O Jongo vai ao teatro

O Jongo vai ao teatro


Mestre Darcy, criador do grupo Jongo da Serrinha

Apesar da pouca divulgação, um público animado lotou no mês de julho o Teatro Carlos Gomes para assistir ao emocionante espetáculo do Jongo da Serrinha, grupo que, surgido em fins da década de 50, resiste à massificação cultural e promove verdadeiras celebrações à cultura afro-brasileira. Mais de duzentos "excedentes", em média, faziam o caminho de volta pela Praça Tiradentes, porque inadvertidamente não haviam chegado uma ou duas horas antes à bilheteria do Teatro. Por toda a temporada do Jongo da Serrinha, o Carlos Gomes foi casa cheia.

O show é apresentado tanto pelo pessoal da velha guarda, quanto por crianças e jovens, dividido em três partes. Na primeira, dedicada ao jongo, propriamente dito, foram entoadas belíssimas canções de roda, muitas delas cantadas por Tia Maria do Jongo, jongueira de 82 anos nascida no morro da Serrinha. Músicas do folclore angolano primitivo, desconhecidas do grande público, desfilam num segundo momento, e uma dose de samba de raiz finalizou o repertório, convidando as pessoas a se levantarem e a entrar na dança.

"Tentamos juntar nesse espetáculo todas as referências musicais da cultura afro-carioca", esclarece Dyonne Boy, coordenadora de projetos sociais do grupo.

O trabalho desenvolvido na Serrinha, no entanto, não se restringe apenas a esse resgate musical, mas se desloca, desde o nascimento do projeto, para as mais diversas áreas.

A história

O jongo foi trazido para o Brasil pelos negros de origem banto e se estabeleceu, na região do Vale do Paraíba, como uma forma dos escravos se alienarem de sua condição. Por não possuir um caráter totalmente religioso, o ritmo era tolerado pelos senhores, sendo praticado dentro das senzalas regularmente.

O fim da escravidão trouxe um grande contingente de ex-escravos para a capital do país, o Rio de Janeiro. Sem quaisquer perspectivas, a população pobre se viu obrigada, no bojo da especulação imobiliária, a rumar para o alto dos morros. Nasciam as primeiras favelas da cidade, bem como se delineavam os primeiros redutos de jongueiros: São Carlos, Mangueira, Salgueiro e Serrinha.

A partir do advento da vida moderna, a existência do jongo ficou severamente comprometida. Aquela espécie de ritmo, dançado em roda nos quintais das casas, cedia espaço para os novos hábitos de convivência, e o encontro entre as pessoas, elemento primordial do jongo, se tornava cada vez mais raro. Além disso, por ser praticado apenas por velhos, era natural que, com o passar dos tempos, o rito desaparecesse, pois não havia como deixá-lo aos mais novos ou assegurar a sua preservação. De acordo com Dyonne, não fossem as características peculiares da Serrinha, muito do que se conhece do jongo teria certamente se extinguido.

"A Serrinha ficava isolada da parte central da cidade. Todas as outras favelas se localizavam perto do centro, do porto, enquanto a Serrinha ficava em Madureira. Era longe, no último ponto da linha do trem, e era rural, na época", explica.

O samba pede passagem

O samba tomava o lugar do jongo na preferência dos morros cariocas, se instaurando, com as escolas de samba e as rodas, definitivamente na vida dos moradores.

"O Jongo é considerado o pai do samba, já que o samba também foi se desenvolvendo nessas comunidades. Alguns teóricos dizem que ele é uma junção da herança européia, que são as harmonias, o violão e o cavaquinho, com o batuque, com a coisa do escravo, do terreiro, da roda, da palma. Quando surgiu, o samba passou a dominar, a se popularizar. Isso, porque o chorinho e o samba penetravam tanto na alta sociedade quanto nos bairros mais populares. E o Jongo não, era uma coisa característica dos escravos", coloca Dyonne.

Hoje, a Serrinha guarda uma tradição de música e de cultura popular muito forte. Além da Escola de Samba Império Serrano ter sido fundada lá, músicos como D. Ivone Lara e Silas de Oliveira são crias do morro.

O Jongo da Serrinha

A figura emblemática do Mestre Darcy do Jongo, morador da Serrinha e filho da Vovó Maria Joana Rezadeira – célebre mãe de santo da época -, percebendo que toda uma cultura poderia se perder, tratou rapidamente de colocar o trem daquele belo legado nos eixos.

