Uma realidade cada vez mais trágica e comum nas grandes cidades brasileiras é a existência de um número gigantesco de pessoas que vivem nas ruas. Empurrados pelo desemprego, pela miséria e pelo aumento constante dos preços dos aluguéis, milhares de trabalhadores são obrigados a dormir todos os dias nas calçadas e marquises dos centros urbanos, expostos às intempéries e violências, especialmente por parte da polícia. Recostados num chão úmido, sujo, em meio a animais e expostos a doenças, encontram-se famílias vítimas de enchentes e desabamentos, camponeses recém-chegados do interior, desempregados e vários proletários.
Trabalhadores dormindo na rua
Somente na cidade do Rio de Janeiro, estima-se que vivam nas ruas cerca de 3.500 pessoas, ocupando, principalmente, o Centro e os bairros das Zonas Sul e Norte. Numa cidade como o Rio, onde as condições de habitação do povo já são extremamente difíceis, sem falar nas mais de 500 favelas existentes, este número de desabrigados é alarmante, possivelmente o maior do país. Ao mesmo tempo em que isso ocorre, a cidade tem também um dos maiores índices de imóveis desocupados, a maioria pelo alto valor dos aluguéis — resultado direto de desenfreada especulação imobiliária. Ultimamente, os preços de casebres simples, nas favelas e periferias, são afetados pelo covarde jogo especulativo, o que beneficia somente uns poucos grandes proprietários de vastos terrenos, casas e até prédios inteiros, e faz com que o contingente de negligenciados aumente a cada dia.
A permanência na sarjeta é degradante, o que faz com que muitos se afundem no alcoolismo, na prostituição e cometam pequenos furtos, para a satisfação de necessidades básicas improrrogáveis. Porém, ao contrário do que é divulgado, a maioria dos moradores de rua não vive de esmolas ou delitos. Parte considerável deles trabalha regularmente, alguns até com carteira assinada, segundo dados de uma pesquisa realizada por alunos do IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro), no ano de 1999. São catadores de papel e de latinhas de alumínio, vendedores ambulantes, biscateiros, camelôs, engraxates e diaristas, espalhados, durante a noite, pelas esquinas, precariamente abrigados por lonas, tapumes de madeira ou pedaços de papelão. Sem o direito a um teto para pernoitar, passando a noite com medo de serem assaltados e perderem o que ganharam no serviço. E ainda há uma novidade: operários, trabalhadores assalariados e pequenos funcionários (como garis, faxineiros, porteiros, etc.) habitam também as ruas, vitimados pelos salários de fome pagos em nosso país aos verdadeiros construtores da nação.
E ainda há situações mais cruéis. Muitos destes trabalhadores, cerca de 38% (novamente segundo dados da IU PERJ), têm onde morar, mas — mesmo assim — são obrigados a dormir nas ruas, durante a semana, porque não podem pagar as passagens de ida e volta para suas casas, situadas nas longínquas periferias ou nas cidades da região metropolitana. A remuneração destes trabalhadores, superexplorados pelo capital, é tão baixa que não permite o custeio do transporte, que sobe constantemente. Somente aos sábados e domingos estas pessoas vão para casa, ver os filhos e tratar da sustentação de suas famílias. A situação é revoltante: “Trabalho como eletricista, moro de aluguel em Belford Roxo — na Baixada Fluminense — tenho carteira assinada. Durmo aqui na Central de segunda a sexta, na rua, porque tenho que vender meus vales-transporte para complementar o salário. A ver meus filhos passarem necessidade, prefiro me sujeitar a isso”. Estas são palavras do Sr. Roberto de Oliveira, 42 anos, casado, pai de três filhos, renda mensal em torno de 500 reais. Abordado por nossa reportagem, às 18:00 de uma terça-feira, 28/1, na altura da Central do Brasil, de onde partem os chamados trens de subúrbio, com destino à periferia e às cidades da Região Metropolitana carioca. Com lágrimas nos olhos, voz entrecortada por um misto de dor e revolta, Roberto continua: “Como eu, vocês vão ver muita gente por aí… Na segunda, trabalhador sai com a malinha na mão, cinco mudas de roupa e tá na rua; dorme com medo, levanta de madrugada, se arruma e vai trabalhar de novo, engordar patrão. Sábado ou domingo, depende do serviço, volta para casa e vê as crianças…”
