Comentar um livro muitas vezes pode ser uma tarefa espinhosa. Ora um autor mal intencionado lança uma campanha difamatória e é necessário desmontar a intriga, não com verborragia, mas com argumentos, ora o problema não reside na idoneidade do autor mas na fraqueza dos seus argumentos, cabe então a crítica fraterna. O livro de Orlando Zaccone Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas não se encaixa em nenhuma dessas categorias, nossa aprazível empreitada consistiu em traduzir a linguagem jurídica para uma mais jornalística de modo que o público leigo pudesse apreender seu conteúdo sem se desviar da intenção do autor. Pedimos antecipadamente desculpas se porventura chegarmos a conclusões as quais o autor não buscava. Assumimos total responsabilidade se isso ocorrer.
O livro de Zaccone é leitura obrigatória para aqueles que buscam entender a realidade por trás da chamada ‘guerra contra as drogas’, seja no Rio de Janeiro, no Brasil e mesmo internacionalmente. É um livro corajoso que põe a nu o Estado policial e a criminalização da pobreza. Embora tenhamos uma conclusão ligeiramente diferente, cremos que se trata de um livro indispensável.
Sendo impossível abordar todos os tópicos do livro em tão pouco espaço, levantaremos aqui as denúncias mais contundentes e suas implicações.
O Fundo Monetário Internacional calcula que o movimento referente ao tráfico de drogas é de 500 bilhões de dólares anuais. A este movimento o monopólio dos meios de comunicação associa o esteriótipo do “narcotraficante”. Este em tese é violento, poderoso e enriquecido pelo tráfico. Na prática é pobre, semianalfabeto e geralmente negro, e na maioria dos casos detido com drogas sem portar nenhuma arma.
Segundo o autor a estrutura do tráfico se assemelha mais a uma empresa que a um exército, como gosta de propagandear o monopólio dos meios de comunicação: alguns chefões, cuja prisão é sempre alardeada, milhares de fogueteiros empacotadores e aviões e finalmente os soldados, única categoria armada, responsável pela segurança do negócio. A estes somam-se os que ficam com o grosso do lucro, respeitáveis empresários que não sujam as mãos, ao contrário, lavam o dinheiro do tráfico. Todos eles, quando pegos e se condenados, respondem pelo mesmo crime. Obviamente quem lota os presídios é quem não tem condições de resistir a prisão, pois está desarmado, nem, tampouco, de contratar um advogado, se capturado, ou seja, os fogueteiros, empacotadores e aviões.
Outra constatação que reforça a certeza de que a guerra contra as drogas é, na verdade, uma guerra contra a pobreza, é o fato de que durante os quatro anos em que o autor foi delegado adjunto na 14ª DP em Jacarepaguá (cuja circunscrição inclui a Cidade de Deus e o Morro do São José Operário) lavrou praticamente um flagrante por dia, referente a tráfico de drogas. Foi transferido para a 16ª DP, onde só lavrou um flagrante em quase um ano. Resta dizer que a segunda delegacia fica na Barra da Tijuca.
Tomando com base a estatística fria pode-se concluir que não existe tráfico na Barra da Tijuca. O que ocorre, no entanto, é que existe uma seleção dupla. Primeiro se define o que é o crime e depois quem vai pagar por ele. Se olharmos mais amplamente as estatísticas de flagrantes lavrados a certeza fica ainda maior. Por exemplo, no ano de 2005 foram lavrados 63 flagrantes na região considerada mais nobre da cidade, Zona Sul mais Barra da Tijuca. Este número corresponde a aproximadamente um terço dos lavrados apenas em Bangu-zona Oeste (186) e é igual ao dos lavrados em São Cristóvão-zona Norte (63).
É evidente que estes dados não revelam a realidade do comércio de drogas ilícitas no Grande Rio. Nem em Bangu circula três vezes mais drogas que na zona Sul nem São Cristóvão se iguala a ela. O que os números revelam é a opção política (de classe) do Estado punir seletivamente os mais pobres. Ou seja, não são as estatísticas que definem uma política de segurança, mas, justamente o contrário.
O espaço em que ocorre o comércio de drogas na Barra da Tijuca, por exemplo, é bastante diferente do das zonas mais pobres, como Bangu ou o Complexo do Alemão. Os grandes pontos de venda se localizam em condomínios onde a polícia não entra rotineiramente. Imaginemos o telejornal da facção dominante do monopólio dos meios de comunicação anunciando uma operação em um grande condomínio. O tal consultor de segurança mostra os detalhes no mapa e a apresentadora aparvalhada babando de felicidade mostra cenas da ação onde provavelmente moram vários dos seus colegas de trabalho. E os tanques, o pessoal camuflado com pose de SWAT? Será que o Cristo Redentor colocaria a farda do Bope, ou a bata de algum hippie saudosista e clamaria por paz e amor?
Bem menos problemático é continuar prendendo só aqueles que se encaixam no esteriótipo de criminoso. Associa-se crime e miséria, o criminoso como caracteristicamente pobre e daí para definir o pobre como caracteristicamente criminoso é um passo.
Zaccone conta em seu livro uma passagem bastante interessante para ilustrar o assunto. O delegado autuou em flagrante dois jovens da zona Sul que transportavam 280 gramas de maconha em um carro importado (segundo o autor o cantor jamaicano Bob Marley teria afirmado que um bom cigarro de maconha leva um grama da erva).
O delegado em questão autuou os dois jovens por porte de droga para uso próprio e não por tráfico, baseando-se nos seguintes fatos: a droga estava acondicionada em dois volumes prensados, os dois eram estudantes universitários, tinham emprego fixo e folha de antecedentes criminais limpa. O delegado considerou isso como indício de que falavam a verdade quando em seu depoimento afirmavam que a droga era para uso próprio e autorizou a concessão de fiança e liberdade provisória. Se os jovens fossem negros e transportassem a mesma quantidade de droga em um ônibus qual seria a atitude do delegado, ainda que tivessem a ficha limpa?
Pode-se pensar que na outra ponta estão os grandes cartéis atacadistas internacionais, no entanto, é impossível que um negócio que movimenta mais de um bilhão de dólares por dia beneficie apenas meia dúzia de traficantes internacionais. Sendo assim para onde vai o dinheiro? Quem se beneficia dele?
O autor cita que o banqueiro saudita Gaith Pharaon declarou que todos os grandes bancos lavam dinheiro do narcotráfico, incluídos aí o First Bank of Boston e o Crédit Suisse e que apenas o seu Bank of Credit and Comerce Internacional, envolvido em um grande escândalo financeiro, era frequentemente citado por suas vinculações ao narcotráfico.
É impossível separar o legal do ilegal no que se refere ao tráfico de drogas. Sem lavagem de dinheiro não há movimento no morro, sem compra de armas na fábrica não existe o soldado do tráfico. A seletividade punitiva se orienta pelos padrões de vulnerabilidade, ou seja, as empresas mais débeis, e hoje, depois da invasão do Complexo do Alemão poderia se acrescentar, as mais difíceis de se controlar. Na cidade do Rio de Janeiro o traficante é caracterizado pela tríade preto-pobre-favela.
Deve-se ainda ter em conta que a guerra contra as drogas garante um álibi cômodo para os governos fantoches justificarem a presença militar ianque em seus territórios, particularmente na região amazônica, ainda mais quando se fabrica a figura do “narcoterrorista”, relacionando a luta revolucionária com o tráfico de drogas, permitindo o combate a dois coelhos com o mesmo cajado.