O dia da caça na FNM

O dia da caça na FNM

Um dia da caça, outro do caçador. Abandonados pela Fiat em 1976, os trabalhadores de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, agora acompanham com especial interesse o processo no qual a montadora italiana tenta explicar ao juiz da 8ª Vara Federal, em Brasília, um depósito de R$ 12,8 milhões feito na conta bancária do escritório particular de Paulo Baltazar Carneiro, ex-secretário-adjunto da Receita Federal e do auditor fiscal Sandro Martins.

O promotor Lauro Cardoso diz que a Fiat deixou de recolher Contribuição Social sobre o lucro líquido durante seis anos, de 1991 a 1997. Intimada a pagar 643 milhões de reais em multas e juros, em 1999 obteve mudanças na lei através de Carneiro e Martins.

Esse escândalo nada mais é do que um sinal de que, para a Fiat, continua em pleno vigor a “Lei de Gerson”, segundo a qual “é preciso se levar vantagem em tudo”. Só no ano de 2022 vence a última prestação anual (cerca de dois reais e cinqüenta centavos) a ser paga ao estado de Minas Gerais para instalar-se em Betim, deixando ao deus-dará as instalações da antiga Fábrica Nacional de Motores, em Xerém, quarto distrito de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e os operários que lá produziam tratores e o seu pequeno modelo 147.

A mudança da montadora italiana da Raiz da Serra de Petrópolis para as Alterosas foi promovida por Rondon Pacheco, entronizado pelos militares de 1971 a 1975 na gerência do estado de Minas Gerais. A manobra, realizada em nome da redução dos desníveis regionais deu origem não apenas à Fiasa – Fiat de Automóveis SA, mas também às primeiras escaramuças da guerra fiscal que todos os estados travam entre si para entregar-se ao capital transnacional. A instalação requeria 290 milhões de dólares. A FIAT italiana entrou com 24,6% (US$ 71,5 milhões) e mais 15 milhões de dólares pela assistência técnica de implantação. Os 218,5 milhões de dólares que faltavam foram fornecidos por Minas Gerais ou tomados por empréstimo em bancos mineiros e nacionais.

Ricardo Bueno recorda no livro O ABC do Entreguismo no Brasil que a Fiat, embora tenha entrado com menos de 30% do investimento, subscreveu 50% do capital. Ficou com o controle absoluto da Fiasa, desfrutando ainda de isenção de taxas e impostos municipais até 1985. Pelo terreno de 2 milhões de metros quadrados, com toda a infra-estrutura que abriga a fábrica, a Fiasa pagou preço simbólico de sete cruzeiros à Prefeitura de Betim, embora na época fosse avaliado entre 7 a 10 milhões de cruzeiros. O Estado de Minas arcou com toda a infra-estrutura: estradas externas à obra, via de acesso à rodovia São Paulo-Belo Horizonte, energia elétrica, água potável, água industrial, 30 linhas telefônicas, toda a rede de esgotos pluviais, industriais e sanitários, etc. Tudo isso avaliado em 31,5 milhões de cruzeiros, que a Fiasa comprometeu-se a pagar em 45 anos, a partir de 1977, em prestações anuais de 700 mil cruzeiros, sem juros ou correção monetária, o que corresponde hoje a R$ 2,55 (dois reais e cinquenta e cinco centavos).

Rondon Pacheco acrescentou a tudo isso a garantia de que em Minas o povo era mais ordeiro e não fazia greves como o pessoal da Baixada Fluminense. Contudo, dois anos após ter iniciado suas operações em Betim, a Fiat viveu duas paralisações consecutivas, em 1978 e 1979. As greves no ABC paulista e as condições de trabalho desfavoráveis (uma vez que a unidade de Betim havia iniciado suas operações com a sucata tecnológica trazida das unidades italianas e com grande dose de arrocho salarial) tornaram insuportável a vida dos operários.

Naquela época, a perda do emprego ainda não representava o desespero de hoje, porém já na segunda greve, em 1979, conformou-se uma parceria da Fiat com a Polícia Militar na repressão à organização sindical, quando o metalúrgico Guido Leão, para escapar ao cerco policial, foi atropelado e morreu na BR-381.

