O desastre anunciado

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O desastre anunciado

Ruas cobertas de lama, destroços, papéis, trapos, móveis, eletrodomésticos. Tudo soterrado, enlameado, perdido. Nos sítios, animais mortos, plantações arrancadas, safras perdidas, famílias inteiras abraçadas em seu desalento, chorando. Este foi o quadro aterrador que AND encontrou no município de Alagoa Grande, na Paraíba, no dia 19 de junho, sábado, dois dias após o rompimento da Barragem de Camará.

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Bombeiros e moradores lutam contra o alagamento

Muita gente ainda chora, só de lembrar os momentos de pânico e de agonia. “Foi uma coisa triste, faço força para não lembrar, mas aqueles momentos nunca vão sair da minha memória”, disse Eliane Paes da Silva, enquanto suas lágrimas desciam pelo rosto. No chão, agora repleto de lama, ainda eram vistas as bandeirolas que antes enfeitavam a cidade para as festas juninas. Tragédia do brejo paraibano: três mil pessoas ficaram desabrigadas, seis morreram e várias desapareceram numa única noite, a de 17 de junho. “Quando não é uma coisa é outra”, resumiu o morador da Rua Nova, no município de Alagoa Grande, Justino Francisco da Silva, 67 anos. “Os políticos falam que um dia a Paraíba pode virar deserto, prometem muita coisa, mas constroem uma barragem que não aguenta a força da água e nos deixa assim, sem ter nem o que comer.” Não há como o camponês esconder sua tristeza e “desesperança nesses homens que mandam em tudo.” Lágrimas. Ele enxuga o rosto com as mãos que tantas décadas de produção cobriram de calos. Além de Alagoa Grande e Mulungu — onde outros 500 habitantes não puderam mais entrar em suas casas — a água invadiu também os municípios de Araçagi, Alagoinha, Mamanguape e Rio Tinto. A tragédia só não foi maior, dizem os moradores, porque uma emissora de rádio da cidade de Areia tomou conhecimento do rompimento da barragem e orientou os moradores das partes baixas de Alagoa Grande e Mulungu a deixarem suas residências.

A cheia do Mamanguape provocou também o transbordamento dos dois riachos que cortam Alagoa Grande, o Camarazal e o Coqueirinho. Todas as vias de acesso à cidade foram tomadas pela cheia e o município ficou ilhado por várias horas. Mais de 80% das casas foram atingidas pelas chuvas com 150 quilômetros de estradas vicinais destruídos.

A construção da barragem de Camará foi iniciada no ano 2000 e concluída em 2002, durante o governo do atual senador José Maranhão, do PMDB. Localizada em Alagoa Grande (cidade de 30 mil habitantes, a 60 km de Campina Grande e 145 km de João Pessoa, na região do Brejo paraibano — faixa entre o litoral chuvoso e o sertão árido), ocupa uma área de aproximadamente 160 hectares, recebe águas dos rios Riachão e Mamanguape e tem capacidade de acumular até 26.581.614 metros cúbicos, atendendo os municípios de Alagoa Nova, Alagoa Grande, Areia, Remígio, Matinhas, São Sebastião de Lagoa de Roça, Areial, Esperança, Lagoa Seca e Algodão de Jandaíra, nos quais residem 164 mil pessoas.

Superfaturamento

Já no dia seguinte ao rompimento da barragem, começaram a circular notícias sobre o superfaturamento da obra. O secretário estadual do Controle da Despesa Pública, Ramalho Leite disse que “os preços pagos com a obra estavam acima dos praticados pelo Ministério da Integração Nacional e houve outras irregularidades, como o fato de a própria construtora da barragem ter contratado a fiscalização da obra, numa atitude desprovida de amparo legal, porque fere o estatuto das licitações. Numa situação destas, o fiscal faz o que determina quem está pagando seu salário.”

Sobre a questão do superfaturamento, Ramalho Leite disse que, em 2001, um aditivo alterou o valor da obra com Camará, que passou a custar cerca de 74,39% do seu valor original. “A obra começou orçada em R$ 9 milhões, passou para R$ 15 milhões e terminou por R$ 24 milhões.” Na realidade, exatos R$ 24.258.959,50 não suportaram a força de 19 milhões de m³ de água que descia pelo Rio Mamanguape.

