Depois da longa experiência latino-americana com presidentes “progres” (ganhar eleições como “esquerda” e governar como a “direita”) Evo Morales já não surpreende e só se parece com uma página a mais do manual iniciado pelos Lula, Kirchner, Tabaré e companhia.
É mais, Evo Morales é um produto tardio da mesma matriz que chega ao estrelato sem surpreender ninguém, nem sequer a seu eventual usufrutuário e protetor, o Império ianque, que ontem lhe enviou uma felicitação com todo o calor de uma geleira.
O primeiro ato do “indígena” (assim chamado pelo conjunto da imprensa internacional) foi — como é usual em cada turno de começo “progres” — tranquilizar ao establishment a sociedade “branca”, dizendo que não tocará na propriedade privada nem expropriará as empresas petroleiras.
Na verdade, nada mais longínquo do pensamento do establishment boliviano e da própria embaixada ianque do que a idéia de que Evo Morales, um claudicante estatístico com o poder, um boicotador constante dos processos de luta construídos pelos “combativos” (que o consideram um “traídor”) possa tocar em uma só moeda da oligarquia ou das multinacionais.
O rol de Evo Morales na estratégia e nos planos imediatos do Departamento de Estado para quebrar o protesto social e restabelecer a “ordem democrática” do domínio petroleiro na Bolívia é tão evidente, tão estatístico e demonstrável, que seria óbvio explicá-lo.
Para os setores populares que conduzem o protesto e as lutas de rua, sempre esteve claro que, cedo ou tarde, a CIA e o Departamento de Estado iam jogar Evo Morales como “cavalo de Tróia” para dividir o setor combativo do setor reformista, quebrando a unidade do protesto social.
Imitando o “irmão maior
É neste ponto onde a figura pública de Morales (construída pelo aparato midiático do sistema) se familiariza com o brasileiro Lula, a quem o Departamento de Estado e Condolezza Rice elogiam como representante da “esquerda democrática”.
O chamado líder cocalero (muito além da “lenda negra” que os vermes e falcões do Departamento de Estado e da máfia cubano-americana divulgam sobre ele) é um dirigente político arrivista, que é precisamente um antípoda de um “revolucionário”.
Como será verificado quando iniciar a sua gestão, Morales nem sequer se encaixa nos moldes da romântica visão “progressista” que têm dele as ONGs e a esquerda latino-americana “civilizada”, que cerra fileiras ao redor de Lula, Chávez, Kirchner e Fidel.
Por outro lado, são públicos os ditos dos funcionários de Washington (desde Bush para baixo) admitindo que a “esquerda democrática” é tão viável e “amiga” como a direita neo-liberal no esquema de domínio “democrático” que a Casa Branca tem desenhado para a América Latina.
Diferenciar a “esquerda democrática” (que não apresenta conflitos nem se enfrenta com Washington) da esquerda combativa (que gera conflitos e se opõe ao domínio de Washington) tem sido uma tática permanente por meio da qual o Departamento de Estado impôs o estilo de presidentes que “falam com a esquerda”, mas “executam com a direita” os programas do FMI e as estratégias de Washington na região.
Os setores combativos bolivianos dizem que Morales governará ao estilo de Lula (a quem chama constantemente de “seu irmão maior”), provido de gande artilharia verbal “anti-Bush” e anti-USA, mas respeitando e defendendo custe o que custar os interesses dos bancos e das trasnacionais e acatando as diretivas estratégicas regionais de Washington e do Departamento de Estado.
Nada novo: é o que fazem Kirchner, Lula, Tabaré, e o que seguramente farão os próximos “progres” que seguirem Morales na senda das urnas e das eleições periódicas para legitimar administrações dóceis a Washington e ao poder econômico.
Morales (sem as luzes nem o dinamismo do resto de seus confrades do mesmo naipe) aplicará, sem surpresas, as arquiconhecidas receitas progressistas de sempre: esgrimirá a bandeira “antiimperialista” no discurso e nos fatos aplicará os programas econômicos, a legislação e as medidas de governo funcionais aos interesses dos bancos e petroleiras que dividem a bolívia como um campo de caça.
O próprio Morales (emulando seu “irmão maior” Lula) já deixou claro que governará com as mesmas políticas e leis neoliberais que regem a Bolívia desde 1985, respeitando a propriedade privada, os investimentos estrangeiros, e os multimilionários negócios dos petroleiros e das empresas de serviços que controlam o setor econômico produtivo e os recursos naturais da Bolívia.
“Tranquilizar “os mercados
Nessa linha, consagrado pela imprensa internacional como o virtual “presidente da Bolívia”, Morales saiu a tranquilizar os “mercados”: “Vamos exercer o direito de propriedade sobre os hidrocarbonetos como qualquer Estado pode fazer. Isto não significa conquistar nem expropriar bens das transnacionais”, disse, para tirar as dúvidas de quem estivesse pensando o contrário.
Nada novo. Os setores combativos da Bolívia vinham advertindo que ao contrário de nacionalizar o setor energético e de resgatar os 100 bilhões de dólares de reservas que estão nas mãos das transnacionais, Morales e o MAS estão prontos para negociar e legalizar os contratos petroleiros com o amparo da nova lei petroleira.
Isto implica, segundo a COB boliviana, indenizar as transnacionais pelas perdas e/ou danos econômicos que tenham ao adequar-se à nova lei, que aumenta ligeiramente os tributos e as obrigações das petroleiras.
