O direito à creche e a questão do aborto sob o socialismo

No sentido horário: creche chinesa; mulheres soviéticas se dirigindo a um kolkhoz; estudantes chinesas e cartaz comemorativo do 8 de março na Rússia

O direito à creche e a questão do aborto sob o socialismo

As revoluções proletárias do século XX provocaram uma reviravolta na condição da mulher e da infância. Nas repúblicas socialistas, as mulheres abandonaram a condição de submissão a que estavam submetidas há milênios e ocuparam as fileiras dos exércitos populares, as universidades, os mais diversos postos de trabalho e de comando do Estado proletário. E mais, ousaram desafiar a cultura burguesa que as relegava ao papel de ama doméstica.

No período anterior à revolução socialista na União Soviética, a mulher ocupava o mesmo lugar de um objeto qualquer. Não lhe era dado qualquer direito. O código civil da época czarista obrigava, peremptoriamente, as mulheres a obedecer aos maridos, independente da natureza de suas ordens.

Apesar do casamento ser proibido à mulher que provesse seu próprio sustento, o trabalho feminino era utilizado em larga escala no regime czarista, submetendo as mulheres a uma exploração infinita. Ao aprofundar-se a miséria e sem dispor de tempo livre, as mães trabalhadoras eram obrigadas a colocar, cada vez mais cedo, seus filhos como aprendizes nas fábricas e nos campos. Não era por acaso que a Rússia pré-revolucionária tinha o maior índice de mortalidade infantil do mundo, situação que se reproduz nos países sob o domínio do imperialismo.

A Revolução de Outubro aboliu toda essa espécie de exploração e o genocídio em geral. A proteção à infância e à maternidade na URSS, enquanto existiu de forma revolucionária, tornou-se um dos principais cuidados do Comissariado do Povo para a Saúde Pública, consequência do papel ativo da trabalhadora do país dos Soviets, presente na indústria, na agricultura, na vida pública; nos diversos setores da construção socialista.

Ao trabalho

A base primordial da condição subalterna da mulher foi, em todos os regimes de exploração do homem pelo homem, de caber a ela o trabalho mais desgastante fisicamente e menos produtivo. A emancipação real da mulher depende da afirmação de sua independência econômica e de sua capacidade de expressar-se no trabalho produtivo.

A Dra. Esther Conus, relata em seu livro Proteção à infância e à maternidade na URSS 1 que após a Revolução de Outubro as mulheres constituíam a terça parte da população operária da Rússia, recebendo os mesmos salários dos homens empregados em igual função.

As modificações mais impactantes ocorreram para a mulher camponesa. No campo, principalmente nas regiões de minorias nacionais, criaram-se clubes femininos onde elas aprenderam a lutar contra os velhos costumes que as escravizavam. A camponesa era membro do Kolkhoz 2. A grande mudança se deu no fato de que a reconstrução da economia rural obrigava a uma mudança nas condições de vida das camponesas. As brigadas dos Kolkhozes entenderam que era preciso organizar cantinas e creches comunais, libertando as camponesas do trabalho doméstico, o mais que pudessem.

Na China — até a contra-revolução que restaurou o capitalismo, em 1976 —, as mulheres também assumiram seus postos de trabalho na construção da grande obra socialista. O Presidente Mao Tse-tung afirmava que “tudo que um homem pode fazer, uma mulher pode fazer também“, o que se tornou parte de uma nova maneira de pensar e de viver. Após a vitória da revolução em 1949, as mulheres decidiram que não queriam permanecer como donas de casa e, como os demais trabalhadores, fundaram diversas cooperativas de trabalho.

Construir creches

A ampliação considerável do número de creches foi, para a mulher, uma das maiores realizações da construção socialista porque, de fato, é a existência destas instituições que permitiu a ela participar de todas as atividades laborais, sociais e políticas.

