nossos artistas. Gente do mundo todo vem observar, selecionar e convidar artistas nacionais.

— Os artistas brasileiros são completos. Além disso, como o Brasil é um país muito rico culturalmente, chama a atenção do mundo. As pessoas sabem que vão encontrar qualidade — afirma o diretor- executivo do Tiane, Richar Massone.

Por conta disso, durante o ano a Escola Nacional de Circo faz três exibições para empresários da Europa, China e USA, que vêm selecionar artistas que estão concluindo o curso. Para o professor Pirajá Bastos de Azevedo, artista circense há 62 anos, os estrangeiros vêm ao Brasil em busca de artistas versáteis, que saibam realizar mais de um número.

— O artista brasileiro é muito versátil, sabe sambar, sapatear, batucar e tocar cuíca ao mesmo tempo! Temos aqui atores e atrizes de teatro e televisão que vêm aprender sobre a arte circense para estarem preparados para qualquer tipo de trabalho — diz ele.

Segundo Pirajá, o circo não está morrendo, porém perde espaço nas grandes cidades e vai sendo empurrado para o interior.

— Um sinal de que o circo ainda vive firme é a utilização dos artistas circenses em programas de televisão. Todos os programas têm, entre suas atrações um artista de circo — afirma. Como bom brasileiro, o nosso circo passou por um processo de tropicalização. Ao contrário do palhaço europeu, que é muito mímico, o nosso é mais falante, tem uma postura de conquistador e malandro, seresteiro, tocador de violão, com uma dose de humor picante. Há diferença também no comportamento do público: na Europa as pessoas vão ao circo com o objetivo de apreciar a arte; aqui é diferente, o brasileiro vai atrás das emoções dos números perigosos, como o trapézio, animais selvagens e ferozes.

Pesquisadores afirmam que atualmente existem mais de 2 mil circos espalhados pelo Brasil. Sendo que, desse total, aproximadamente 80 são de porte médio à grande, com trapézio de vôos, animais selvagens e grande elenco. Estima-se um público anual de 25 milhões de espectadores. Entre os maiores obstáculos enfrentados pelo pessoal do circo nos dias de hoje estão os terrenos caros e o fato de algumas cidades não permitirem a montagem de circos, pois seus prefeitos temem a presença de certos “forasteiros”.

O circo continua sendo a grande diversão da população de baixa renda. Para que seja assim, artistas, o picadeiro e a lona significam amor. E para que a cobiça por dinheiro não altere este quadro, basta torcer e aplaudir. O aplauso é a maior recompensa que o artista pode receber.

“Faço versos pro palhaço
Que na vida já foi tudo
Foi soldado, seresteiro
Carpinteiro, vagabundo
Sem juiz e sem juízo
Fez feliz a todo mundo
Mas no fundo não sabia
Que em seu rosto coloria
Todo o encanto do sorriso
Que seu povo não sorria.”

(trecho de O Circo, Sidney Miller)

Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
Agora, mais do que nunca, AND precisa do seu apoio. Assine o nosso Catarse, de acordo com sua possibilidade, e receba em troca recompensas e vantagens exclusivas.

Quero apoiar mensalmente!

Temas relacionados:

Matérias recentes: