Muita coisa que há dez anos tinha algum significado no sentido de conclamar a população em favor de uma luta, de movimentos sociais, como música, cartaz político, um bom jornal e outros, perdeu muito da sua importância e capacidade de mobilização. Isso porque existe uma corrupção generalizada na mídia, que vive da mentira e engodo, do individualismo e lucro maior e mais rápido possível, próprio do mundo capitalista. Sobre esse assunto nos fala o artista plástico e jornalista, Elifas Andreato. Com 56 anos de idade e mais da metade dedicada as lutas do povo, Andreato rejeita participar da padronização do mercado para deleite do sistema.
O Semeador |
A mídia arranca a idéia do coletivo |
Vivemos um período em que trabalhos que tinham um certo peso, como o cartaz, estão tentando sobreviver, com muito esforço, mesmo que seja para um pequeno gueto. O pouco que fazemos é tentar recuperar o debate político mais profundo e transformador de fato. Praticamente ficamos sozinhos quando não aceitamos participar da estupidez que se transformou a imprensa brasileira e da mediocridade que virou a chamada mídia. O nível é muito baixo e ao mesmo tempo empolga de tal maneira o povo, que parece agir no cérebro como antídoto a qualquer reação realmente pertinente ou eficiente contra o sistema. Em um passado não muito distante, existia uma forte presença do cartaz político e social, que age como pictograma de certas idéias, identifica ou conclama para uma manifestação e participação do povo. Eu fiz vários e alguns até viraram símbolos como o SOS Mulher, Tortura Nunca Mais e Movimento Sem Terra.
Mesmo com todo este valor, aos poucos foram sendo abandonados, principalmente em função das dificuldades em reproduzi-los, variando entre a falta de dinheiro dos movimentos; o boicote por parte das gráficas e a falta de patrocínio por parte dos empresários. O artista pode colaborar, mas até certo ponto. Em alguns casos, ajudo na confecção, impressão, em outros, faço a arte e entrego. Depois disto, tem um custo e este é alto, inviabilizando o seu feitio para muitos movimentos e até Ongs.
Essas instituições, geralmente encontram nos empresários uma grande resistência a confecção desses cartazes, no sentido de viabilizar a sua multiplicação e, portanto, potencializá-los enquanto comunicação, convocação. Não querem fazer, porque, na verdade, são manifestos contra eles mesmos.
Muitas gráficas também resistem a feitoria desse material e fogem quando percebem se tratar de cartazes de teatro, movimentos sociais a favor de desabrigados, mulher, idoso, menor e outros. Enquanto isso, muitas vezes, gastam fábulas de dinheiro com bobagens, revistas sofisticadas que servem para mostrar a sua excelência.
Eu sou procurado para fazer várias besteiras, como revista para dondoca. Não aceito isso, depois de anos trabalhando no sentido de construir de fato uma perspectiva nova para o país
No mundo capitalista, a grande mídia procura glamourizar e adaptar um trabalho sério para algo voltado aos seus próprios interesses. Pegam então um Sebastião Salgado, que já se transformou em grife, juntam a ele um Chico Buarque, e fazem um livro de 450 mil reais. Para isso aparecem vários bancos querendo patrocinar, mas da miséria fotografada e das entidades que, de verdade, se preocupam em atuar dentro da realidade brasileira para altera-la ou ameniza-la, ninguém quer saber.
São essas contradições do sistema que nos deixa amargurados. O trabalho do Salgado, que é notável, de denúncia, transformado em grife de grandes empresários. Tudo isso, porque patrocinando o livro do Sebastião Salgado, podem dar entrevistas na televisão e aparecer como logomarca no negócio. Pura vaidade.
Cartaz da campanha pelo Ensino Público Gratuito para a UNE
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Ficamos sem entender o que aconteceu com a publicidade, ou quais são os critérios, pois vemos revistas ordinárias com vários anúncios e muitas publicações sérias, sem nenhum. Por exemplo, a revista Top Magazine, de Curitiba, que vende 15 mil exemplares, tem 34 anúncios pagos, enquanto outras como Carta Capital, Caros Amigos, o meu almanaque e outros, não tem quase nenhum.
Eu, por exemplo, não consigo anúncio para a minha revista, Almanaque Brasil de Cultura Popular, que é distribuída a bordo dos aviões da TAM. Tenho somente dois anunciantes, convivendo com um prejuízo mensal, apesar de alcançar 100 mil pessoas, consideradas de poder aquisitivo alto. A explicação é que essas revistas são feitas para empresários e suas mulheres vaidosas, que põem anúncio e em troca dão entrevistas, aparecem em seus carrões, enquanto suas mulheres fazem filantropia.
Existe o falso glamour das chamadas causas sociais, quando empresários, banqueiros e socialites, brincam de fazer filantropia, sendo que, na verdade, estão juntando aparições em colunas sociais, não passando de encenação e uma grande brincadeira de gente rica. E alguém ainda comenta: "É melhor assim, porque eles poderiam estar indo para Miami fazer compras". A questão é que eles continuam indo para Miami fazer compras e cada vez juntando mais dinheiro e prestígio, em cima das causas sociais. É pura vaidade.
Por conta disso, tem gente que chega a me aconselhar fazer uma entrevista com um grande empresário, mas, com isso, estarei fazendo o mesmo que as outras revistas. É preferível fazer uma tentativa dentro de certos padrões éticos e até, em último caso, fechar as portas, do que entrevistar uma pessoa para que a sua empresa dê um anúncio ou escrever aquilo que o sistema quer. Isso não é o meu ramo de trabalho.