Pouco depois, a empresa adotou a figura do Representante por Oficina, (RePO), atribuindo-lhe a tarefa de manter os trabalhadores sob vigilância constante, inclusive nas trocas de turno, anotando quem se relacionasse com os sindicalistas ou simplesmente dessem alguma atenção às mensagens do carro-de-som do Sindicato dos Metalúrgicos de Betim, Igarapé e Bicas (MG). A empresa tradicionalmente fascista, chegou mesmo a adotar um aparelho, apelidado de “emocionômetro”, com três luzes, idêntico a um sinal de trânsito, obrigando o trabalhador a manifestar-se diariamente através dele acerca das influências em seu estado de espírito — inclusive aquelas trazidas por conflitos familiares.

A partir de 1987 a montadora, a exemplo do que fazia na Itália, passou a obrigar os funcionários a se desfiliarem do sindicato, sob pena de não receberem promoção ou serem demitidos e, até hoje, é a que paga os mais baixos salários da indústria automobilística.

Negociata após negociata

A montadora veio para o Brasil por força das circunstâncias: na Itália ela era a principal acionista da Alfa Romeo, que faliu depois de se apossar escandalosamente da brasileira FNM para fabricar, primeiro, tratores, depois, os caminhões Fenemê ao lado dos luxuosos automóveis JK. A fábrica estava sob intervenção militar quando foi entregue de mão-beijada à máfia italiana, num radioso domingo da gerência Costa e Silva, que manteve em sigilo todas as negociações iniciadas em 1967 e, durante as quais, jamais se levou em consideração a legislação sobre concorrências públicas — que protege os bens públicos —, mas cuidou-se detalhadamente de assegurar a demissão de uma boa parcela de trabalhadores antes de os europeus assumirem o controle acionário do empreendimento.

A escandalosa transação deu origem a uma Comissão Parlamentar de Inquérito na qual o então ministro da Indústria e do Comércio, Macedo Soares, alegou que o plano de recuperação proposto por um grupo de engenheiros e economistas conscientes “se chocava com o decreto-lei 200, da Reforma Administrativa, e com outro, que autorizava os ministros das Fazenda e da Indústria e do Comércio a promover as medidas necessárias à alienação do patrimônio da FNM”.

Explicou que, à vista disso, criou outro grupo de trabalho, sob a chefia de Marcelo de Azevedo Santos, que sentenciou: “É indiscutível, mesmo sem análise numérica, que a FNM, nas atuais circunstâncias, não só dá prejuízo ao Tesouro Nacional, como a tendência é agravar-se com o aumento de seu atraso técnico, seja pela paulatina obsolescência dos seus equipamentos, seja pela inferiorização da performance dos veículos, cujos preços, para obter mercado, terão de ser necessariamente muito inferiores aos dos concorrentes”.

Rapidamente constatada a impossibilidade de se vender a fábrica para uma empresa nacional, porque as existentes no mercado estavam também sendo incorporadas pelas empresas estrangeiras, chegou-se à conclusão da necessidade de passá-la a um grupo estrangeiro. Para isso estabeleceu-se um processo sigiloso cujos documentos são desconhecidos até hoje. Antonio Delfim Netto e Macedo Soares argumentaram que, “sob o império do poder revolucionário, com base no art.9, parágrafo primeiro, do Ato Institucional 4”, era inteiramente possível realizar a operação em caráter excepcional e sem restrições. Para eles, a proposta “que mais atendia aos interesses da Nação” era a da Alfa Romeo SA, de Milão, Itália. Com a venda da Alfa para a Fiat na Itália, no início da década de 70, tanto a Alfa quanto a FNM passaram ao controle da Fiat em 1976.

Pioneirismo na aeronáutica

Desde os primórdios da colonização, os moradores de Duque de Caxias festejam em 13 de junho o dia de Santo Antônio, seu padroeiro. Mas em Xerém as comemorações não têm caráter religioso: festeja-se o aniversário do idealizador, o alagoano Antônio Guedes Muniz, engenheiro do Exército que, na década de 40, aproveitou-se da necessidade de o USA estabelecerem bases no Nordeste brasileiro para combater os alemães na Europa. Ele conseguiu incluir, nos acordos que permitiram ao Brasil a instalação da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, também a implantação da FNM para produzir motores de avião.