“A culpa de tudo é dos políticos que não cumprem o que prometem. Usam material de baixa qualidade para poder desviar dinheiro do povo, e ainda fazem propaganda eleitoral com essas obras criminosas”, disse a professora Alessandra Gomes da Silva, enquanto recolhia no meio da Rua da Glória livros encharcados que exibiam o carimbo da Biblioteca Municipal de Alagoa Grande.

Um pobre ajuda outro pobre

A decepção e revolta com os políticos era o principal assunto das conversas nos vários grupos formados em frente às casas. Mas, acima de tudo, destacava-se a grande capacidade de organização e solidariedade por parte da gente do povo, desde as primeiras horas superando as dificuldades, carregando móveis, atravessando crianças e idosos, emprestando telefones, buscando e fornecendo informações sobre o paradeiro de vizinhos e parentes. Como em Zelão, de Sérgio Ricardo, que diz: “Um pobre ajuda outro pobre até melhorar”, cada pessoa do povo que se encontrava em Alagoa Grande deu provas de heroísmo e tinha uma história para contar no dia seguinte à tragédia.

O comerciante Rogério do Nascimento, a sua esposa Maristela e mais a filha Branca tiveram que deixar às pressas sua residência na Rua do Tacho, levando apenas a roupa do corpo, para a casa de um casal de amigos que os socorreu. Quando as águas baixaram deixando um quadro de destruição, Maristela entendeu que haviam perdido tudo, inclusive as mercadorias da lojinha instalada no terraço da casa. “A lama vinha até quase no joelho, os móveis ficaram todos destruídos, as roupas não prestavam para nada. Uma tragédia que nunca vamos esquecer”, dizia, enquanto olhava um helicóptero com gente do governo federal sobrevoando de longe a região atingida pelas águas. Soubemos depois tratar-se do ministro Ciro Gomes.

“Perdemos tudo, a não ser a vida. Muita gente só sobreviveu porque se refugiou nos telhados das casas. Não sobrou nada, a não ser os vizinhos e amigos, porque aqui, cada um ajuda o outro como pode”, disse Rogério. A água encheu a lagoa. Depois o canal que corta a cidade transbordou. Em alguns trechos, diz ele, “a água atingiu quatro metros de altura, e as pessoas com água à altura do pescoço tiveram que se equilibrar em cima dos guarda-roupas para se salvar.”

“No entanto, não é esta a primeira tragédia desse ano aqui no brejo”, continuou Rogério. De fato, a cidade de Alagoa Grande já havia sofrido uma enchente, em janeiro último, período de intensas chuvas. Em consequência, ainda hoje, 150 famílias permanecem abrigadas em prédios públicos, aguardando ajuda do governo federal. A esse contingente somam agora cerca de 3 mil famílias desabrigadas que não encontraram vagas em casas de parentes e amigos.

Fúria e destruição

Segundo relatos de moradores vizinhos à barragem, ela foi rompida exatamente às 21 horas do dia 17, com “grande estrondo seguido de um barulho de demolição e fúria”. Com o volume de água crescendo, as paredes romperam. As águas invadiram as terras vizinhas e o impacto levou na correnteza a centenária ponte que ligava Alagoa Grande à cidade de Areia. O reservatório, com capacidade para quase 27 milhões de metros cúbicos, rompeu quando comportava 17 milhões, o que correspondia a 85% de sua capacidade.

Segundo o gerente de fiscalização do Crea (Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura), Corjesu dos Santos, houve “o rompimento da parede construída em concreto, que rachou em vários pontos, na margem esquerda do rio. A parede não suportou a pressão da água, surgindo um grande buraco — cerca de 10 metros de diâmetro. Mas as causas só poderão ser definidas com exatidão após uma avaliação rigorosa, elaborada por técnicos especializados.”

Enquanto isso, as empresas responsáveis pela construção da barragem, Andrade e Galvão Engenharia Ltda, e CRE Engenharia Ltda (além delas, também são citadas como envolvidas no projeto, na construção ou na conservação da barragem as empresas Holanda Engenharia e Atecel), se apressaram em divulgar uma nota oficial afirmando que “a enchente foi provocada pelas últimas chuvas caídas na região, culminando com o rompimento, em parte, da fundação rochosa natural.”

Entretanto, o documento não diz que durante o decorrer da construção houve uma cessão de contrato da empresa CRE Engenharia para a Andrade e Galvão Engenharia; que a inauguração da obra aconteceu dez dias antes do término do governo de José Maranhão; que estudos preliminares indicam que a barragem foi construída num local onde caberiam no máximo 15 milhões de metros cúbicos; que a obra já havia apresentado problemas de fundação e construção; sem falar no já citado e substancial acréscimo, que fez o valor do orçamento inicial pular dos R$ 9,598 milhões para mais de R$ 24 milhões.

