Há anos o monopólio dos meios de comunicação repete exaustivamente a fábula do poder paralelo. Segundo esta tese, haveria uma disputa entre o chamado crime organizado e o atual Estado.
Por ocasião da explosão de violência que envolveu o PCC — Primeiro Comando da Capital — em São Paulo, com subsequente assassinato de centenas de pessoas por grupos de extermínio compostos por policiais, em maio deste ano, AND publicou uma série de reportagens que demonstram existir, na verdade, uma estreita ligação, um acordo, entre o Estado e o crime organizado, e que este acordo vigora por períodos relativamente longos até que uma das partes, geralmente o Estado, o rompe.
Arte: Alex Soares

Essa é também a interpretação de José Cláudio Souza Alves, doutor em Sociologia pela Universidade do Estado de São Paulo — USP. José Cláudio é ainda pró-reitor de extensão da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ e recebeu a reportagem de AND em seu apartamento em Vigário Geral, no Rio de Janeiro. Ele é enfático em afirmar que não existe poder paralelo, mas somente uma estrutura de poder e de Estado que articula a violência enquanto mecanismo de dominação e perpetuação do poder.
A bem da verdade, todo o Estado é uma organização do poder político. Quando fundado na exploração do homem pelo homem, é uma poderosa máquina de repressão voltada para sustentar as classes dominantes e que, em consequência, ao assegurar a condição do dominado, promove sem vacilações a violência, elevando-a até o nível do “terror branco”. O Estado, da etapa do capital financeiro, necessariamente fascista, é o promotor — e não outro — da repressão que induz ao pânico crescente e constante entre as massas, quanto mais se acirram as contradições entre o explorado e o explorador.
— Eu fujo da culturalização da violência e tento politizar a questão, sobretudo mostrá-la como vinculada ao Estado. O Estado capitalista moderno está calcado na violência desde o seu início, e isso não é novidade nenhuma. Minha tentativa é a de ver como se implantou o modelo de dominação das classes dominantes — burguesia financeira, empresarial, latifundiários etc. — vinculando a violência à política e à economia — diz José Cláudio já no início da entrevista.
O professor é um estudioso da história da Baixada Fluminense, tendo escrito o livro Dos barões ao extermínio, uma história da violência na Baixada Fluminense. Na obra, ele identifica as relações entre os grupos de extermínio e o Estado, financiados e trabalhando para o capital. Segundo ele, tal estrutura pode ser identificada também em São Paulo:
— Em São Paulo é necessário ver os acordos que o Estado faz. O funcionamento da estrutura é de muito tempo. O aparato policial está matando vinculado a essa estrutura. A estrutura política também está toda envolvida. Em São Paulo, desde os militares [gerenciamento militar, 1964-1988], foi sendo construída uma estrutura de execuções sumárias na periferia, deixando todo eixo central da cidade limpo. Isto vai até um período também, quando se inicia a costura de uma estrutura de poder, mais uma vez do Estado, capital e o aparato policial. Isso está passando para os presídios, com suas formas de organização.
No caso paulista — interior e capital — isso se mostra claramente. O acordo foi denunciado ainda em 2004 pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de São Paulo e mais de 40 entidades de defesa dos direitos humanos, que dizem haver “acertos inconfessos de quadrilhas com a participação acionária do Estado”.
Como o PCC, ou qualquer outra organização criminosa, não consegue nem arranhar o Estado, os acordos são geralmente em troca de migalhas do sistema penitenciário. Em São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública conseguiu que se reduzisse o número de rebeliões no presídio em troca de um relaxamento da segurança para entrada, entre outras coisas, de aparelhos celulares. A quebra do acordo se deu com o endurecimento da repressão e das regras nas prisões, ao que se seguiu a caça aos policiais.
— Que ninguém venha me dizer que o crime tem uma forma única, peculiar, original, que ninguém mais estabelece controle sobre isso, que ele atua conforme a cabeça do chefe da quadrilha… Isso não existe! Não venha me dizer que existe uma sociabilidade própria do crime. A sociabilidade do tráfico é a sociabilidade do Estado e do capital. São interesses econômicos e políticos que estão gerando esse acordo, no qual pode haver uma quebra — fala José Cláudio, se contrapondo às teorias de uma “natureza criminosa e perversa”.
O uso midiático dos acontecimentos visou aterrorizar e infundir o pânico nas massas para imediato aproveitamento político pelas diferentes frações da grande burguesia na disputa eleitoral. Já em campanha o agente da Opus dei [Alkimim] se vangloriava de ter prendido 90 mil pessoas em seu “governo”, enquanto o agente da Ciosl [Luiz Inácio] batia no peito dizendo que a Polícia Federal nunca prendeu tanto quanto em seu turno na gerência. Entretanto, nunca se matou e roubou tanto quanto nessas mesmas gestões.
