Os articulistas do monopólio de imprensa dividiram-se ao analisar o discurso do comandante do Exército reacionário por ocasião do Dia do Soldado (que coincide com o nascimento do Patrono genocida deste Exército de mesma qualificação, o “Duque de Caxias”), ocorrido pouco antes das fracassadas manifestações golpistas de 7 de setembro, de Jair Bolsonaro. Por ter sido alvo de tantas disputas, na antessala do 07/09, e por nos dar ótima oportunidade para destrinchar a estratégia do Alto Comando das Forças Armadas (ACFA), nos deteremos no discurso e nas análises sobre ele.
As conclusões dos articulistas são fundamentalmente duas, e a base para ambas é a mesma miopia ideológica chamada liberalismo, com sua necessária acompanhante em política: a ilusão constitucional.
Os defensores da primeira análise – segundo a qual o discurso foi uma tomada de posição “clara” contrária a qualquer quebra da ordem institucional, cujo expoente é Reinaldo de Azevedo – caem na ilusão pura e simples; os da segunda – segundo a qual o discurso foi irrestritamente alinhado a Bolsonaro, cuja figura maior é Marco Antonio Villa – expressam, por sua vez, o desespero dos que, nos primeiros indícios da possibilidade de ruptura institucional com apoio das Forças Armadas (que de fato não é impossível), como que se quebrasse o fino cristal de sua ilusão, exageram e absolutizam o problema.
Concentrar-nos-emos na categoria dos analistas, que é mais expressiva, numerosa e cuja formulação é mais séria: a primeira. O que teve no discurso do senhor general de Exército Paulo Sérgio que engana-lhes, fazendo parecer uma “firme tomada de posição” pela democracia?
“Enaltecida pelo Povo brasileiro, a atuação de Caxias foi marcada pela conciliação, pela superação de posições antagônicas, e, sobretudo, pela prevalência da legalidade, da justiça e do respeito a todos. (…) Fiéis herdeiros do legado de Caxias e alicerçados na hierarquia, na disciplina e nos valores pátrios (…) O Exército Brasileiro (…) mantém-se sempre pronto a cumprir a sua missão, delegada pelos brasileiros na Carta Magna. (…) A você, soldado, que, lutando sem temor, derramou seu sangue além-fronteiras, no continente e nos campos da Europa, pela defesa da democracia e contra o totalitarismo! (…) reafirmar o compromisso com os valores mais nobres da Pátria e com a sociedade brasileira em seus anseios de tranquilidade, estabilidade e desenvolvimento. (…) Mantenhamos, sempre, a fé inabalável na missão do Exército Brasileiro (…) iluminados pelo espírito patriótico, pacificador e conciliador do Duque de Caxias, sejamos, junto aos irmãos brasileiros, inspiradores de paz, união, liberdade, democracia, justiça, ordem e progresso – que o nosso Povo tanto almeja e merece – dedicando-nos, inteiramente, à defesa da soberania nacional e ao bem do nosso amado País”.
Os negritos nossos destacam aquilo que se interpreta como um rechaço a qualquer quebra da ordem institucional, ou seja, uma intervenção militar total.
Isso está de todo errado? Não. Mas a cegueira política impede os liberais que aferram-se a essa análise de observarem que:
1º: os senhores generais “legalistas” – isso está fartamente documentado em vídeos e publicações na internet – desataram, desde 2015 e envolvendo oficiais da ativa, o seu processo de intervenção militar (em forma diversa da adotada em 1964) garantida pela força das armas. Armas que, por ora, não necessitam empunhar para transformá-las em força de coação política (recordar a palestra do senhor Villas-Bôas, na Maçonaria, em 2017, onde afirma que diante da crise que se abrira, o Alto Comando se tornaria “protagonista silencioso”). Desde então, têm conduzido relativamente a situação política para o rumo o qual definiram previamente. O fazem através de ameaças, tutela e utilizando-se da “Lava Jato” para constranger os demais poderes constitucionais, particularmente o legislativo para atingir e queimar as cúpulas partidárias e aparentar limpeza e renovação – no que não obtiveram o êxito com que contavam;
2º: os generais “legalistas” foram, no processo recente, os primeiros a interpretar o Artigo 142 da Constituição como condescendente a uma intervenção militar se ela visa a “garantia dos poderes constitucionais” e manutenção “da lei e da ordem”, mesmo sem ser acionado por um dos poderes constituídos, outorgando, por conta própria, às Forças Armadas a condição de Poder Moderador.
E, derivado destes dois, o 3º: os generais tomaram tais posicionamentos e iniciativas antes de Bolsonaro ser o primeiro mandatário do país. Este fato (convenientemente esquecido por nossos “liberais tupiniquins”) nos lega a conclusão de que os generais podem rechaçar a linha de Bolsonaro (que veremos qual é adiante) e, ao mesmo tempo, aceitar a intervenção militar total (ruptura institucional) desde que seja a saída mais favorável diante dos fatores externos e desde que acobertada por legalidade, legitimidade e sendo a via para restaurar a estabilidade se frágil estiver (como rezou Villas-Bôas). É claro que, como analisam os últimos Editoriais de AND, a necessidade de intervenção total não é tendência a ocorrer a curto prazo.