Já tive casa, trabalhei de carteira assinada…
Essa é a frase mais pronunciada pelos moradores de rua com quem conversamos. Dos que só têm a rua como lar, suas origens são variadas mas, a grosso modo, a composição social é a mesma em todo o país. O desemprego e a miséria, males crônicos da sociedade capitalista — e que não podem ser resolvidos neste modo de produção social (ver quadro) — são os motivos que mais empurram famílias para a sarjeta. Uma análise rápida do perfil dos atuais moradores de rua mostra que os que hoje lá estão são brasileiros explorados, trabalhadores que tiveram emprego e vida difícil, sem, contudo, cair na criminalidade. São pessoas “comuns”, como qualquer um, assalariadas como a maioria do povo, que deram seu sangue e suor em empregos infimamente remunerados e que por força de circunstâncias — na maioria das vezes alheias a sua vontade ou esforços pessoais — acabaram indo viver nas ruas, sem ter outra alternativa. Com média de idade entre 40 e 50 anos, escolaridade baixa (em geral o 4º ano primário — mesma média nacional), a esmagadora maioria (68%, ainda segundo dados da pesquisa dos alunos da IUPERJ) já trabalhou com carteira assinada, em profissões regulares, de modo geral, no comércio ou na indústria. E esse número de ex-empregados nas ruas sobe, se levarmos em consideração as famílias que vieram do campo, formados basicamente de pequenos lavradores e assalariados agrícolas que, sem terra nem recursos para cultivar e pressionados pela ganância dos latifundiários, foram expulsos para a cidade.
Recém-chegados de Leopoldina, interior de Minas Gerais, Felipe da Silva e sua família saíram da lida cotidiana na roça por absoluta falta de condições, vindo para o Rio em busca de emprego. Desembarcando na rodoviária, quase sem dinheiro algum, ocuparam nesse mesmo dia uma marquise da Avenida Presidente Vargas, atrás da igreja da Candelária. E por lá estão Felipe catando latas de alumínio para vender, a mulher cuidando das crianças. “A vida tá difícil, mas ‘tou procurando emprego. Sempre tem alguma coisa para fazer…” diz Felipe, na expectativa de conseguir ver as coisas melhorarem. Como ele, inúmeros outros pais de família estão na mesma avenida, nas proximidades da Central do Brasil, na 1º de Março, enfim, por todo o centro carioca, sem ter onde ficar.
Promessas e demagogia do governo não resolvem o problema
No ano de 2002, o ex-governador do Rio, Sr. Anthony Garotinho, criou o chamado Hotel Popular, na Central do Brasil, que nem de longe soluciona o problema dos desabrigados, somente fazendo estardalhaço e piadinhas com tão grave problema social. Cobrando um real por pernoite, este projeto demagógico e vazio do ex-governador do PSB (Partido Socialista Brasileiro) e candidato derrotado à presidência da República, só atende a cem pessoas por dia, ainda assim com critérios que excluem a maioria dos moradores de rua. Contando com enorme propaganda oficial, chamado por oportunistas de “modelo”, esta jogada de marketing do governo carioca serve para tentar esconder o problema habitacional da sociedade, justificar o imobilismo das classes dominantes diante da questão e aparentar “preocupação social” por parte dos gerentes da máquina burocrática-administrativa do Estado.
O mesmo teor mentiroso e estéril tem as medidas adotadas por outros governos estaduais e municipais, a reboque do populismo de Garotinho — e prometidas em campanha pelo recém eleito Luís Inácio da Silva — de fornecer títulos de propriedade para moradores de favelas, fato que não alterará em nada as condições de habitação do povo, nem tampouco minorará os sofrimentos de quem não tem casa para morar. Esta “concessão de propriedade” governamental faz parte do conjunto de medidas de impacto que o sucessor de Cardoso na gerência do velho Estado brasileiro está adotando, com o intuito de iludir parcelas da população sobre suas reais intenções. Assim como os programas assistencialistas anunciados para a área de abastecimento, este engodo populista também terá vida curta.
