O indomável povo peruano

O indomável povo peruano

A jornalista Rosana Bond — que nos anos 80, foi a primeira repórter da América a conseguir entrevistar os guerrilheiros do Partido Comunista do Peru (PCP) — acaba de lançar, com palestras no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Rondônia, Acre, Paraná e Santa Catarina o livro Peru: do império dos incas ao império da cocaína. Publicado pela Coedita, ele abre um amplo leque sobre a história daquele país, trazendo informações inovadoras e de bastidores, desde o império incaico até os dias atuais. Apesar do título, segundo a autora, não houve no trabalho a pretensão de traçar uma história geral do Peru.

— Bem mais singelo, o objetivo foi retratar alguns episódios históricos homenageando o povo peruano, de origem majoritariamente camponesa, e suas incansáveis batalhas de resistência ao opressor. Seja ele o conquistador espanhol de ontem ou o tirano engravatado de hoje. Visei enfocar a engenhosidade, a criatividade, a sabedoria e, principalmente, o espírito de luta e de superação de uma gente obstinada em busca da vitória contra inimigos terríveis.

Em suas 432 páginas, a obra apresenta desde fatos pouco conhecidos sobre os incas, obtidos de escritores índios e mestiços dos séculos 16 e 17, até revelações praticamente inéditas sobre a guerra popular do Partido Comunista do Peru (o chamado Sendero Luminoso).

Reproduzimos, abaixo, alguns trechos do livro:

Quarenta anos de resistência

Pizarro e Almagro, após a execução de Atahualpa, ungiram um soberano fantoche — Túpac Hualpa, outro filho de Huayna Cápac (…) Decidiram usar o rapaz para uma entrada triunfal em Cuzco. Hualpa morreu no caminho, de causa não esclarecida, mas os invasores não tiveram problemas: em 15 de novembro de 1533, os nobres cuzquenhos os receberam como heróis na capital. A boa acolhida não impediu, no entanto, que os castelhanos cometessem todos os tipos de abusos e saqueassem a cidade sagrada.

“Forcejando, lutando entre si, cada qual procurando levar a parte do leão do tesouro, os soldados, com camisa de malha, pisoteavam jóias e imagens, martelavam os utensílios de ouro para reduzí-los a um formato mais fácil e manejável…”, descreve Miguel León-Portilla, em El reverso de la Conquista – relaciones aztecas, mayas e incas.

Para governar mais facilmente, os espanhóis decidiram coroar como Inca, Manco 2º, outro filho de Huayna. Apesar de tutelado pelos brancos, Manco rebelou-se e criou um estado neo-inca em Vilcabamba, na vertente oriental dos Andes.

A luta se alongou no tempo, até 1572, com Manco sendo sucedido por Sayri Túpac, Titu Cusi e Túpac Amaru. À exceção dos índios mapuches, do Chile, os incas foram o único povo pré-colombiano que, frente aos castelhanos, manteve-se em pé de guerra durante quase 40 anos!

Feitiço contra o feiticeiro

Apesar de terem dominado os incas, a história dos conquistadores do Peru não teve propriamente um final feliz.

Os personagens principais — Pizarro, Almagro e o frei Vicente de Valverde—por exemplo, não tiveram muito tempo para usufruir o ouro e a prata obtidos a ferro e fogo dos filhos do sol. Depois de uma série de conflitos armados entre eles, Pizarro condenou Almagro à morte por degolamento em 1538. Em 1541, por sua vez, o próprio Pizarro foi assassinado por um dos filhos de Almagro. O padre Valverde (…) acabou sendo torturado, morto e comido pelos índios de Puná, também em 1541.

A Espanha também não pôde usar as imensas riquezas arrancadas do Peru e de outros povos indígenas da América. Embora seus portos tenham recebido, entre 1503 e 1660, nada menos que 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de prata — o triplo de todas as reservas européias na época —Castela ficou com uma parte insignificante do botim, pois estava afundada em dívidas.