A política de construção de creches foi semelhante em todas as repúblicas socialistas. Na URSS revolucionária — antes do advento do revisionismo no poder, em 1953 — era expressamente proibido construir qualquer grande imóvel sem o plano de construção de uma creche com os leitos necessários. De 14 creches com número de vagas desconhecido, antes de 1917, a Rússia passou a ter mais de 365 mil vagas em 1932 nas cidades, quando o Comissariado do Povo para a Saúde Pública ainda considerava o serviço deficiente.

Tanto na União Soviética quanto na China, pelo tempo que vigorou a revolução, as creches localizavam-se nos locais de trabalho — possibilitando às mães a amamentarem seus filhos — e nos bairros habitacionais facilitando a locomoção para a creche, o trabalho e a residência. Na China, os bairros industriais possuíam uma creche por quarteirão e os bairros mais povoados, uma creche para cada uma ou duas ruas. Os pais tinham uma participação muito pequena nos gastos. A maioria dos recursos provinha dos fundos das fábricas, dos fundos coletivos dos bairros e do próprio Estado.

Ao contrário dos países dominados pelo imperialismo, as creches não eram depósitos de crianças. Longe de separar a criança da família, as creches as inseriam na sociedade, educavam-nas a respeitar o trabalho coletivo e os trabalhadores, a ciência e a natureza. Além do mais, as crianças tornavam-se independentes pelas suas atividades e, ao mesmo tempo, socializadas em função da forma coletiva dessas mesmas atividades. Aprendiam a se vestir, a lavar-se e a cuidar de sua higiene pessoal etc., a organizar o seu espaço e a produzir intelectual e materialmente, de forma individual e coletiva.

A maioria das creches funcionava ininterruptamente. Assim, de acordo com o tempo disponível em função das atividades desenvolvidas, as famílias optavam por levar as crianças para casa todos os dias, outras vezes somente nos finais de semana ou mesmo alguns dias durante o mês. Esta forma de funcionamento garantia às mulheres o seu direito ao tempo livre: descanso, lazer, trabalho produtivo, ao estudo, e a desenvolver atividades artísticas, esportivas, culturais e políticas. O avanço da revolução no plano cultural permitiu grandes saltos pedagógicos e a própria direção das creches, inicialmente restrita aos especialistas, passou a contar com a presença de operários, camponeses e até mesmo de crianças.

Os Kolkhozes e Sovkhozes 3 soviéticos tinham suas próprias creches. As creches permanentes, nas aldeias, ainda existiam em pequeno número. A maioria das instituições eram “creches de verão”, isto é, funcionavam por 6 meses, devido aos trabalhos no campo. Funcionavam do amanhecer até o término dos trabalhos agrícolas e, algumas, contavam com serviços ambulantes que levavam os filhos para que suas mães pudessem amamentá-los. As creches ambulantes também atuavam na politização, realizando palestras, mostras de livros e leitura de jornais durante o almoço e os intervalos.

O atendimento à saúde

No período czarista, de cada três recém-nascidos somente um sobrevivia ao primeiro ano e quase a metade sucumbia na primeira infância. O Estado soviético criou postos de saúde em todas as empresas com consultórios especiais para as mulheres. Estes consultórios prestavam atendimento médico durante a gravidez e após o parto, tratavam moléstias ginecológicas, aconselhavam e forneciam informações profiláticas. Todo o serviço era gratuito. O serviço médico contava, ainda, com um amplo atendimento de enfermeiras que visitavam as pacientes em casa.

