O grande negócio de roubar terras

O grande negócio de roubar terras

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O chamado “jogo sujo” do Banco do Nordeste é tão grave, segundo dizem, que a instituição obriga o produtor a não dizer no cadastro que mora na propriedade rural —isso para facilitar a tomada da terra

Os primeiros meses de 2003 foram de boas chuvas na região, significando um inverno favorável, mas nem por isso o Nordestino deixou de buscar emprego em São Paulo e outros estados do Sudeste. Em Cajazeiras, na Paraíba, o maior sonho da garotada é “crescer e ir para São Paulo”. Todo mundo lá comenta nas famílias — porque é comum, um ou mais parentes que foram, voltaram e deverão ir novamente atrás de trabalho, principalmente nos meses de abril e maio, época do corte de cana no interior paulista.

A quebradeira geral das usinas de açúcar e de álcool da região abriu espaço para a leva de mão de obra barata destinada às empresas paulistas. Intenso é o tráfico de trabalhadores nesses dois meses que coincidem com o final das chuvas na região, quando também já foram embora todas as esperanças do homem do campo em tirar alguma renda do solo nordestino. Os sertanejos chegam das diferentes localidades cajazeirenses, trazidos em caminhões pau-de-arara e embarcam em ônibus das empresas Gontijo, São Geraldo e outras.

Parecem alegres, sob o comando do “gato” (o intermediário, capataz ou atravessador — nome que também se originou da marretagem do “empreiteiro” que fugia com o dinheiro dos trabalhadores) que anuncia “dormida e comida na área de trabalho” (os canaviais paulistas). Até o cigarrinho durante a viagem é fornecido — não se permite bebida alcoólica. Já essa força de trabalho recebe o nome de “safrita” e, durante seis meses, colocará todas as suas faculdades físicas e intelectuais nas mãos dos patrões canavieiros da nova safra de ricos brasileiros. No retorno, lá para outubro, uns poucos trarão algum dinheiro para a compra de moto, principalmente, e é justamente essa significativa máquina, adquirida por alguns, a simbologia que vai determinar o futuro dos jovens.

Para o tesoureiro do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cajazeiras, João Bosco de Oliveira, a grande maioria fica subjugada ao “gato”, enquanto a região “é muito carente”, não tem indústria, e a produção está voltada somente para subsistência, quando o período de chuvas permite.

Mas toda essa vontade de enfrentar o frio do interior paulista em um ambiente de semiprisão, regime de escravidão, talvez seja mais confortante do que as ameaças de assassinato, pistolagem, e outros conflitos comandados pelos senhores da terra — o latifundiário, que tradicionalmente nada produz, mas continua sendo o senhor das terras, o coronel — para não permitir a organização do trabalhador. É a tal história: as oligarquias decaem, mas não se entregam às leis que elas próprias mandam fazer.

Na rodoviária ninguém gosta de falar sobre essa nova maneira de se livrar do excedente de mão-de-obra. Motoristas e funcionários das empresas não entram em detalhes sobre o tráfico de força de trabalho. Com certeza eles sabem que o processo é irregular, criminoso. É o deslocamento de famílias inteiras (e nas mais diversas faixas etárias) que na certa não saem de seu canto para fazer turismo de seis meses em outras terras do trabalho não pago. Vão pelo mesmo motivo das décadas de 40, 50, 60 e 70: construir pontes, viadutos, metrôs, abrir estradas e levantar edifícios no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, porque não tiveram oportunidade na região. O produto de seu trabalho ele não vê no Sul, tampouco no Norte. Nem ele nem todos os brasileiros em terra brasileira. O que ele produz se transforma numa máquina que arranca mais trabalho, que aprofunda e espalha mais fome e desolação.

Tomando as melhores terras

Este quadro, que borra uma das áreas mais férteis e banhadas por importantes bacias (Vale do Rio do Peixe) do semi-árido Nordestino, onde existem investimentos do Dnocs — Departamento Nacional de Obras Contras as Secas -, não é decorrente de um suposto destino paraibano, traçado pelo acaso ou por entidades sobrenaturais. Em todo o Nordeste, notadamente no chamado Polígono das Secas, onde vingou um estilo de políticas públicas, através da Sudene e Finor* — Fundo de Investimento do Nordeste — as oligarquias locais entraram em decadência desde a chegada do novo e todo-poderoso capital desses programas que beneficiaram majoritariamente as empresas adventícias.

A burguesia açucareira perdeu o negócio para os grupos financeiros nacionais e internacionais, para quem os incentivos governamentais foram realmente destinados, e os micros, pequenos e médios produtores sucumbiram afogados na agiotagem dos bancos oficiais, notadamente Banco do Nordeste e Banco do Brasil. A quebradeira, dizem os produtores rurais, é geral. Em épocas passadas o nordestino ia para São Paulo trabalhar na construção civil pelo tempo (curto) que pudesse. Hoje ele é levado como escravo, sem carteira assinada ou quaisquer outras garantias trabalhistas, para atuar em lavouras de regiões diversas que não prosperaram no Nordeste, como a cana-de-açúcar.