A Espanha tinha a vaca, mas eram outros os que bebiam o leite, Eduardo Galeano em As veias abertas da América Latina . Os carregamentos de metal americano, tão logo desembarcavam na Europa, eram destinados aos credores da Coroa: banqueiros e usurários europeus, como os Függer, Welser e Shetz. Segundo Galeano, os Grimaldi, de Mônaco, também ficaram com boa parte da fortuna inca. A família Grimaldi, que hoje promove corridas de Fórmula-1 e à qual pertencem os nomes famosos do príncipe Rainier, da ex-atriz Grace Kelly e das princesas Caroline e Stéfanie, tinha negócios com Carlos 1º, da Espanha (ou Carlos 5º, do Sacro Império Romano) desde 1525.

Riquezas incas para o capitalismo

O ouro, a prata e os outros metais da América Latina, ao invés de promoverem o bem-estar do próprio continente, acabaram por sustentar o desenvolvimento da Europa. “Nem sequer os efeitos da conquista dos tesouros persas (…) poderiam comparar-se com a magnitude desta formidável contribuição da América para o progresso alheio”, observa Galeano.

Os povos americanos foram descobertos, conquistados e colonizados dentro do processo de expansão do capitalismo comercial. E o saqueio das riquezas indígenas foi o fator mais importante para a acumulação primitiva de capitais pela Europa, possibilitando o primeiro passo para o surgimento de uma nova etapa na economia mundial, a chamada revolução industrial.

O combate final

Outro modo de resistência, que se relaciona com o que foi dito acima, é o mito. Um deles é a história de Inkarrí. Simboliza o retorno do estado de bem-estar representado pelo Tahuantinsuyo. Os indígenas andinos crêem que Atahualpa (Inka Rei ou Inkarrí) está embaixo da terra esperando o momento certo de ressuscitar.

Segundo José Maria Arguedas, esse mito prega que “Inkarrí, decapitado pelo rei espanhol, está se reconstituindo da cabeça para baixo e quando estiver completo saltará para fora do mundo. Neste dia se dará o juízo final.”

(…) O índio maltrapilho que se encontra nas praças de Lima ou nas esquinas de Cuzco, aparentemente conformado e impotente, guarda em si um revolucionário. Acredita nas idéias que o impulsionam à luta. E crê também na profecia que Atahualpa teria feito antes de ser sacrificado na praça de Cajamarca: “Quando meus filhos sejam capazes de enfrentar os inimigos, então meu corpo divino se juntará e sairá da terra para o combate final”.

Dançando com o Sendero

Depois do almoço ficamos por alí descansando, tomando sol, falando um pouco sobre o Brasil. De repente ouvi um som familiar, uma canção andina de que gostava muito. “Poco…poco a poco me has querido poco a poco me has amado…”

Pensei que tinham ligado um rádio. Mas não.

— Vamos lá, companheira, os muchachos estão tocando. Fomos. Uns 20 guerrilheiros armados com zampoñas velhas, violões com cordas faltando, charanguitos remendados e um bombo leguero com o couro meio frouxo, ocupavam o palco à beira-mar.

— Sabes dançar a lo peruano? — alguém me perguntou. Dei uma gargalhada:

— Eu?! Muito mal, samba.

Então aquilo virou uma folia. Diversas pessoas foram dançar no palco para que eu aprendesse. Outras cantavam junto e batiam palmas. Animado com a bagunça, o mascote dos prisioneiros, o cachorrinho vira-lata Puka (Vermelho, em quêchua) latia e abanava o rabo.

Alguém me puxou pela mão e me colocou no palco com todo mundo. Não me saí muito mal, mas não conseguia parar de rir. Nem eles.

Dentro do Pavilhão Azul

No meio da tarde, Pedro e José me convidaram para conhecer o alojamento dos presos, o Pavilhão Azul, que um ano mais tarde se tranformaria em ruínas devido ao bombardeio. Era retangular, talvez uns 10 m X por 30 m, e tinha dois andares. Na parte externa do prédio, a imensa bandeira vermelha que eu vira do mar continuava hasteada. E a pixação na parede, impossível de ser ignorada: “La Rebelión se Justifica!”.

Entramos. No térreo, ao lado direito da entrada, estavam os “banheiros”: não passavam de buracos no chão que serviam como latrinas e dois canos de metal subindo pela parede, eternamente secos, que um dia eram para ter sido chuveiros.

A seguir vinha um grande salão, sem celas. O aspecto do conjunto era miserável. Mas tudo era mantido imaculadamente limpo pelos senderistas.