A esquerda boliviana e os setores combativos (que já têm o crédito da derrocada de Sanchez de Lozada e de seu pálido delfim, Carlos Mesa) sabem que os objetivos apresentados por Morales e seu grupo estão do lado oposto dos reclamos populares que guiam os protestos e bloqueios de estradas.
É muito fácil de explicar: a COB e os combativos apresentam como prioridade essencial terminar já com o reinado explorador das petroleiras multinacionais que sangram a Bolívia e catapultar seus gerentes políticos do parlamento e do governo.
Evo Morales, em troca, prioriza o salvamento das “instituições democráticas” (tradicional bastião de domínio oligárquico), como primeiro passo para salvar a Bolívia da “violência”.
A violência, neste caso, são as massas empobrecidas que reclamam e protestam nas ruas, com o que a oposição de Evo Morales (salvo a “tinta antiimperialista” formal que lhe põe o discurso) não difere da postura do establishment oligárquico para o qual as mobilizações populares são uma expressão de “terrorismo” organizado na rua.
Se hoje o Departamento de Estado e a CIA não contassem com a “alternativa Evo Morales”, não lhes restaria outra saída que dar luz verde à repressão dos protestos sociais e o encarceramento de dirigentes que quebrariam o perfil democrático de domínio que vêm mantendo há duas décadas na América Latina.
A “opção democrática”
Em pleno processo de bloqueios de estradas e mobilizações populares de junho, a imprensa e analistas bolivianos falavam de uma fratura no exército, entre o setor moderado, que propiciava uma “saída pacífica” (influenciada pela Igreja) e a loja militar que se inclinava pela repressão violenta, inclusive o golpe de Estado.
Essa guerra foi dirimida com a derrota do senador Vaca Diez (cabeça visível dos falcões golpistas), que teve que se resignar a que a embaixada ianque impusesse um “moderado”, o atual presidente Rodriguez (assessor jurídico da embaixada) a frente do processo “democratizante” com o qual se paralisou as marchas combativas de El Alto.
E essa jogada em favor da “saída democrática” se explicava porque, na presente conjuntura, o Departamento de Estado ianque prioriza (por razões de estratégia continental) a “saída sem repressão”, apresentada pelos moderados, já que sua política de domínio na região se vertebra com governos democráticos e partidos políticos com representação parlamentar, dif erente do sistema de domínio com ditaduras militares de 30 anos atrás. Desta maneira, e como já está demonstrado, a embaixada do USA na Bolívia lançou mão da “solução democrática”, com a dissolução do conflito por meio do “divisionismo” e com Evo Morales atuando como aríete para separar os “moderados” dos “violentos”, debilitando o movimento de protestos e desarticulando as conduções combativas que marcaram o ritmo dos protestos de maio e junho.
Em pleno conflito de junho a CIA e suas usinas midiáticas estavam fabricando Morales como “alternativa eleitoral de esquerda”, para projetá-lo como um presidente falsamente “opositor” ao establishment, em substituição aos desgastados gerentes procedentes do campo neo-liberal.
Este projeto contava com que Evo Morales, em caso de ser candidato presidencial, ganharia as eleições por duas razões concretas:
A A direita política está “dividida” e não tem líderes prestigiados e aglutinadores que possam impor-se por maioria na contenda eleitoral;
BO perfil de “esquerda moderada e democrática” de Morales (“bem maquiado e apresentado” pelo monopólio midiático local e internacional) podia perfeitamente captar votos tanto dos setores populares como das classes médias que o vêem como um “esquerdista civilizado e democrático”, que poderia “conter” (por proceder do mesmo setor) a “esquerda terrorista e antidemocrática” que periodicamente corta estradas e paralisa a Bolívia com protestos.
Este é o ponto central pelo qual surgiu e se impôs a opção “Evo Morales” entre os setores mais “moderados” do Departamento de Estado e do establishment de poder boliviano.
O conflito com os protestos populares violentos na Bolívia é uma questão de sobrevivência do poder capitalista (tanto local como regional) e o USA, a potência dominante, deve ordenar o processo econômico, político e social da Bolívia para evitar um efeito dominó de rebeldias populares na região.
O Império ianque (assim como o sistema capitalista que se move sob sua proteção, tanto na Bolívia como em qualquer outra parte) atua com lógica pragmática: se falha o controle social por meio das instituições democráticas, se ativam os mecanismos de controle político e social por meio das forças militares.
Todavia, não há estatísticas no mundo de que o Império capitalista (ou qualquer outro império na história) tenha entregado pacificamente o poder aos movimentos revolucionários, por mais legítimos e justos que fossem seus reclamos.
O Império ianque não atua por emoções, mas por lógica pragmática de domínio.
E aí está Evo Morales (um “líder esquerdista” como o define o The New York Times) para demonstrar que em sua estratégia regional o USA utiliza alternativamente a “direita” e a “esquerda” para controlar a região e ordenar “democraticamente” para que as transnacionais e os bancos operem seus negócios em “paz”, sem greves, mobilizações ou bloqueios de estradas.
Só há um mistério a revelar: quanto vai durar Evo Morales na “gerência boliviana” a partir do momento em que os setores combativos comecem a lançar suas novas “guerras populares” para expulsar as petroleiras do controle das riquezas da Bolívia?