Aos 80 anos, orgulhoso dos 60 de profissão, Lanfranco Aldo Riccardo Vaselli Cortellini Rossi Rossini — ou simplesmente Lan — é um dos grandes (mesmo!) nomes da imprensa e da caricatura em toda a América Latina. Seu humor emerge triunfalmente da atividade jornalística, com trabalhos publicados nos periódicos mais importantes do Uruguai, da Argentina, do Brasil e da Cuba pós-revolução. |
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Ave Negra, a caricatura de Lan foi a que melhor retratou a personalidade de Carlos Lacerda, que passou a ser conhecido como o corvo. |
Apesar de oficialmente afastado da política desde 1992, quando orientou seus traços para a crítica de costumes, ele se mantém muitíssimo informado. Em entrevista a AND, Lan falou sobre a charge nos dias de hoje, que, segundo ele, "não machuca mais como nos velhos tempos". Também contou passagens da sua vida que se confundem com importantes episódios da História latino-americana. Sobre o atual cenário brasileiro, expôs sua indignação com os escândalos de corrupção e com o que chama de "política financeira do malandro".
Italiano latino-americano
Italiano de nascimento, Lan desembarcou na América do Sul na companhia dos pais quando contava apenas seis anos de idade. Ele veio a tornar-se um cidadão latino-americano orgulhoso de suas múltiplas raízes e das experiências nos três países em que viveu: Uruguai, Argentina e Brasil. No primeiro, descobriu a arte da caricatura, ainda na escola, e marcou sua estréia no humor, em 1945, no jornal El País. Posteriormente, passou também pelo El Mundo Uruguayo. Em 1947, recebeu um convite para trabalhar no Notícias Gráficas de Buenos Aires.
A passagem pela imprensa argentina se deu entre os anos de 1947 e 1952, em pleno peronismo. Exatamente por isso, a crítica ao mundo da política não foi possível.
— Na época, toda a imprensa do país se concentrava nas mãos de Evita Perón. Pouquíssimos jornais mantiveram sua independência, entre eles La Nación de Buenos Aires e La Prensa. Então, apesar da minha intensa atividade na Argentina, não fiz política, porque, como sempre digo, charge a favor não existe. Nenhum chargista, naquele tempo, podia se dedicar à política. Não numa ditadura, e populista que é o pior.
Lan afirma dever à temporada portenha suas maiores lições de jornalismo e relembra o contato com aqueles a quem se refere como "homens que sabiam a essência da profissão".
— Nas redações, a maioria não gostava de Perón. Mas era uma questão de sobrevivência. Como sempre, havia o imperativo de seguir a linha editorial do jornal.
Apesar das restrições, Lan tece elogios aos jornais argentinos que, em sua opinião, estavam à frente de qualquer publicação dos outros paises da América Latina no que se referia à qualidade gráfica:
— Prova disso é que o Samuel Weiner, quando fundou o Última Hora, contratou uma equipe inteira de profissionais argentinos, o que já havia acontecido na Folha Carioca e na Folha de São Paulo.
No último ano, em Buenos Aires, a confissão de um amigo o colocou no centro da história do continente. Naquele 1952, o general Guillermo Carlo Cattaneo, peronista, o procurou para contar que havia sido destituído do governo da Província de Tierra Del Fuego por militares que planejavam derrubar Perón. No entanto, o general pediu segredo, visto que a revelação podia custar-lhe a vida.
— Ele me revelou o nome de cinco generais e do então Ministro da Marinha, todos que, três anos depois, derrubariam Perón, entre eles Rojas e Aramburu. Mas o meu grande dilema se deu quando vim para o Brasil, meses depois, para trabalhar no Última Hora, jornal apoiado por ninguém menos que Getúlio Vargas, amigo de Perón. Eu havia prometido não falar, sob qualquer circunstância, a menos que ele me convocasse. Eu já não estava na Argentina, mas publicar essa notícia resultaria em sérios riscos para Cattaneo e sua família. Repara na importância disso! Como jornalista falhei, mas me mantive fiel à palavra empenhada a um amigo. Moralmente não me sinto culpado, mas profissionalmente sim.
Brasil e revolução
Depois de aceitar uma proposta de Samuel Wainer para trabalhar no Última Hora, Lan pôde, finalmente, fazer caricaturas de cunho político. Pudera: o jornal pró-Getúlio Vargas encontrava em Carlos Lacerda uma fonte inesgotável de inspiração para os mais diversos ataques. Em contrapartida, no UH a imagem de Vargas permanecia intocada.