O que, no discurso do general Paulo Sérgio, indica isso? Ainda que singelos (pois o problema principal é demarcar com Bolsonaro), os seguintes trechos o demonstram: “O resultado de seus feitos traduziu-se, sempre, no restabelecimento da paz, na restauração da lei e da ordem e na manutenção da integridade do País”. E, ao se referir à missão constitucional do Exército, disse: “A defesa da Pátria e a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem são, portanto, o farol que orienta o contínuo preparo e o emprego da Força Terrestre”.
Trata-se, portanto, de um quadro delicado: os generais não são democratas e “legalistas” em si mesmos, razão pela qual têm um plano (e isso já foi dito abertamente pelo boquirroto Mourão, então da ativa, em 2017, em Loja Maçônica, e cuja falta de punição indica ter sido por delegação do seu superior à época) de intervenção militar total (leia-se, ruptura aberta da ordem institucional, ainda que acobertada com legalidade via Art. 142) aplicável se combinarem-se a deflagração de uma Revolução (“caos social”, nas palavras dos generais) e o Estado tornar-se inoperante para a difícil tarefa que frente a ele se encontra: recuperar o capitalismo burocrático através de medidas para explorar ainda mais o povo, impor novo regime político mais centralizado e com maior credibilidade popular, estabelecer maior militarização na sociedade e abrir precedentes jurídicos para sua atuação contrainsurgente – tudo para abortar o início ou desenvolvimento da Revolução no Brasil, cuja iminência testemunhamos a olhos vistos e o centro deste risco é a luta camponesa. Enquanto isso, os generais “legalistas” conduzem sua ofensiva contrarrevolucionária na forma de golpe militar por via institucional, como indicou Villas-Bôas, o “protagonista silencioso”.
Ora, o fato do comandante do Exército enfatizar a Carta Magna não significa uma absoluta negação da possibilidade de intervenção militar total. O mais importante, aqui, é a interpretação da direita militar sobre o Art. 142, segundo a qual a intervenção para “a garantia dos poderes institucionais” não necessariamente depende da ordem de um dos três poderes constituídos. De fato, eles propagandeiam que a intervenção militar total dentro de determinadas condições é prevista pela Carta Magna e, portanto, “delegada pelos brasileiros” para a “defesa da democracia”.
O mesmo se pode dizer sobre a referência à liberdade e democracia, pois que para o generalato anticomunista uma intervenção militar, para “restabelecer a ordem” e abortar o “caos social” (como justificativa), é por si um meio (em determinadas condições) para defendê-las, quando na prática será o golpe de misericórdia nesse decrépito “Estado democrático de direito”.
Tal intervenção militar total (a que chamamos o culminar do golpe de Estado militar, já desatado), admitida como possibilidade dentro dessas condições, por sua vez, nada tem de identidade absoluta com o plano de Bolsonaro (que é onde erram os analistas que veem os pronunciamentos recentes dos generais, golpistas, como alinhamento automático a Bolsonaro). Sabedor que é das condições que obrigam o ACFA a uma intervenção total, Bolsonaro busca ajudar a criá-las, produzindo caos, crises e instabilidades enquanto busca apresentar-se por injustiçado, para que ele mesmo seja mandatário quando esse processo inevitável sobrevier. A malograda manifestação golpista de 07/09 é uma dessas iniciativas estratégicas que, como se vê, demandam força para triunfar e, se não a possui, acaba por desmoralizar toda a causa golpista.
Os altos comandantes – em sua maioria – querem evitar a intervenção total (razão pela qual, no seu discurso, o atual comandante enfatiza tanto os valores da “estabilidade”, “conciliação”…), mas a admitem unanimemente se necessária for para combater a Revolução, e (no cenário ideal) desde que suceda a ela o retorno à democracia liberal, porém mais centralizada e extremamente restritiva no tocante aos direitos democráticos (ainda mais deformada, portanto); Bolsonaro e a extrema-direita, por sua vez, querem a intervenção militar total porque a admitem como única forma de impor o regime militar-fascista, sem o qual, em sua visão, é impossível combater a Revolução.
O que os analistas não veem? Que, nem tão ao céu nem tão ao inferno: nem alinhados absolutamente, nem democratas ilibados. Os generais são golpistas, mas a seu modo. E, ainda que seja bastante improvável, os generais podem tanto unir-se a Bolsonaro na intervenção total – ainda que depois divirjam e pugnem-se para definir qual regime político impor em substituição ao atual – como podem, a curto prazo (pleito de 2022), livrar-se dele através da farsa eleitoral, se manejada adequadamente. Há algo que está nos cálculos dos marqueteiros, e que é feliz certeza do oportunismo eleitoreiro: o fato de que sendo Bolsonaro candidato Luiz Inácio vencerá as eleições. Não há possibilidades legais de impedir a candidatura do petista, a não ser que este venha a fenecer. Caso este quadro não se altere, a vitória do petista e a reação que provocará serão outros quinhentos. O establishment e os liberais também estão certos de que a chance de uma terceira via depende em definitivo que um deles – ou Bolsonaro, ou Luiz Inácio – não esteja na disputa. Há que se aguardar os desdobramentos.