Segundo o materialismo dialético, o universo é infinito, composto unicamente de matéria inesgotável. Ele se opõe ao idealismo, que considera a existência de uma “cariação” a partir do nada.
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Platão (à esquerda) e Aristóteles (à direita), extraído da pintura A Escola de Atenas
Esta questão essencial da natureza do universo sempre foi uma linha de demarcação entre o materialismo e o idealismo. No quadro A escola de Atenas, de Rafael, Platão se encontra no meio do cume em direção ao céu, origem da realidade material. Seu “mundo de idéias” consiste de modelos que elaboram a matéria. O platonismo se situa na linha de Pitágoras e considera que o “uno” divino deu nascimento a um mundo “múltiplo” composto de números. A realidade material nada seria senão um subproduto de Deus.
Com Aristóteles se situando ao lado de Platão no quadro, e que lhe mostra lá embaixo por meio de sua mão, tem-se uma abordagem que se afasta do platonismo, chegando-se à famosa alegoria do ovo e da galinha. Se Aristóteles ainda não conhecia o princípio da evolução e isto se torna um “eterno retorno”, ele entendeu que não há nem a primeira galinha nem o primeiro ovo.
O materialismo que vai se desenvolver logo após a Idade Média, principalmente com o persa Avicena e o árabe Averróes, levará à rejeição da noção do “primeiro homem” e, como conseqüência, do idealismo religioso.
A eternidade do universo foi assumida, desde Espinoza até Karl Marx e Friedrich Engels, como uma matéria infinita, inesgotável, eterna. O idealismo e o materialismo se opunham fundamentalmente sobre a questão da natureza do universo e Emmanuel Kant, no século XVIII, na Crítica da razão pura, afirma que se apresentam uma tese e uma antítese:
Tese: “O mundo2 teve início no tempo e está contido, também relativamente, no espaço, em certos limites”.
Antítese: “O mundo não tem nem início nem limites espaciais, mas é infinito tanto no que se refere ao espaço quanto em relação ao tempo”.
As religiões têm combatido particularmente esta afirmação de eternidade do universo e a questão mais desenvolvida de seu dispositivo neste sentido é proveniente do cônego católico belga, Georges Lemaître (1894-1966), que desenvolveu a hipótese do átomo primitivo – mais conhecido como teoria do “Big Bang” –, em 1927. Esta teoria é fundamentalmente criacionista, sob uma máscara pseudo-científica, que permitiu conquistar uma hegemonia idealista nesta questão. Foi sustentada abertamente pelo Vaticano, que prolongou esta perspectiva com a concepção do “desenho inteligente” do “nascimento” do universo.
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Andrei Jdanov, cientista soviético que contestou a teoria do “Big Bang”
O papa Pio XII deu seu apoio a esta teoria, principalmente por um discurso feito em 1951 na Academia de Ciências. No ano seguinte a Assembléia Geral da União Internacional Astronômica ocorreu em Roma (em vez de na União Soviética, como previsto inicialmente) antes de ocorrer em Moscou, em 1958, quando o revisionismo triunfara já na URSS.
O papa resume a teoria do “Big Bang” da seguinte maneira:
“Não se pode negar que um espírito esclarecido e enriquecido pelos conhecimentos científicos modernos, e que examina com serenidade este problema, é levado a quebrar o círculo de maneira totalmente independente e autônoma – sendo incrédulo como crédulo – e a chegar a um Espírito criador.
Com o mesmo olhar límpido e crítico com que examina e julga os fatos, ele entrevê e reconhece a obra criadora Todo Poderosa, cuja virtude, suscitada pela poderosa ‘Fiat’3 pronunciada há bilhões de anos pelo Espírito criador, desdobra-se no Universo, congregando à existência – em um gesto de amor generoso – a matéria transbordante de energia.
Parece, na realidade, que a ciência de hoje, voltando de uma só vez a milhões de séculos atrás, conseguiu testemunhar que esse Fiat Lux4 inicial, naquele instante fez surgir do nada, com a matéria, um oceano de luz e de irradiação, enquanto as partículas dos elementos químicos se separavam e se uniam em milhões de galáxias. (…)
É notável como sábios modernos, versados no estudo dessas ciências, calculam ser a idéia da criação do Universo perfeitamente conciliável com suas concepções científicas e que tenham sido levados a isto espontaneamente por suas pesquisas, embora, há algumas dezenas de anos, tal ‘hipótese’ fosse totalmente irreconciliável com o atual estágio da ciência.
Em 1911, o célebre físico, Svante Arrehnius, apresentou a ‘opinião de que alguma coisa nascer do nada está em contradição com o estágio atual da ciência, segundo a qual a matéria é imutável’. Da mesma forma é de Platão a afirmação: ‘A matéria existe. Nada nasce de nada; por conseqüência a matéria é eterna. Não podemos admitir a criação da matéria’.”.