É dos tempos de UH a célebre charge em que Lacerda é retratado como corvo.
Sobre o desenho, Lan confessa:
— De todos os desenhos que fiz de imprensa, o pior de todos, tecnicamente, é aquele corvo. Fiz com pressa porque estava atrasado para um encontro com uma mulata. Quando vi na banca, no dia seguinte, pensei: ‘eu fiz essa porcaria'! Chegando, estavam lá Samuel Wainer com Danton Coelho, o então presidente do PTB. O Samuel me chamou, me apresentou ao Danton Coelho. Ele, por sua vez, me abraçou e disse: "Você, garoto, fez um trabalho de uma profundidade psicológica incrível. Você, em quatro traços, desencavou a alma torva daquele filho da … ". E eu pensei: "Meu Deus do céu, salve a mulata! Depois do sucesso, veio uma seqüência de desenhos que traziam o tal corvo.
Causaram tanto impacto que Lacerda precisou se defender contra-atacando, como lembra Lan:
— Ele me chamava de "espanhol safado". Dizia que só mesmo um estrangeiro usaria numa charge a figura de um corvo, pois não se tratava de um pássaro nacional. Depois fez um discurso explorando o corvo como símbolo da lealdade. Mas quando o Carlos Lacerda se candidatou ao governo da Guanabara, ele me pediu, por intermédio de seu assessor de campanha, para criar um símbolo positivo. Eu respondi: "lamento muito, mas não há dinheiro que pague a minha ética". Depois do corvo, não podia fazer um colibri!
O envolvimento de Lan com a política extrapolou os traços do papel e tocou outras dimensões. Em 1957, planejou juntar-se a Fidel Castro em Sierra Maestra. O líder da Revolução cubana já havia atraído a atenção do cartunista por conta de sua autodefesa nos tribunais de Havana, por meio do discurso A história me absolverá. A oportunidade de lutar com o exército castrista veio quando Lan hospedou em sua casa, no Rio de Janeiro, um jornalista peronista, exilado político, amigo de Che Guevara. A desistência veio porque Lan se apaixonou e, logo, desposou Olívia, com quem é casado há mais de 40 anos.
Sobre o Che, Lan não se cansa de citá-lo. Pudera: o cartunista se recorda com satisfação de alguns momentos em que "esbarrou-se" com o herói revolucionário. A primeira vez, ainda em Buenos Aires, deu-se no início da década de 50, quando o jovem Ernesto Guevara partiu para sua aventura pela América Latina, de motocicleta e, buscando divulgação de sua empreitada, entrou na redação de Mundo Desportivo, onde Lan trabalhava na época.
O episódio é contado no filme do diretor brasileiro Walter Salles, Diários de Motocicleta. Mas o que o próprio cineasta desconhece é que o autor da nota sobre a viagem, publicada no jornal argentino, foi Lan. Este, por sua vez, mostrou-se surpreso quando, durante esta entrevista, soube que o momento fora relatado na obra cinematográfica, sem, no entanto, que houvesse qualquer menção a respeito da identidade (até agora desconhecida) do jornalista que escrevera a matéria.
Lan conta orgulhoso que, em 1962, tomou conhecimento, por intermédio de um assessor de Che Guevara que este, agora ministro em Cuba, em seu gabinete possuía o original de uma caricatura feita por ele. Isso porque, em 1961, Lan foi um dos fundadores da filial de Prensa Latina, no Rio de Janeiro. Por meio da agência de notícias da Revolução Cubana, charges, caricaturas e notas jornalísticas de sua autoria tornaram-se conhecidas, pois eram publicadas no jornal La Revolución, de Havana.
Entre as afinidades com "los hermanos", constava também a até hoje incurável aversão aos ianques. Ele considera George W. Bush "um idiota obcecado com o poder" e, irônico, afirma que, do que vem dos Estados Unidos, só sente admiração pelo jazz e pela Máfia:
— É que na América Latina nós não tínhamos a Cosa Nostra, que só recentemente foi criada pelo Zé Dirceu…
Ditadura e exílio
Em 1964, foi publicada no Jornal do Brasil uma charge que lhe rendeu o exílio de três anos na Europa. No desenho, um general quatro-estrelas se olhava em um espelho e, no reflexo, via no uniforme a imagem de quatro bananas. Na semana que se seguiu, ocorreu o golpe. Pouco tempo depois, o Cônsul Geral da Itália no Rio de Janeiro aconselhou Lan a deixar o país, visto que militares haviam batido à porta do consulado para obter informações a seu respeito.