Chegamos a um ponto complicadíssimo, em que convivemos com um mercado totalmente manipulado por esse tipo de mídia.
A nossa luta é a favor da união do povo e solidariedade, contra esse individualismo induzido pelo sistema
Nunca vi, nestes meus trinta anos de jornalismo, uma imprensa tão medíocre e estúpida, voltada para o que é zero. Cria-se no que se chama de mídia o círculo perfeito, isto é, aparece na televisão a coisa mais cretina possível, que alimentará a imprensa escrita, radiofalada e televisionada. O mundo gira em torno de modelo.
Temos um mundo real caindo aos pedaços, e que uma ou outra publicação trata, enquanto o povo está anestesiado com estupidez do tipo Big Brother, em que uma pessoa consegue ganhar 500 mil reais se projetando num sonho maluco, fornecido pelos que dominam as televisões.
Para se ter uma idéia da ação negativa da mídia na cabeça do povo, fiz a História do Samba, uma pesquisa que durou dois anos, para a Editora Globo. São gravações históricas remasterizadas, em 40 fascículos, acompanhados de 40 cds. O resultado foi o seguinte: no primeiro número foram vendidos 120 mil fascículos, já o segundo vendeu 35 mil, porque as pessoas queriam pagode e quando descobriram o que era, não compraram mais. A coleção acabou vendendo 12 mil exemplares.
Quando a nossa geração leu 1984 de George Orwel , na década de 60, o grande inimigo já era o imperialismo e sabíamos que chegaria a este ponto, mas jamais imaginamos que isso viria a ser um divertimento tão eficiente, cumprindo o papel proposto pelo autor do livro, senão até mais eficiente, porque não há nenhum drama ou sofrimento de se estar sendo vigiado, manipulado. Ao contrário, é uma farra e muitos fazem churrascos para ver e apostam em quem ganha ou perde, o mais antipático, burro e aí por diante.
O capitalismo investe no individualismo. De vários, escolhe somente um para enriquecer e fazer sucesso. Isso é o princípio da jogatina
Tudo isso está muito ligado a uma postura de massacre ao debate realmente fundamental com poder transformador, que é a conscientização e união do povo, não essa sociedade que está vivendo da ilusão e expectativa de um enriquecimento ou do sucesso individual exacerbado.
Cada vez mais a mídia nos arranca a idéia do coletivo, da sociedade, daquilo que se organiza a partir do bem comum, que se constroem todos e para todos. Hoje se elevou de tal maneira o individualismo, que tudo gira em torno de se escolher um, porque o capitalismo chegou a um impasse, quer dizer, criou uma expectativa de enriquecimento que não pode cumprir.
Para cada grupo é selecionado um e isso é o princípio da jogatina. Explora-se a miséria, mata-se milhões de pessoas pelo mundo, para contemplar dois ou três. É a jogatina funcionando. Isso já vem acontecendo há muito tempo, mas de sete ou oito anos para cá se tornou de tal maneira imoral e perversa, ficando insuportável. Hoje é como se não fôssemos humanos.
É muito simples para os imperialistas destruir a Argentina, Somália, Nigéria, Palestina e outros, matando milhões de pessoas por todo o mundo, para obter mais poder e lucro. Isso equivale ao princípio básico do jogo, que é tomar de uma grande quantidade de pessoas bens suficientes para enriquecer um.
Com uma concentração perversa de renda e poderio nas mãos do imperialismo, temos resultados dramáticos em boa parte do mundo, abandonado ou massacrado por esse capitalismo, que age como agiotas, emprestando dinheiro e depois esfolando e deixando-o na miséria.
Os EUA e os outros imperialistas estão fazendo isso no mundo inteiro. Há anos estão matando palestinos, fornecendo armas e bancando o Estado de Israel. São milhares de vítimas das guerras que estão promovendo e patrocinando. Nem a inquisição conseguiu matar tanta gente em tão pouco tempo.
Acredito que hoje todas as áreas como jornalismo, desenho, teatro, cinema, música, economia, educação, vivem como reféns desse grande jogo dominado pelo capitalismo. Tudo gira em torno de um modelo pronto que venderam para o mundo inteiro.
Por mais que alguém me diga: "você venceu, pois nasceu pobre, filho de um mecânico, e conseguiu ser um jornalista e um artista respeitado", sei que eu, menino miserável, quase trombadinha, trabalhando muito é claro, melhorei, mas, para a maioria das crianças brasileiras piorou muito. A falta de perspectiva dessas crianças hoje é infinitamente maior do que as que eu tinha.
Fala-se de sociedade e participação, mas a única ideologia concreta que vejo é a solidariedade. Ser humano quer dizer estar vivo no planeta, portanto tudo que acontece, em qualquer continente, tem a ver conosco. Isso eu sempre ensinei para os meus filhos. Hoje vejo na prática, que uma maneira de fazer o jovem refletir sobre a necessidade de mudanças, transformações, é promover um contato com a verdadeira realidade e jogar a solidariedade como uma coisa a ser desenvolvida por eles. Ser solidário, compadecer-se com a causa ou indignação do semelhante, é o que sobrou de concreto no ser humano, e isso é contrário ao sistema, que tenta, cada vez mais, induzir e estimular os jovens ao individualismo.