As construtoras também nada disseram sobre a campanha publicitária que, segundo os moradores, deve ter custado muito dinheiro. “Eles diziam” — lembra o professor José Silva do Nascimento — “que a barragem seria a redenção para o abastecimento d’água do brejo paraibano.” Mas agora, salienta, “é motivo apenas de decepção, revolta e ceticismo com esses governantes irresponsáveis.”

É voz corrente, tanto em Alagoa Grande como em Mulungu, que todo mundo notava falhas na obra. A Defesa Civil também informou que os moradores da região vinham denunciando problemas de vazamento na barragem, que já teria recebido reparos na sua estrutura. Até o secretário-adjunto da Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, Sérgio Góes, diz que “o deslocamento da rocha que provocou o rompimento da barragem poderia ter sido previsto por meio de um estudo geológico detalhado, durante a execução da obra.”

O fato é que quando a água represada na barragem avançou, numa fúria sem limites na direção dos municípios de Alagoa Grande e Mulungu, não ficou pedra sobre pedra num raio de 30 quilômetros de extensão. Casas, plantações, rebanhos, estradas, pontes, postes, equipamentos agrícolas, telefones públicos, lojas, escolas — tudo foi destruído.

O antigo Engenho (e atual Destilaria Macaíba), construído no começo do século passado e localizado às margens do rio Mamanguape, foi totalmente destruído. Os seus destroços fizeram lembrar um dos livros recolhidos na lama pela professora Alessandra: Usina, de José Lins do Rêgo. Escrito em 1936, o romance relata a história de outra enchente, a do Rio Paraíba, também na região do brejo, e que “inchava de cheio, roncando… arrombou açudes no sertão… e inundou o engenho Santa Fé e a Usina Bom Jesus”, expulsando para as bandas da caatinga o senhor de engenho e sua família.

Hoje, diferente do que foi narrado pelo romancista paraibano, os usineiros e senhores de engenho não precisam mais fugir das enchentes. Estão seguros em seus apartamentos de luxo. Somente o povo pobre, os camponeses, os pequenos comerciantes e os trabalhadores sofrem as consequências de tantas tragédias. Os que teimam em viver e que, mesmo assim, desde o dia 18 de junho, não param de contribuir com o que podem. São alimentos, roupas, colchões, remédios… trazidos principalmente pelos trabalhadores e suas famílias, heróis anônimos das localidades próximas e dos estados vizinhos. Outros, podem ser identificados, como os professores municipais, que cederam o seu Centro de Treinamentos para abrigar a população, os professores e servidores da Universidade Federal da Paraíba, os comitês de voluntários formados às pressas por iniciativa popular, e o Exército brasileiro, que além do apoio logístico providencia a restauração provisória da principal ponte de Alagoa Grande.

Já o dinheiro recebido pelas empreiteiras não apresentou defeitos de emissão.

E o mercado agradece

Logo após a catástrofe, o Movimento Nacional dos Atingidos por Barragens (MAB) divulgou nota e enviou representantes à Paraíba para prestar apoio à população. Segundo o MAB, o rompimento é “fruto da ganância de empresários e governantes que ao construir as barragens não se preocupam com a vida das pessoas, mas com o lucro que uma obra pode proporcionar ou até mesmo com os ganhos políticos computados no momento de sua construção. Empresas e governos donos das barragens montam campanhas monstruosas de propaganda para divulgar as barragens como símbolo do desenvolvimento. No entanto, os verdadeiros perigos e problemas que estas obras causam sempre foram e continuam sendo escondidos das populações ribeirinhas. Quem acaba pagando o preço desta prática são as famílias que vivem nas margens dos rios e lagos espalhados por todo o país.” O documento chama atenção também para casos similares que vêm se repetindo em outros estados, a exemplo da Barragem de Itá, divisa do Rio Grande do Sul com Santa Catarina, onde circulam informações de que uma ruptura na parte inferior da barragem poderia comprometer a obra. O comentário foi desmentido pela construtora Tractebel, empresa belga, dona de diversas barragens.

Até o momento, nenhuma investigação séria foi realizada para tranquilizar o povo da região. Outro caso é o da Barragem de Manso, no Mato Grosso. Com diagnósticos idênticos, permanece sem nenhuma providência adotada.

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