Interesses comerciais, que montam à cifra de seis bilhões de dólares anuais, envolvem o mercado de fretes marítimos entre o Brasil e as nações estrangeiras que conosco trocam mercadorias. Para aumentar sua participação nesses fretes, tornava-se necessário diminuir o número de empresas e navios do Brasil, principal detentor dessas cargas. Não havendo navios para transportá-las, caberiam aos navios dos países que os tivessem. Por essa razão, mais que centenária, é que o Lloyd brasileiro, desde o seu nascimento em 1890, vem velada, mas permanentemente, sendo perseguido por seus concorrentes estrangeiros. É a história recente dessa justificativa leviana, que Luciano Ponce esboça para A Nova Democracia, e denuncia o despudor em relação aos interesses genuinamente nacionais que alguns assumem, para dar seguimento às forças interessadas.Nascido no início da República Velha, em 19 de fevereiro de 1890, pela junção de sete empresas estatais de navegação de cabotagem, o Lloyd operou, durante mais de um século, em 250 portos do mundo inteiro, com linha marítima regular, para todos os continentes, chegou a transportar 27% de nossas cargas.
O Ministro do Planejamento e Presidente do Conselho Nacional de Desestatização, José Serra, baixou uma resolução que colocou o Lloyd no Plano Nacional de Desestatização, na modalidade de liquidação. Foi pior
Luciano Ponce
É necessário limitar, contemporaneamente, duas eras bem definidas da Marinha Mercante Brasileira. Antes e depois de Collor. Por que antes e depois? Porque até o inicio de 1990, o Brasil tinha a Marinha Mercante com todas as estatais. Havia o Lloyd Brasileiro (LB) com 20 navios; a Frota Nacional de Petroleiros, da Petrobrás, com 60; e a Doce Nave (navios da Vale do Rio Doce), com 15. Todas elas estatais.
A Companhia Nacional de Navegação Costeira havia sido desmembrada, incorporada em 1964 ao Lloyd Brasileiro (Decreto-lei no. 67), que operava a navegação de longo curso, inclusive com os quatro navios de passageiros, excelentes, magníficos até então pertencentes à Costeira, que só fazia cabotagem: o navio Ana Nery, o Rosa da Fonseca, o Princesa Leopoldina e o Princesa Izabel. O Lloyd passou, assim, a operar também a cabotagem, com uma grande frota.
A incorporação de 64 marcou uma tendência que viria a se definir em 1967: o fortalecimento da marinha mercante privada, tirada das costelas das estatais, principalmente do Lloyd, porque as suas linhas, até então privativas, foram distribuídas para meia dúzia de empresas privadas que, na época, não tinham capitais estrangeiros.
Em 90, início da administração Collor, ocorre um grande golpe desfechado diretamente contra um dos pilares básicos da Marinha Mercante Brasileira, centenária: o Lloyd.
Os pilares eram precisamente o Lloyd Brasileiro e a Frota Nacional de Petroleiros, que começou em 1952 – duas grandes frotas — e ainda o terceiro pilar, a Vale do Rio Doce; além da periferia constituída por empresas privadas. Tais empresas privadas nasceram da política do governo militar, que queria incentivar o capital privado, apoiado pela forte presença das estatais marítimas.
Collor bloqueia contas bancárias
Foi exatamente contra o Lloyd que Collor dirigiu suas baterias. Em março de 1990, o governo perpetrou o bloqueio das contas bancárias do Lloyd que, na véspera, tinha recebido quase cinco milhões de dólares resultantes do pagamento de fretes no exterior. O dinheiro era destinado ao capital de giro e depositado diretamente no seu caixa bancário. Esse valor foi bloqueado, dando início ao grande drama: não havia recursos para pagar salários em dia, o que ocorreu até junho daquele ano.