Na Cidade dos Motores

Guedes Muniz transferiu-se do Exército para a Aeronáutica, e a fábrica foi construída ao longo dos anos da guerra, nas proximidades da Rio-Petrópolis. O projeto, gigantesco para a época, dispunha de recursos incomuns como ar condicionado central no pavilhão principal, por exigência de temperatura constante para a fabricação das peças e motores Wright. Recursos do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI) possibilitaram a compra de 43 mil metros quadrados de terras onde se ergueram pavilhões de máquinas, oficinas de estruturas térmicas e eletroquímicas, montagem e manutenção, laboratórios, almoxarifados, lavanderia, cozinha, compreendendo 35 mil metros quadrados de área industrial coberta, além de 358 casas para administração e operários, duas edificações destinadas a hotéis, um prédio hospitalar, campo de aviação e hangar, um cinema, um mercado e duas praças de esportes. Decidido “a fazer de Xerém a Cidade dos Motores”, Guedes Muniz explicava sua preocupação com o bem-estar dos operários:

— Os que acreditam na felicidade humana, os que só são felizes quando todos são venturosos, quando não mais existir miséria e fome, os que esperam uma evolução social mais digna — dizia — bem podem compreender porque sempre consideramos a máquina operatriz, que se compra a dinheiro, e a máquina humana que jamais poderá ser comparada, elementos indispensáveis da produção, tão importante um quanto o outro. Por este motivo, sempre existiu no planejamento geral da Fábrica de Motores e Tratores, a construção de uma cidade operária, longe das superpovoadas capitais, protegida por grandes terrenos cultivados, cercada de todos os recursos de uma agricultura mecanizada, e de pecuária cientificamente estabelecida. Uma cidade moderna onde a vida humana possa ter a possibilidade de se expandir com alegria, conforto, segurança e dignidade. Esse programa tinha que nos levar, como nos levou, a procurar grandes áreas disponíveis, ao nível do mar por uma exigência técnica do ensaio do motor de aviação, terras que fossem acessíveis e baratas, com água abundante, energia elétrica, estrada de ferro e de rodagem, como possuem as escolhidas, e que puderam ser obtidas a preços módicos, pois eram pantanais praticamente abandonados, em terras invadidas pela malária, transmitida pelos mosquitos dos pantanais vizinhos.

Os dois primeiros motores aeronáuticos fabricados no país foram postos em funcionamento pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, pessoalmente, em 1º de abril de 1946, no banco de provas da FNM. Decorrido um mês, o brigadeiro Armando Trompowsky, ministro da Aeronáutica, declarava possuir um estoque de 180 motores Wright semelhantes aos que seriam produzidos pela FNM.

Como a USAF (força aérea do USA) já avisara que não precisava comprar mais nada, porque estava até vendendo sobras da guerra, a notícia constituía sentença de morte para a fábrica que apenas começava a produzir. Diante do fato e sem vontade de dar curso ao projeto, Dutra determinou a suspensão de motores aeronáuticos pela empresa, lançando-a numa grave crise.

Para Guedes Muniz, o fato de o Brasil ter importado motores aeronáuticos, no mesmo momento em que se montava uma indústria no Brasil para produzi-los, “explicava-se pela falta de planejamento que conspirava contra o anseio de liberação nacional”. Ainda assim, em 19 de agosto voava um aparelho Vultée BF-15, da FAB, equipado com um motor Wright construído pela FNM. E, no ano seguinte, entregava à Força Aérea outros nove desses aparelhos. É que, para os homens que haviam concebido a fábrica, seu papel não se esgotava na produção de motores de aviação. Ao contrário, a fabricação serviria para introduzir novos processos, com a tecnologia de fundição de alumínio para a fabricação de peças de motores, novas tecnologias de tratamento térmico e outras técnicas metalúrgicas.

A empresa se constituiria num centro irradiador da avançada mecânica de precisão. Para que o país não perdesse uma indústria de alto valor estratégico, Muniz tratou de fabricar outros bens — compressores, geladeiras, fusos para a indústria têxtil, peças sobressalentes para ferrovias e para a própria aeronáutica —seguindo os passos de outras fábricas de motores do USA e Inglaterra que também teriam vivido problemas análogos de reconversão no pós-guerra. A FNM chegou a projetar e construir um protótipo de carro blindado sobre lagartas para o Exército, com a primeira turma do Instituto Militar de Engenharia.

Para Muniz, o fim da guerra, a falta de uma preparação política e psicológica favorável à industrialização do país, a existência de estoques formados por sobras de guerra e, principalmente, a falta de um “programa geral de fabricação aeronáutica que garantisse um incondicional apoio à nascente indústria aeronáutica nacional” somaram-se para impedir que a FNM conseguisse se consolidar.

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