União para barrar criminalidade e violência policial
Identificados como marginais e delinqüentes, responsabilizados por furtos, badernas e até por venda de entorpecentes, os moradores de rua de metrópoles como o Rio, constantemente são vítimas de violências de todo tipo. A PM (policia militar), a guarda municipal e os contingentes de seguranças particulares acossam inesperada e abruptamente pessoas que estão dormindo nas calçadas, negligenciadas, tratando-as com extrema brutalidade, chegando a perseguir algumas delas, dificultando a consecução de uma marquise ou outro local coberto para servir de “quarto” para trabalhadores e suas famílias. Sob as ordens de grandes comerciantes, policiais e seguranças rondam áreas inteiras, espancando os desabrigados e “limpando” determinadas ruas, para garantir o funcionamento “sossegado” de boates e casas noturnas.
Nesse sentido, casos de roubos, extorsão, estupros e até assassinatos são comuns entre moradores de rua. Para se defenderem destas situações e para ganharem força, conseguindo melhores locais para pernoitar, muitos moradores de rua têm se juntado, ocupando marquises com espaços maiores de forma coletiva, e, até mesmo, prédios públicos antigos, já abandonados, para conseguir moradias. Somente no Rio, há 17 edifícios ocupados há anos, transformados em conjuntos habitacionais pelo próprio povo, através de sua organização. Em São Paulo, Belo Horizonte, Brasília e Recife há mais algumas dezenas, entre terrenos e imóveis. É o povo expropriando latifundiários e especuladores urbanos para conquistar o direito à moradia.
O desemprego no capitalismo
Mas a questão é: nosso desemprego não será solucionado enquanto os senhores não ficarem desempregados!
(Bertolt Brecht, Esse desemprego!, Poemas: 1913-1956, tradução de Paulo César Souza, Ed. Brasiliense, SP, 1986)
O desemprego, bem como outros males sociais que atingem a vida de milhões de trabalhadores em todo o mundo, não pode ser resolvido nos marcos do sistema capitalista. E não pode porque é parte deste sistema, um dos sustentáculos principais da brutal exploração e opressão sobre o povo, em particular sobre o proletariado, que o capitalismo — em sua última e superior fase, o imperialismo — pratica.
Economistas e sociólogos “oficiais”, políticos burgueses e mistificadores em geral, justificam o fenômeno do desemprego crônico que afeta a sociedade como uma conseqüência natural do aumento da população, que desregularia o chamado mercado de trabalho. Tentam explicar tão abominável mazela social — que se constitui como um dos maiores tormentos dos trabalhadores — através da velha e reacionária teoria malthusiana. Porém, a existência de um número constante e cada dia maior de trabalhadores que não encontra emprego, nada tem a ver com o número de pessoas existente. O desemprego é regulado por leis específicas, inerentes ao modo de produção capitalista, tornando-se inevitável neste.
O desemprego é um fenômeno inevitável na sociedade capitalista, condicionado por fatores específicos que regem a existência desta formação economica e social em que parte dos trabalhadores fica desempregada, formando uma população relativamente excedentária, uma mão-de-obra de reserva. O desemprego agrava-se consideravelmente nos momentos de crise econômica. Com a crise geral em que se afunda o capitalismo, agravou-se ainda mais a situação, tomando proporções assustadoras. O exército de desempregados é utilizado pelos capitalistas, primeiro, como mercado de mão-de-obra quando da extensão da produção em períodos de incremento econômico e, segundo, para intensificar a exploração da parte empregada do proletariado, que — pressionada pela constante ameaça do desemprego—trabalha mais e tem sua massa de salários sempre achatada.
Somente com o fim das relações de exploração e, consequentemente, das relações sociais estabelecidas pelo imperialismo, é que se pode pensar em resolver o problema do desemprego, ocupando todas as pessoas no processo de produção social conforme as necessidades da sociedade, as habilidades e aptidões dos trabalhadores.