Somente em junho começou a romper-se o cerco. Porém, nesse momento, Collor trocou toda a diretoria, substituindo-a por gente de confiança dele. Em setembro, o primeiro navio, um porta-container, o Lloyd Pacífico , era arrestado na Europa pela irrisória quantia de 200 mil dólares. O dinheiro do Lloyd permanecia bloqueado.E o referido navio, apesar de estar carregado de containers e com fretes a receber na descarga, ficou preso por falta de interesse do governo Collor em socorrer o Lloyd. Um mês depois o seu irmão gêmeo, o Lloyd Atlântico, foi arrestado também em razão de dívidas, em Roterdan. Com o arresto dos dois principais navios do Lloyd, tem início um grande escândalo comercial, uma vez que nos seus cem anos de existência, jamais ocorrera situação dessa gravidade. Os navios, daquela linha do norte da Europa, faturavam, em média, de dois a dois milhões e meio de dólares, a cada 55 dias. O faturamento consistia em excelente receita para a empresa, fato este que a tornava altamente rentável e competitiva.. Todos os navios no exterior foram sendo arrestados.
Em dezembro de 90, toda a frota no exterior, uns treze navios, encontrava-se arrestada. Collor também baixou uma Medida Provisória, num fim-de-semana de 1991, liquidando com o Lloyd. Nessa altura, já havia um movimento fortíssimo de trabalhadores, com seus sindicatos contra essa loucura. A Federação dos trabalhadores conseguiu, no Congresso Nacional, reverter a MP, através de uma emenda que mudava o seu texto. Ao invés de dissolver ou liquidar , seria aberta uma linha de crédito, do Fundo da Marinha Mercante, em favor do Lloyd.
O empréstimo, em moeda nacional, se desvalorizava, o dólar subia e, com ele, as dívidas. Por mais que a Federação dos trabalhadores solicitasse ao governo o depósito do pagamento das dívidas, numa conta remunerada, ele não atendia. A Comissão, criada para o pagamento das dívidas, levou seis meses para se decidir, causando com isso desvalorização do empréstimo com relação ao dólar. Faltou no final o valor de 14 milhões de dólares para desarrestar o Atlântico e o Pacífico, estranhamente deixados para o final do pagamento, quando deveriam ter sido os primeiros, por serem os mais importantes
Os navios estavam salvos
Foi quando o ministro da Marinha na época, almirante Mário César Flores, que desde o início da disputa do Lloyd, teve uma postura digna, patriótica, veio a socorrer o Lloyd, contrariando as fortíssimas correntes que atuavam nos bastidores. Emprestou 8,5 milhões de dólares do Fundo Naval para cobrir as dívidas na Alemanha e na Holanda, evitando que os navios fossem a leilão naqueles países.
No momento os navios foram salvos. Restava começar uma nova fase: permanecer por um tempo faturando só para pagar aos credores.
Mas, e o capital de giro? Não havia. Então a Marinha de Guerra continuou o apoio, forneceram alguns combustíveis, alimentos para o pessoal lá fora e comprou as docas do Lloyd e áreas adjacentes. Apurou-se cerca de 20 milhões de cruzeiros novos, resultando num capital de giro. Os trabalhadores se opuseram à venda das docas, por serem elas de grande importância logística para a empresa. Mas foram vencidos pelo governo.
Aquele período, portanto, foi marcado por uma grande resistência, que perdurou por toda a década de 90 até nossos dias. Ozires Silva, na época ministro da Infra-Estrutura, substituído depois por João Santana, entregou todas as linhas do Lloyd, e até a quota de participação da empresa brasileira nas linhas exteriores, sem qualquer ganho, com favorecimento para a concorrência.
Durante o ano de 94, três leilões do Lloyd foram realizados na Bolsa de Valores do Rio, sem sucesso, pois não aparecia comprador face à resistência e oposição dos trabalhadores, seus empregados, e também ao interesse de comprar os navios isoladamente, num processo de liquidação. Nesse caso não haveria responsabilidade pelas dívidas e créditos trabalhistas, apesar do preço vil de 26,5 milhões de dólares previsto para a empresa, ao passo que sua frota chegava a 200 milhões de dólares.