A história não mente
Historicamente, o “crime organizado” está vinculado com o Estado desde o varejo até o atacado, das atividades menos rendosas às mais lucrativas. O auge dessa relação fraterna ocorreu durante a gerência militar, após o golpe contra-revolucionário desfechado pelos gorilas, em 1º de abril de 1964.
No Rio de Janeiro e em São Paulo, nessa época, os grupos de extermínio passaram a se constituir quase que exclusivamente de pessoas ligadas ao aparato repressor oficial — polícia militar, polícia civil — e até bombeiros, sem contar com membros das forças armadas que trucidavam os suspeitos de “subversão”. Essa estrutura substituiu os folclóricos matadores, como Tenório Cavalcanti e sua metralhadora Lurdinha, famosos na Baixada Fluminense da década de 40 e 50. Cavalcanti, aliás, se elegia deputado estadual e em seguida federal a partir de 1947, até ser cassado pela gerência militar em 1964.
O pró-reitor da UFRRJ expõe assim o processo:
— Eu pego a história desde o período colonial, passo pelo Tenório Cavalcanti, mas o grosso mesmo, a montagem do esquema se dá com o regime militar. 1967 foi o grande ano, quando se consolidou a polícia militar nos moldes atuais: um aparato repressor ostensivo, militarizado, permanente, etc. O negócio começa então com os policiais militares, mas depois se amplia para os policiais civis, guardas municipais e bombeiros. Hoje é esse conjunto todo que atua como grupo de extermínio na região — explica José Cláudio e emenda:
— Esse esquema começa a funcionar nos anos 70, vai se consolidando. Nos anos 80, com o ocaso da ditadura da época, houve uma transição feita por eles mesmos. A imprensa está anunciando os vários crimes de esquadrões da morte, que estão aumentando muito. Aí começa a haver uma autonomização dos grupos de extermínio. O aparato policial que controlava diretamente esse mercado de execuções sumárias vai passar a fazer concessões, terceirizações, passa para os civis, mas ainda com o controle do Estado. Nessa época é que surge o “Mão Branca”, vários grupos de extermínio com civis matando, que telefonavam dizendo que havia um “presunto” em tal lugar e que o Mão Branca é que tinha matado. Todo mundo dizia que o matador era o Mão Branca.
Além disso, os militares também se apoderaram do mercado da contravenção, eliminan do do negócio do jogo do bicho as famílias que pudessem se opor ao regime e colocando no comando “gente de confiança”. Tão zelosos que eram da moralidade burguesa, nossos gorilas passaram a explorar os jogos de azar.
— Na Baixada, os militares trataram de eliminar os principais adversários políticos. Em algumas cidades até substituíram famílias que controlavam o jogo do bicho por outras que cobiçavam esse controle. Essas famílias estão no poder até hoje. Aliás, o jogo do bicho foi muito utilizado pelos militares, porque cada banquinha era um ponto de observação. Eles mapeavam todo o movimento do entorno, funcionando como espias.
Lavagem de cidadania
A entrada na vida pública, como no caso de Tenório, se tornou uma das mais fáceis maneiras de se realizar o que o professor José Cláudio chama de “lavagem de cidadania”, porque além da imunidade parlamentar, os criminosos passam a usar o dinheiro público para o assistencialismo mais reles, como era o caso do próprio Tenório. Também é o caso dos chefes de polícia, secretários de segurança, comandantes militares. Outro exemplo é o coronel Ubiratan Guimarães, o comandante do massacre do Carandiru, que se elegeu deputado mesmo condenado a 632 anos de prisão pelo massacre.
— Ao longo dos anos 80, esses civis vão se dando conta: melhor do que serem os portavozes e cabos eleitorais dos políticos, eles mesmos poderiam ser os candidatos e falar em seu próprio nome. No início dos anos 90 temos os matadores chegando ao poder. Primeiro foi Joca, em Belford Roxo. A política é uma forma de se fazer uma “lavagem de cidadania”. Os grandes matadores, torturadores foram premiados com isso. Os membros de grupos de extermínio também perceberam as facilidades. Se o matador se elege, está limpo. Aí começa a fazer algumas obras no bairro. Instala um posto de saúde, faz asfalto. O tráfico de drogas apóia o matador/prefeito, deixa ele entrar, protege, é cabo eleitoral dele, não deixa outros candidatos fazerem campanha ali. As igrejas que estudei, na sua maioria, votam nesses candidatos.
José Cláudio ilustra com clareza a ligação do crime com o Estado e o capital:
— Alguns comerciantes financiam os grupos de extermínio para limpar a área. Geralmente matam gente pequena, jovens que não representam ameaça alguma. Os comerciantes financiam para disputas internas de mercado. Casam o interesse do comerciante com o do político que eles financiam naquela área. O círculo começa a se fechar. O comerciante quer impedir que abram outros negócios por perto, aí financia a campanha de um político para este proteger aquele bairro e não o outro, favorecendo os seus interesses — por exemplo, das empresas de ônibus daquela região. Por sua vez os grupos de extermínio atuam limpando essa área, favorecendo a atuação de alguns candidatos e recebendo proteção financeira dos empresários que montaram a estrutura de dominação e por outro lado, apoio político dos candidatos, que tem também interesse em controlar certas áreas através dos grupos de extermínio. Isso é no pequeno porte.