O dirigente sindical afirma que a maior luta da entidade hoje “é organizar o trabalhador para a conquista da terra”. Enquanto os trabalhadores rurais sem opção de renda, passando fome, lotam o terminal rodoviário da cidade à espera dos ônibus, os pequenos e médios produtores rurais, reunidos no auditório da Prefeitura Municipal, no dia 9 de maio, sexta-feira, denunciaram as arbitrariedades do Banco do Nordeste na cobrança das dívidas dos produtores. “O Banco do Nordeste está roubando do produtor rural”, diz Mário Antônio Pereira Borba, presidente da Federação da Agricultura e Pecuária da Paraíba. Para cerca de 200 produtores, ele afirma que “é urgente uma organização porque, sem união, não seremos nada… se não nos organizarmos vamos perder a terra”, alerta o presidente.

De acordo com Mário Borba, a crise dos pequenos e médios produtores rurais da Paraíba, cerca de três mil pessoas, se agravou em 1988, com o Plano Cruzado. De lá para cá, todas as Medidas Provisórias com o objetivo de “minimizar” o peso da dívida dos produtores vieram agravar ainda mais os problemas do semi-árido nordestino. O banco, na “hora de negociar as dívidas, pega o principal e o juro, lançando-os no mesmo patamar”. Na opinião do dirigente, isso é uma tática saída da irregularidade para tomar a propriedade do pequeno produtor.

Quem devia R$ 14 mil ao Banco do Nordeste, hoje deve R$ 250 mil. Nos últimos meses, diante das pressões exercidas pela direção das instituições, foram registrados suicídios, casos de derrame e infarto entre devedores dos bancos oficiais — o pequeno e médio produtor de fato. Além desses problemas, juntam-se as questões da aposentadoria, a tal “legislação ambiental” e a situação trabalhista e fundiária, nada resolvidas.

A Federação entrou com 20 ações, uma em cada comarca do Estado, pedindo a suspensão dos cadastros negativos dos tomadores de empréstimo junto aos órgãos de restrições cadastrais. João Mendes Pedroza, presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Cajazeira, lembra que a falta de trabalho na região favorece as empresas de São Paulo. Diz que os “empreiteiros exploram os trabalhadores e que esses saem daqui sem condição, sem nada; é quase um trabalho escravo.”

A seca se apresenta como a motivadora de tudo isso, mas ele fala que os problemas existem por causa das políticas públicas que foram ineficazes. Apesar da área ser considerada rica, as indústrias faliram. Este é o quadro da realidade nordestina que comprova a ineficácia da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e do Finor, que na opinião do dirigente serviu “para desviar dinheiros para os poderosos, as oligarquias”. Segundo o presidente da Federação, o médio produtor rural está arruinado, não tem apoio do governo e isso faz crescer o abandono de fazendas, provocando inchaço nas cidades.

A Sudene só financiou a nata das oligarquias, os que bancavam os políticos, e o Banco do Nordeste só serve para tomar as propriedades dos pequenos. O chamado “jogo sujo” do Banco do Nordeste é tão grave, segundo dizem, que a instituição obriga o produtor a não dizer no cadastro que mora na propriedade rural — isso para facilitar a tomada da terra, denunciam.


*Finor — Criado em 1974, para tornar mais eficaz a canalização de recursos oriundos de incentivos fiscais destinados a financiar o desenvolvimento da região Nordeste e, também, “ser um atrativo para as empresas contribuintes do Imposto de Renda de todo o país”. A administração do Fundo cabe à Sudene.
Em 14 de março de 2000, a Câmara dos Deputados criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a aplicação irregular de Recursos do Finor. Foram constatados desvios de recursos, obras paralisadas e sem manutenção, cujas edificações e equipamentos, em parte aproveitáveis, encontravam-se ociosos e inúmeros projetos cancelados.
Contra os juros escorchantes, nenhuma medida foi adotada. Nos casos de comprovado desvio de recursos, da mesma forma, não se deu outra destinação a esses meios de produção. Os demais camponeses sem terra, com pouca terra, os pequenos e médios proprietários da camada inferior, todos são proibidos de utilizar esses meios de produção que se transformam em propriedade dos bancos. A quem se destina o Finor?
Ao longo das últimas duas décadas, o jornal A Nova Democracia tem se sustentado nos leitores operários, camponeses, estudantes e na intelectualidade progressista. Assim tem mantido inalterada sua linha editorial radicalmente antagônica à imprensa reacionária e vendida aos interesses das classes dominantes e do imperialismo.
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