FHC decreta e José Serra assina a liqüidação
No final do governo Itamar Franco, convencido do erro da privatização, o presidente retirou o Lloyd do programa de desestatização. Mas, em 19 de setembro de 1995, o Ministro do Planejamento e Presidente do Conselho Nacional de Desestatização, José Serra, baixou uma resolução colocando o Lloyd no Plano Nacional de Desestatização, na modalidade de liquidação. Muito pior, portanto, do que fizera o governo Collor. O ministro José Serra nada mais fez do que dar seqüência ao decretado pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.
A fase de liquidação do Lloyd foi a mais cruel para os seus trabalhadores, porque o governo não injetava recursos na empresa, o que fazia paralisar seus navios restantes e não havia receita para o pagamento de salários. Os trabalhadores que fossem voluntários à demissão da empresa recebiam, então, seus salários atrasados na rescisão do contrato. Isto é, praticava-se uma fórmula sórdida de incentivo à demissão e o conseqüente esvaziamento da empresa.
Nossos porões estão alagados, parte da praça de máquinas também”. O Comandante ordena que envie a mensagem final, o mar está invadindo a estação de rádio, é impossível abandonar o navio. “Transmito o SOS, por extenso : save our souls. E em nome do Capitão, de toda a tripulação, a mensagem à Pátria, às nossas famílias, companheiros e amigos do Lloyd: cumprimos o nosso dever de marinheiros, conduzimos o Atalaia até onde o mar nos permitiu, afundamos com ele que será transformado em nossa eterna morada. Servimos o Lloyd Brasileiro, Servimos ao Brasil. Salve o Lloyd. Viva a nação brasileira”. O Atalaia afundou, no dia 25 de maio de 1941, às 15h34, com toda a tripulação a bordo
Luciano Ponce
Diante dessa situação de abandono e ameaça total, por parte do governo, os trabalhadores conseguiram, na Justiça do Trabalho, o usufruto judicial da empresa para fins de pagamento de seus créditos trabalhistas, sem dilapidar ou alienar o seu patrimônio nos leilões aviltantes. Daí que, durante cerca de trinta dias, sob usufruto judicial, a administração dos trabalhadores salvou dois navios: o Rio Coari e o Jaguaribe II. O primeiro encalhado e carregado com 28 mil toneladas de ferro guza, no Rio da Prata, o segundo arrestado na Argentina. Colocamos ambos para navegarem, sob afretamento, e aferimos, assim, fretes para a empresa.
O governo retomou judicialmente o comando da empresa e deixou esses dois navios abandonados na China, em Xangai e Hong-Kong, durante um ano, com a intenção de vendê-los naquele país, no que foi obstado pela resistência dos trabalhadores que somente voltariam para o Brasil a bordo dos mesmos.
Sob o aspecto da desnacionalização do Lloyd, deve-se considerar que ele, com 113 anos de idade, sempre foi o pilar da Marinha Mercante. O segundo pilar foi a Frota Nacional dos Petroleiros, Fronape. Apesar de ter sido agredido deliberadamente, sacrificado, achincalhado desde 1990, o Lloyd ainda está vivo. Resiste até hoje. Está vivo e é possível criar empregos na área de estaleiros, na área marítima, na área de produção naval e na área de movimento marítimo. Mas apenas de uma forma: é tomando o espaço que o estrangeiro já ocupou.
Por fim, o governo FHC sancionou uma lei que na realidade se resume em um ato de lesa-pátria: alterou uma legislação que vem da administração Vargas, da década de 1930, que obrigava a participação do comandante e de, pelo menos, dois terços de brasileiros na tripulação. Ficou a obrigatoriedade de, somente, dois oficiais brasileiros: o comandante e o chefe de máquinas.
Luciano Ponce Judice é o Presidente do Sindicato Nacional dos Oficiais de Radiocomunicação da Marinha Mercante e Diretor de Assistência Jurídica e Previdência Social da Federação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviários e afins — FNTTAA.