Durante o período em que viveu na Europa, dois anos em Roma e um em Paris, seu sentimento pela América Latina o fez tomar decisões radicais. Em 64, assim que chegou a Roma, esteve com o Ministro das Relações Exteriores, que escreveu uma carta de recomendação para um dos maiores editores da Europa na época. Ao entregar a carta a Lan, o Ministro o aconselhou a não mencionar que vinha da América Latina, já que, profissionalmente, valorizava-se muito mais as experiências em terras ianques. Lan conta que não pensou duas vezes:
— Fiquei tão irritado que saí da sala do camarada, rasguei a carta de recomendação e joguei na escarradeira. Não perdoei esse desrespeito, ainda mais vindo de um político que se dizia socialista. O que mais me indignava era que até os socialistas, na Itália, estavam deslumbrados com os Estados Unidos.
Exposição: Un porteño carioca, em Buenos Aires, fevereiro de 2005
Indignação com os atuais
— Eu precisava de um jornal para publicar tudo o que gostaria. Até porque, a essa altura da vida, nada me atinge, son los derechos de la ancianidad. Venho acompanhando a política brasileira, nesses 54 anos que vivo aqui. Tenho visto políticos brilhantes, concordando ou não com as posições deles, e sei que antes não havia esse baixo nível que presenciamos hoje, principalmente na Câmara dos Deputados.
Sobre Lula, é com distanciamento — afinal, nunca manteve relações com o presidente — e lamenta por toda a decepção que os brasileiros vêm acumulando desde o primeiro ano de mandato.
— Acho que o Lula queria viajar. Resolveu fazer relações públicas, por isso se mete naquele aviãozinho esperto com a mulher e se afasta do Brasil a cada vez que explode uma crise capaz de comprometê-lo.
Sobre as CPIs instauradas, ele não poupa críticas à gente como José Dirceu — que deveria receber o "Prêmio Nobel de Caradurismo" — e José Genoíno, que "pelo menos teve a decência de sumir".
— Para quem, como eu, já viveu ditaduras e presenciou o processo como elas iniciaram, parece claro que o PT pretendia se perpetuar no poder, de uma maneira ainda mais sórdida, porque com o discurso da democracia. Para o povo fica a impressão geral de que o Congresso, como um todo, é um antro de ladrões e de safados. Acho que a única saída dos políticos decentes é levar tudo isso até o último termo, ainda que atinja o Lula. Como é que o presidente da República desconhece o que está acontecendo no quarto ao lado, ignora essa dinheirama correndo, inclusive para a campanha dele, e depois ainda vai para Paris dizer que "caixa 2" no Brasil é coisa normal? Isso é uma desmoralização para o país! Ele precisava calar a boca, deveriam colocar uma legenda na frente dele, cada vez que fizesse discurso, para não ficar dizendo besteira.
Futuro da charge
No Rio de Janeiro de 1962, apenas Lan e Hilde Weber (esta última, da Tribuna da Imprensa), dedicavam seus traços ao mundo da política. É com a autoridade adquirida ao longo de tantos anos que analisa as charges da atualidade. Ele, que diz sempre ter "mandado bala", afirma que, hoje em dia, a charge já não surte o mesmo efeito de antigamente.
Considerando-se um tipo de "pai" de muitos caricaturistas no Brasil, diz que sempre aconselhou os mais jovens a não esquecerem que o profissional dessa área "é uma metralhadora giratória e precisa atingir a todo mundo". Ele afirma que fazer charge, hoje, se transformou em uma brincadeirinha que não leva à reflexão e considera-se o único profissional que nunca "livrou a cara do Lula".
— Na minha opinião, todos os outros caricaturistas maneiravam com o "barbudinho simpático", que de simpatia não tinha nada. Esse negócio de "Lulinha paz e amor" é criação do Duda Mendonça. Pela simpatia que os caricaturistas nutriam por suas idéias, deixaram de fazer críticas, por vezes merecidas. Eu sempre dei na cabeça de todo mundo.
Ainda sobre o efeito que a charge provocava antigamente, Lan considera que a crítica dissipou-se por conta das tantas transformações, nem sempre positivas, ocorridas na sociedade.
— Não existe mais um sentimento popular. Há anos estamos num "chove-não-molha". Hoje é difícil falar em uma política revolucionária, um projeto de nação. O que temos, aqui no Brasil, é um presidente que fica contando vantagem e viajando pelo mundo inteiro. De vez em quando chegam elogios do Fundo Monetário Internacional. Aí, pode contar que nós estamos ferrados. As políticas atuais não incrementaram nada nesse país. O que presenciamos é a política financeira do malandro.