"O mestre Darcy do Jongo era um músico genial, talentosíssimo. Ele entendeu que uma forma do jongo continuar sendo preservado e divulgado seria ensiná-lo para as crianças, incluindo-as nas rodas, transformando, em seguida, aquela roda num show. Assim, ele transformou a prática que acontecia informalmente nos quintais e nos terreiros num espetáculo. Criou harmonias, músicas (com começo, meio e fim) e inseriu as crianças na festa", conta Dyonne.

Nascia, assim, o grupo Jongo da Serrinha que, sob a liderança do Mestre Darcy, passou a difundir a música, fazendo apresentações no Brasil e no exterior — sem deixar de lado a problemática social vivida na comunidade.

O projeto social

No ano 2000, como existia uma preocupação com o desenvolvimento pessoal das crianças que viviam na Serrinha, foi criado o Grupo Cultural Jongo da Serrinha. A coordenadora de projetos sociais, Dyonne Boy, explica:

"Fundamos grupo em 2000 com o objetivo de preservar o Jongo, criar ações e políticas públicas, e incentivos de preservação do Jongo como patrimônio imaterial. Além disso, temos a missão de educar crianças em situação de risco social, e capacitar jovens que sofrem com a violência e o subemprego. Ao criar o grupo, nossa intenção foi a de receber financiamentos para desenvolver um trabalho em cima de uma filosofia: a filosofia da valorização da cultura afro tradicional brasileira."

Nesse sentido, foi inaugurado, com o apoio da Prefeitura, o CentroCultural Jongo da Serrinha. Uma escola do centro começou com 40 alunos, e hoje já possui, segundo Dyonne, 650, em três diferentes comunidades: Serrinha, Acari e Anchieta. A grade montada pelo Centro foi toda baseada na cultura afro tradicional, por isso, ao invés de estudar as matérias usualmente ensinadas pelas escolas convencionais, o aluno do Jongo da Serrinha tem o privilégio de aprender disciplinas que se adequam melhor à sua realidade. As disciplinas iniciais foram a capoeira angola, o jongo, a percussão, o samba, o maculelê, a dança afro primitiva, etc. Em seguida, foram surgindo outras cadeiras complementares, como teatro, artes plásticas, fotografia, dança de salão e cidadania.

"A formação é baseada nessa cultura afro tradicional, que foi muito massacrada pela cultura de massa e muito desvalorizada pelos padrões globalizados, americanizados. A gente faz esse resgate, fala de folclore, trabalha com maracatu, com coco, com maxixe, que são danças brasileiras", explica Dyonne, e acrescenta: "A cultura trabalhada aqui é trazida de casa pelas crianças, é a vivência delas – da avó que dançava o Jongo ou do garoto que está no candomblé desde criança e toca tambor super bem. A aula de dança afro primitiva é um sucesso. O samba já é o jeito de corpo. É diferente se tivéssemos a proposta de entrar com o balé clássico. É legal, mas tivemos o movimento de buscar o que já existia ali e fomentar."

A maior parte da verba do projeto vem da Prefeitura, embora a estrutura sobreviva muito em função de uma grande rede de apoiadores e do trabalho voluntário.

"São apoios, doações, fazemos campanhas em colégios e conseguimos material pedagógico, brinquedos. Temos uma creche lá na Serrinha, que fez um ano e tem 150 bebês. Recentemente, fizemos uma campanha de fraldas. Ou seja, é sempre uma colcha de retalhos de parceiros que se faz para conseguir preencher a demanda de atendimento. Assim, nosso trabalho foi sendo muito bem avaliado, pois conseguimos montar uma rede de voluntários com pouquíssima verba", comenta Dyonne.

A despeito da série de conquistas, o projeto ainda sofre por não possuir uma estrutura suficiente para atender à demanda dos três morros. Segundo Dyonne, eles passam agora por um momento de reestruturação, e não há como ampliar a iniciativa sem a construção de um prédio, a compra de equipamentos e a contratação de profissionais: "Se você se insere numa comunidade de baixos salários se depara com milhares de deficiências, e elas não acabam. Por exemplo, surge uma criança que tem um talento incrível para a dança e, se ela tem irmãos, acaba trazendo todo mundo. Assim, você se vê entrando naquele universo da mãe, do pai, da família. É complicado, porque a gente se propôs a mexer no problema social brasileiro, e isso não tem fim. Precisa-se de dentista, ginecologista, alimentação melhor, precisa-se de tudo."

A Serrinha possui hoje 3.500 moradores, o que facilita o trabalho no morro. As casas, ao contrário de outras favelas do Rio, têm quintais e são relativamente isoladas umas das outras. Enfim, uma comunidade carioca dotada de características rurais e bastante peculiares.

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