Um sangrento e covarde episódio da Revolta Farroupilha (1835-1845, Rio Grande do Sul) ressuscita do tempo e volta a assombrar a história oficial escrita pela burguesia.
Os dias 13 e 14 de novembro marcam o dia de homenagem aos Lanceiros Negros, valente tropa farroupilha formada por escravos, dizimada pelo exército do imperador Pedro II no chamado Massacre de Porongos. A chacina foi resultado de um traiçoeiro acordo entre um chefe dos farrapos e o comandante do exército imperial, Barão (futuro Duque) de Caxias.
"Passados 160 anos da traição do general David Canabarro (um dos líderes farrapos) e do comandante Duque de Caxias, que vitimou entre 600 a 700 negros farroupilhas, a história muda o curso e traz à tona a relevância dos Lanceiros Negros", disseram os promotores da homenagem, num texto publicado na internet.
Tal divulgação do fato, pouco conhecido pela população brasileira, vem questionar a figura de Canabarro, sempre apresentado como um dos heróis da Revolta pelos historiadores oficiais.
Já sobre Caxias, nenhuma novidade. Sua fama de carniceiro é bem conhecida, o povo paraguaio que o diga. Na guerra travada contra o Paraguai, entre 1864 e 1870, ele lá esteve liderando o genocídio de 76% dos habitantes daquele país. Tudo em nome do capitalismo inglês, de quem o império brasileiro era lacaio, conforme os estudos de Júlio José Chiavenato, publicados em livros que ficaram famosos anos atrás. Porém, ainda persiste o mito criado pelas classes dominantes brasileiras e suas Forças Armadas de que Caxias seria "magnânimo na vitória", apesar das evidências no Paraguai e do massacre de Porongos.
As armas foram tiradas
A Revolta Farroupilha não foi uma guerra popular e sim um conflito de facções da classe dominante. Fazendeiros gaúchos versus governo imperial. Contudo, os ideais liberais republicanos dos farroupilhas eram progressistas em comparação com a monarquia do Brasil. Em seu decorrer, a luta acabou arrastando camadas do povo, explorado e insatisfeito, o que deu um caráter popular à Revolta.
Antes de iniciar a rebelião armada contra o império, os chefes farroupilhas prometeram aos patrões (estancieiros e charqueadores) que não usariam escravos como combatentes. Por certo para não tirar a mão-de-obra das fazendas, o que prejudicaria seus negócios e lucros.
Porém, logo que começaram as primeiras batalhas, os farrapos sentiram que possuíam um contingente tacanho para vencer os imperiais, o que os levou em 1837 a formar o 1° Corpo de Lanceiros Negros, comandados por um branco, Teixeira Nunes, o Gavião. O próprio Giuseppe Garibaldi, herói da unificação italiana e grande internacionalista que lutou ao lado dos farrapos, chegou a dizer que nunca viu um corpo militar lutar com tanta bravura como os destemidos guerreiros negros.
Os farroupilhas prometiam dar liberdade aos escravos que batalhassem a seu favor. Ao final de 1844, já há 9 anos em conflito, a província desgastada, a guerra parecia perdida.
Com o intuito de dar um fim ao conflito, David Canabarro teria mandado, na madrugada de 14 de novembro, tirar todas as armas dos escravos.
O argumento era o medo de que estes se rebelassem. Era bem possível que isso ocorresse, já que o povo em armas não costuma acatar decisões nebulosas da chefia, acordos clandestinos, tudo aquilo que suspeita ser entreguismo.
Se os Lanceiros Negros fossem mantidos vivos seriam um perigo, uma tocha rebelde acesa a por em xeque as classes dominantes, fossem elas o latifúndio gaúcho ou os capitalistas da monarquia.
Ordem para o genocídio
Afirmam as entidades que, numa carta de Caxias destinada ao coronel Francisco Pedro de Abreu, foram dadas as ordens para o genocídio: "No conflito poupe o sangue brasileiro quanto puder, particularmente da gente branca da Província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda pode ser útil no futuro".
Assim, por volta das 2 horas da manhã, as tropas imperiais de Abreu, conhecido como Moringue, entraram nos campos de Porongos, hoje município de Pinheiro Machado.
O Corpo de Lanceiros Negros, desarmado, desprotegido, foi dizimado. "Era a Surpresa de Porongos, que há décadas vem sendo discutida pelo movimento negro e agora passa a ser reescrita", diz o texto das entidades.
Numerosos Lanceiros foram mortos. Mais de 300 farrapos (principalmente brancos), além de 35 oficiais foram presos. Vinte negros sobreviveram e foram mandados para o Rio de Janeiro, onde provavelmente voltaram a ser escravos.
As entidades informam que os Lanceiros assassinados foram de 600 a 700. Outras versões falam de 100.
O único entrave para as tratativas de conciliação não mais existia. Ou seja, as duas facções da camada dominante mais tarde acabaram entrando em acordo e a massa, de negros e brancos pobres, que combateu bravamente, doando seu sangue com generosidade, foi traída e descartada.
Ódio aos trabalhadores
No dia 25 de fevereiro de 1845, nos campos de Ponche Verde foi assinado um "tratado de paz", mais conhecido por Tratado de Ponche Verde, que nunca existiu, por ser irrelevante na prática.
Caxias não estava presente, nenhum líder imperial assinou, nem o líder farroupilha Bento Gonçalves da Silva compareceu, dizendo estar com gripe.
No tratado, por exemplo, constava que "são livres, e como tais reconhecidos, todos os cativos que serviram à revolução". Porém o próprio Bento, símbolo farrapo, depois que morreu em 1847, vítima de uma pleurisia, deixou a seus herdeiros 48 escravos. É preciso dizer mais alguma coisa?
A nova ótica sobre o Massacre de Porongos foi apresentada em livro, em 1993, por Mário Maestri em O Escravo Gaúcho — Resistência e Trabalho (Porto Alegre, Ed. da UFRGS).
Ali ele apresenta a tese do acordo entre Canabarro e os imperiais. A história oficial nega terminantemente a traição. No entanto, é fato conhecido no Rio Grande as dúvidas de chefes farroupilhas sobre aquilo que foi chamado de "Surpresa de Porongos".
— Teriam sido traídos? — perguntavam-se.
Isso inclusive gerou um processo contra Canabarro no Tribunal Militar dos rebeldes farroupilhas. Difícil saber se nisso também esteve envolvida alguma disputa interna entre os líderes da Revolta. O certo é que com a "paz" o trâmite continuou na justiça militar do império, mas em 1866 o general Osório fez com que o processo fosse arquivado, sem ter sido concluído.
Maestri, na obra, mostrou o ofício com as ordens de Caxias acerca do ataque aos Lanceiros.
Intensa polêmica abriu-se a partir dali, com intelectuais da burguesia tachando o documento como forjado (por oficiais do império, supostamente com o objetivo de enfraquecer Canabarro).
No entanto, o documento apresentado por Maestri, inclusive com a devida assinatura de Caxias, é reconhecido como autêntico pelo Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
Trata-se, portanto, de um livro a ser lido, que traz do autor uma conclusão certeira: os corpos dos Lanceiros estendidos sobre os campos de Porongos "não deixaram dúvida da identidade que unia chefes imperiais e farroupilhas no medo e no ódio aos seus trabalhadores negros".