No caso dos grupos de extermínio, a atividade se revelou bastante lucrativa, além de eliminação de “indesejáveis”. Aos poucos, os grupos foram admitindo civis em suas fileiras até que, na década de 90, segundo José Cláudio, os policiais retomaram o controle do mercado de execuções.
— Na década de 90, com a Operação Rio 1, em 94, o tráfico descobre a Baixada como uma saída em momentos de crise no Rio. Nesse momento o tráfico se torna mais um cliente dos grupos de extermínio, que continua matando concorrentes, protegendo áreas, como já vinha fazendo anteriormente. No fim dos anos 90 já há a retomada dos grupos de extermínio por parte do aparato policial, porque é um mercado fabuloso.
Chacinas se repetem
Em 29 de março de 2005, nas cidades de Nova Iguaçu e Queimados, na Baixada Fluminense, 29 pessoas foram assassinadas a tiros por policiais que atuavam também quando fardados na região. Essa teria sido uma resposta, um cala-boca, à ordem dada pelo comandante do 15º Batalhão de Duque de Caxias, Paulo César Lopes, para que fossem investigados crimes cometidos por policiais lotados naquele batalhão, chegando a prender 60 por “desvio de conduta”. Dias antes, outros policiais assassinaram outras duas pessoas, jogando a cabeça de uma delas sobre o muro para dentro do batalhão, na primeira tentativa de intimidação.
— A imprensa toda virou-se para falar da chacina, como agora estão falando de São Paulo. Mas fica uma coisa da violência pela violência, como se ela se auto-explicasse, uma profecia — sentencia o sociólogo.
Antes disso, em 29 de agosto de 1993, 21 pessoas foram assassinadas por policiais em Vigário Geral, mesmo bairro onde José Cláudio passou a vida toda. Um mês antes, em 23 de julho do mesmo ano, policiais assassinaram 8 crianças que dormiam na frente da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro. Esses dois crimes ocorreram quando o Dr. Leonel Brizola era governador do estado, o que pode ser revelador também de uma quebra de um acordo vigente entre os governos anteriores e as quadrilhas e grupos de extermínio.
É importante considerar da mesma maneira, que o crime organizado desempenha importante papel na circulação e reprodução do capital. Tráfico de drogas, jogo do bicho, caça-níqueis, etc, que movimentam milhões de reais em curto espaço de tempo, não se constituem economias à parte, independentes, da economia imperialista. Todo esse dinheiro precisa entrar nas engrenagens do sistema financeiro para ser lavado de todo o sangue das massas e incorporar a fortuna dos chefes de quadrilha. Claro, bancos e demais instituições financeiras cobram sua parte pelo serviço, e não é pouco.
— Uma cocaína vagabunda custa 7 mil reais o quilo. O cara mistura pó Royal (fermento para bolo) e vende por 47 mil reais. Quem faz uma partida de 2 milhões de dólares para entrar no Rio de Janeiro? É o Fernandinho Beira-mar? É o Marcola? Esquece! Eles não conseguem fazer isso. Quem financia sabe que em pouco tempo vai ter um retorno absurdo. Depois, esse dinheiro entra no esquema de limpeza pelo sistema financeiro. O capital se reproduz velozmente e recebe proteção do Estado e do crime. Querem que eu prove, por documentos, que o Bradesco lucrou 5 bilhões com tráfico de drogas. Mas bandido faz ata? Os operadores disso não aparecem — diz taxativo o Dr. José Cláudio.
Os controladores do Estado necessitam, além de um recrudescimento da política de encarceramento e criminalização da pobreza, de outros mecanismos de controle das massas empobrecidas amontoadas nas periferias e regiões metropolitanas. Nisso também o crime organizado — tráfico e grupos de extermínio — atua em combinação com o Estado. Ao lado da polícia, essa estrutura criminosa exerce uma segregação e monitoramento das populações de determinadas regiões.
— O crime hoje, o tráfico, jogo do bicho, grupos de extermínio, todos eles fazem parte de uma estrutura de dominação muito mais perversa, que tem um controle muito mais fino da população. É um controle que os militares não sonharam ter. Quando a ditadura permitiu o jogo do bicho estava imaginando um tipo de controle, mas agora é um sistema muito mais sofisticado, mais pesado, de áreas segregadas. Um controle absurdo. A população que entra e sai não pode morar fora dali. É controlada pela polícia, pelo tráfico. Todo espaço é controlado, segregando um número cada vez maior de pessoas, restringindo a movimentação, confinando. Hitler não sonhou com isso. É um esquema perfeitíssimo, porque não só permanece funcionando como atribui à vítima a culpa pelo que está acontecendo — diz José Cláudio, para em seguida concluir:
— Formam-se os maiores campos de concentração sem arame farpado do mundo.