O critério da experiência

O critério da experiência

Tempo demais sem chuva e tudo definhando no campo. A família de seu Geraldo já se acostumou aos longos períodos de seca naquelas terras. Mas o alongado dessa seca já estava demais. Logo devia chover.

A miséria piorava quando tinham que buscar água muito distante, às vezes sete, oito quilômetros. O riacho há muito deixou de correr, o poço secou, a cacimba também e a água que chega do açude equilibrada na cabeça de dona Aparecida é tão salobra que nem dá gosto de beber.

O gado já nem muge. Não tem força. Fica só olhando os demais viventes com aqueles olhos vidrados de quem parece não viver mais. Nem água nem pasto. Nenhuma rês morreu ainda, mas seu Geraldo espia com preocupação.

II

O camponês conseguiu conservar um pedaço de terra do que pertencia a sua família por várias gerações. O que antes era uma vistosa fazenda, foi grilada por um latifundiário aqui, por outro “coroné” ali; a família cresceu, dividiu-se a propriedade e seus irmãos perderam a parte que lhes tocou.

Dos nove, quatro estão na cidade, sabe-se lá vivendo como, e outros quatro são rendeiros do Coronel Chiquinho que nem sabe o que é seca. Tem casa no litoral e só vai na fazenda para recolher a parte da onça, a sua renda do trabalho alheio — coisa que o pai e o avô também faziam, tendo ele só continuado a tradição parasita.

Mais de cem anos naquelas terras e as raízes da família são tão profundas que seu Geraldo não consegue se imaginar em outro lugar. Ele pode dizer que conhece tudo ali, cada pessoa e cada animal, cada planta e vento. Mesmo assim, possuísse ele conhecimentos, tivesse ferramentas decentes, certamente faria aquela terra produzir muito, pensava.

Todo o trabalho era feito como no tempo do seu avô. A moenda era o boi que tocava, o arado o cavalo puxava. O feijão era no arranque e a casa de farinha estava um pretume só.

Todos ali passavam assim, mais ou menos, com o que a terra dava. Também, não tinham nem a quem recorrer. O cúmulo é que nem em tempo de eleição vai candidato lá, pedir voto. Mas o caminhão do coroné leva todo mundo na cidade para votar, que isso é obrigado.

O mês de junho é especial. Mesmo com as secas periódicas, sempre se colhe alguma coisa e a festa dura bem uns três dias. Debaixo do toldo armado na véspera, a fartura de pamonhas, bolos, curaus e amendoins dá energia para o arrastar das alpercatas pelo chão. A sanfona foi limpa da poeira, a zabumba teve o couro esticado e o triângulo, vejam só, foi até polido.

III

Lembrando os dias felizes, seu Geraldo observa a criançada correndo no quintal, com aquele jeito de quem não se importa com a falta d'água e vai lavar só os pés e olhe lá. Não penetraram ainda nas responsabilidades do pai, que dedica boa parte da queima de pestanas ao futuro dos peraltas.

O dia seguinte traz novidades. Três carros chegaram da cidade trazendo uma equipe de meteorologistas disposta a entender a falta de chuva e a fazer uma previsão.

Grande alvoroço se seguiu. Todos se acercaram do grupo que se azafamava no desembarque de um sem fim de equipamentos que os auxiliariam no estudo do clima da região.

O leito seco do riacho foi o local escolhido para a acomodação dos volumes, de onde iam sendo retirados vários objetos nunca vistos por aquelas bandas.

A par das intenções daquela turma estranha, mas diligente, seu Geraldo, que mancava um pouco da perna direita, se dirigiu ao grupo e soltou a voz em direção ao que parecia ser o líder, ou o organizador daquela tralha toda (pelo menos era ele que sabia onde cada pecinha se encaixava):

— Olhe! O senhor não fique com isso tudo aqui embaixo não, porque hoje vai cair essa chuva que a gente tanto espera. No mais tardar, daqui a três horas o aguaceiro vai cair.

O meteorologista se explicou, dizendo que, pelos cálculos da universidade, tão cedo não choveria ali e era justamente para ter maior precisão que eles estavam empreendendo aquela pesquisa. Tal precisão seria conseguida com o moderno equipamento trazido, importado de um desses países ricos, a última palavra em previsão do tempo, e que o povo do lugar não precisava se preocupar.

Seu Geraldo não se preocupou, mas mesmo assim procedeu a passagem de malas e pessoas para a tulha, que ficava acima do nível da residência. Tal precaução foi tomada também por alguns vizinhos, para surpresa dos técnicos instalados onde antes corria um rio.

No meio da tarde, as primeiras gotas da chuva, que tanto bem faria à roça e ao gado, caíram grossas, num prenúncio de que a coisa ia ser grande. Assustados, os meteorologistas se apressaram em acondicionar o que desse dentro das caixas e se abrigaram na casa vazia de seu Geraldo, aguardando, afinal, o dilúvio prometido. O precioso equipamento, por pouco, não se perdeu.

Ao final, nem choveu muito, mas o suficiente para tirar a poeira dos olhos e enxergar tudo mais colorido. Continuasse assim, logo o verde estaria brotando e as preocupações seriam outras.

Sorrindo, meio sem jeito, o grupo da cidade se aproximou da tulha de seu Geraldo e indagou o astuto camponês sobre como ele “adivinhou” até a hora da chuva.

Saltando do assoalho suspenso por estacas, seu Geraldo pôs-se a andar em direção ao leito, agora úmido, do riacho e apontou um montículo no chão, dizendo:

– Aqui. Vocês tão vendo este formigueiro? Então. Desde cedo que eu estou vendo que as formigas tiram tudo que é delas aí de dentro e levam para aquele outro buraco ali, mais acima, estão vendo? Pois é. Desde que me entendo por gente, toda vez que elas fazem isso vem chuva, e não demora, podem acreditar. Além disso, meu joelho amanheceu doendo e isso também não falha.

Os técnicos continuavam a sorrir (alguns deixavam escapar sonoras gargalhadas) e o coordenador do grupo dava francos tapinhas nas costas de seu Geraldo, reconhecendo sua sabedoria.

Mal sabe seu Geraldo que lhe faltam, sim, instrumentos de trabalho adequados e a técnica mais avançada para desenvolver a produção, porque o conhecimento, este já anda com ele há muito tempo.

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