O governo soviético foi o primeiro, em todo o mundo, a legalizar a prática do aborto. Todavia, seu ponto de vista acerca do problema foi claramente exposto no decreto governamental de 18 de outubro de 19204:

O governo dos operários e camponeses (…) faz, em grande escala, uma sistemática propaganda contra os abortos e prevê, no caminho da estabilidade do regime socialista e dos progressos à maternidade e à infância, a extinção gradual desse fenômeno perigoso. Mas, na hora atual, as superstições de ordem moral herdadas do passado e a pressão das condições econômicas do momento ainda continuam a encaminhar uma certa parte da população feminina aos riscos desta operação. O Comissariado do Povo para a Saúde Pública e o Comissariado da Justiça, decretam:

1 A operação do aborto, efetuada livremente e a título gratuito, é autorizada pela lei, com a condição que ela seja praticada nos hospitais soviéticos, onde o máximo de segurança pode ser dado à paciente;

2 Uma proibição formal para efetuar esta operação é dirigida contra toda a pessoa sem diploma de médico;

3 As parteiras, culpadas pela realização dessa operação, são privadas do direito de exercer sua profissão e são citadas perante o tribunal popular;

4 Todo o médico que, por motivos de lucros pecuniários, tenha feito esta operação fora das condições exigidas (isto é, no seu consultório médico particular) será citado perante o tribunal.”

A regulamentação do aborto foi acompanhada de uma grande campanha de propaganda sanitária, distribuição de brochuras, realização de conferências públicas com exibição de filmes que mostravam os perigos do aborto. O aborto só era permitido nos três primeiros meses de gravidez e o processo para sua realização compreendia: 1) parecer médico indicando a margem de riscos da operação; 2) análise das circunstâncias gerais que determinavam o aborto; 3) tentativa de fazê-la mudar de idéia — o que ocorria em grande parte dos casos, tal como no divórcio.

O código penal soviético punia severamente a realização dos abortos fora das condições especificadas na lei. A pena poderia ser, dependendo do caso, prisão ou multa; e penas mais graves quando a ação tinha caráter profissional mercenário, realizada sem o consentimento da mulher ou a levava à morte.

A melhoria da condição material das massas operárias, acompanhada de garantias específicas como o aumento das habitações operárias e da rede de creches, o uso racional dos remédios preventivos e a própria regulamentação do aborto resultaram, em 1932, segundo a Dra Esther Conus, numa redução de 30% da mortalidade infantil em toda a URSS. A possibilidade de fazer um aborto seguro e as restrições penais levaram muitas mulheres a procurar o serviço médico estatal. Uma vez neste serviço, lhes eram mostradas todas as condições que o Estado proletário oferecia para auxiliar às famílias a criar os filhos e os perigos de um aborto. Tais medidas diminuiram consideravelmente o número de abortos praticados na URSS, ao contrário do que afirmam os incautos, em face da legalização.

A causa maior do aborto (e do infanticídio) residia na opressão que pairava sobre as mulheres (em particular a opressão sexual, que se faz acompanhar invariavelmente da promiscuidade, da prostituição e ocorrências como estupros etc), cuja resolução não se fundamentou num simples “direito de escolha”, como advogam as feministas burguesas, mas na revolução que pôs fim à exploração do homem pelo homem, na Rússia czarista e na China feudal e colonial.


1 Esther Conus: Proteção à maternidade e à infância na União Soviética, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1935.
2 Kolkhozes – (exploração coletiva) Organização cooperativa dos camponeses livremente associados com vista a formar uma grande empresa agrícola socialista, baseada na propriedade comum dos meios de produção e no trabalho coletivo. Junto com os Sovkhozes, representavam os maiores produtores de gêneros agrícolas da URSS.
3 Sovkhozes – (exploração agrícola estatal) Grande empresa agrícola na URSS, cuja existência se tornou possível pelo fato de a terra e os meios de produção pertencerem ao Estado. Os primeiros sovkhozes apareceram em 1918. Desempenharam um papel considerável na transformação socialista da agricultura, pois foram, para os camponeses, uma escola de gestão coletiva da agricultura.
4 Comissariado do Povo para a Saúde Pública; Comissariado do Povo para a justiça; 18/11/1920 — citado por Esther Conus em “Proteção à infância e à maternidade na União Soviética“.
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