No salão do térreo uma sequência numerosa de beliches, nos dois lados, formava um corredor no meio. Atravessamos por ele. No outro extremo, demos de cara com uma parede onde estavam penduradas fotografias de Marx, Lênin e Mao. Abaixo delas os detidos haviam reservado um espaço com uma mesa. Ali eles realizavam suas assembléias e davam aulas.

No andar superior, onde igualmente haviam filas de camas (…) funcionavam a cozinha, a biblioteca, a enfermaria e a oficina de artesanato.

Deixamos o pavilhão e saímos ao pátio.

De dentro da torre que um dia servira como sentinela saía o canto de uma mulher indía. Era um lamento cantado em quêchua. Uma quena (flauta) chorava junto com a senhora. Pedro traduziu: ” Ela está dizendo que seu marido está desaparecido desde 1983. Conta que desde aquela época anda lhe procurando por todos os lados e que nem aqui conseguiu encontrá-lo”.

Como num ritual

Entramos silenciosamente na guarita. No quadrado apertado, úmido, com grossas paredes de pedra tomadas por musgos e capim, havia pouquíssima luz.

No chão de terra batida bailavam mulheres e homens índios. Era uma dança triste, dolorosa, com raros gestos, quase só os pés se moviam. As cabeças baixas, concentradas na voz que narrava a sua tragédia.

Fiquei perto da entrada, encolhida, para não incomodar. Senti-me como uma intrusa num ritual religioso.

Mas minha presença logo foi notada. E então rapidamente o clima mudou.

A quena começou a tocar uma musiquinha brejeira. Formaram um círculo, deram-se as mãos e timidamente me convidaram a participar. Pedro e José me incentivaram a entrar na ciranda, fazendo sinais com a cabeça.

Todos os senderistas e seus parentes que estavam alí na torre eram dos Andes e, seguramente, camponeses. Mãos calosas tomaram as minhas e, com doçura, me ensinaram os passos.

As mulheres e os homens da roda me sorriam de um modo cândido. Não saberia defini-lo bem, era uma espécie de santidade, talvez a mesma que surpreendi algumas vezes em índios brasileiros, quando os visitei em suas aldeias. Os que não estavam dançando ficaram ao redor, batendo palmas. Mas igualmente pareciam crianças envergonhadas que me olhavam com curiosidade. Poucas vezes me senti mais feliz.

Deu nos jornais

Um percurso que começa na civilização Inca, passa pela ação do grupo Sendero Luminoso e chega ao governo de Alberto Fujimori compõe o livro Peru: do império dos incas ao império da cocaína, que a jornalista Rosana Bond está lançando pela editora Coedita. (O Tempo, Belo Horizonte, 3 de julho de 2004)

A autora tem trajetória marcante na imprensa nacional. O livro mostra a realidade peruana sem máscaras e provoca o questionamento nos leitores brasileiros.
(A Notícia, Joinville, 29 de julho de 2004)

A obra é fruto de intensa pesquisa e investigação.
(Diário Catarinense, Florianópolis, 29 de julho de 2004)

A jornalista investigou a fundo e trouxe à tona informações muitas vezes abafadas pelas autoridades e muitas vezes manipuladas pela imprensa sobre o Peru do governo do presidente Alberto Fujimori.
(Diário de Pernambuco, Recife, 17 de setembro de 2004)

O livro revela que o Sendero Luminoso (Partido Comunista do Peru) continua vivo e hoje é comandado por mulheres.
(O Rio Branco, Rio Branco, 6 de outubro de 2004)

A jornalista brasileira fez um dossiê sobre Fujimori e a guerrilha do Sendero Luminoso.
(Correio da Paraíba, João Pessoa, 19 de setembro de 2004)

O livro desnuda questões políticas que fizeram a história do Peru.
(Tribuna do Norte, Natal, 21 de setembro de 2004)

A obra apresenta a história do Peru, trazendo informações inovadoras e de bastidores desde o império incaico até os dias atuais.
(Jornal do Estado, Cuiabá, 28 de setembro de 2004)

A repórter colheu informações importantes. Uma delas foi a de que a primeira eleição de Fujimori teve financiamento dos traficantes do cartel de Medellín.
(Diário de Natal, Natal, 21 de setembro de 2004)

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