Segundo o materialismo dialético, por outro lado, não há fonte; o que há é que a matéria e somente ela está em movimento eterno, compondo de forma igual toda a realidade. Não há, então, nem início nem fim. Por esta razão, a União Soviética de Stalin recusou categoricamente o “Big Bang”, considerando, como formulou Andrei Jdanov em discurso de 24 de junho de 1947, que:
“Os falsificadores da ciência querem reviver a história da origem do mundo a partir do nada”. Andrei Jdanov afirmou, em seguida, a respeito do mesmo assunto:
“Outra falha da ‘teoria’ [do Big Bang] em questão consiste no fato de que ela nos leva a uma atitude idealista assumindo que o mundo é finito.”.
E reafirma:
“Da mesma maneira, os desvios kantianos dos físicos modernos os levaram a afirmações como se os elétrons possuíssem ‘livre arbítrio’ e a tentativa de descrever a matéria como uma simples superposição de ondas e de outras aparições.”.
Os comunistas da União Soviética entenderam perfeitamente que a teoria do “Big Bang” combinava com a concepção de um mundo material que seria “terminado”, ou seja, limitado e, portanto, incapaz de estar em movimento de maneira eterna.
A teoria do “Big Bang” consiste em uma justificativa necessariamente deísta de um “início” do mundo, do Universo. Ela não é uma novidade em si, por outro lado, nada mais faz que retomar uma maneira de ver já sistemática entre os idealistas, na segunda metade do século XIX, com a idéia de um “aquecimento inicial”.
Os partidários do “Big Bang” pretendem constatar de maneira nova um decálogo em relação ao vermelho dos comprimentos de onda dos raios espectrais e do total do espectro observado entre os objetos astronômicos a longa distância, o que seria a prova de que eles se distanciam.
Entretanto, já no século XIX, Friedrich Engels zombava dos que imaginavam o nascimento em expansão de um Universo que findaria por morrer de frio (o que foi chamado em seguida de “Big Crunch”)5.
Em uma carta a Karl Marx em 21 de março de 1869, Engels afirma o seguinte:
“A mutação das forças naturais, principalmente o calor da força mecânica etc. deram lugar, na Alemanha, a uma teoria extremamente insípida que se destaca do resto com uma necessidade da velha teoria de Laplace, mas que avança agora com provas quase matemáticas, ou seja, que o Universo não cessa de esfriar, que as temperaturas no interior do Universo tendem sempre mais a se equilibrar e que ele chegará a um ponto em que a vida se tornará impossível, em que o mundo todo só se constituirá de planetas gelados girando uns em torno dos outros.”.
Só se pode esperar que os padres se apoderem dessa teoria como a última palavra do materialismo. Não se pode imaginar nada de mais tolo.
Sendo entendido que após esta teoria é sempre necessariamente transformado mais calor do que em outras formas de energia, e não é possível que outras formas de energia se transformem em calor, segue-se naturalmente que o estado do grande calor original, a partir do qual todo ser resfria, seja absolutamente inexplicável e seja mesmo uma contradição, pressupondo então a existência de Deus.
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Cartaz soviético exalta a experimentação científica sob o socialismo, década de 1930
O choque inicial de Newton é transformado em aquecimento inicial.
E embora esta teoria seja o fim do materialismo mais acabado, e esses senhores prefiram construir um mundo que comece no absurdo e se acabe no absurdo, mais do que ver nessas conseqüências absurdas a prova de que até o presente eles não conheçam a não ser a metade de sua chamada lei natural. Sabemos que esta teoria fez furor na Alemanha.”.
Os comunistas da União Soviética, na época de Stalin, se situam no prolongamento perfeito desta maneira materialista dialética de compreender nosso Universo e formulam a resolução final de uma conferência de astrônomos e de físicos soviéticos, em dezembro de 1948, em Leningrado [atual São Petersburgo]:
“A ‘teoria’ reacionária e idealista da expansão do Universo domina neste momento a cosmologia estrangeira. Infelizmente, esta teoria anticientífica penetrou nas páginas de nossas publicações especializadas… É indispensável desmascarar com rigor esse idealismo astronômico que promove o clericalismo.”.
A União Soviética assumia, naquela época, a defesa do materialismo dialético e desenvolvia a cosmologia de maneira separada das instâncias internacionais (nas quais a URSS só teve 2 representantes em 1953, contra 42 em 1956, 89 em 1960, etc.).
Com o triunfo do revisionismo, a União Soviética transformou-se em potência social-imperialista e abandonou essa concepção. Na França, o fundador da astrofísica como disciplina, Evry Schatzman (1920-2010), seguiu precisamente o caminho materialista da URSS.
1. Primeira parte de um artigo publicado na internet em 18 de maio de 2016 pelo grupo francês Les Materialistes.
2. A palavra “mundo” aqui e em outras passagens do texto não deve ser compreendida como o planeta Terra, mas como o próprio universo, como “mundo material”.
3. Em latim: “faça-se”
4. Em latim: “faça-se a luz”
5. Na verdade, a teoria do “Big Crunch” é o inverso do que apresenta o texto. Trata-se do movimento inverso ao do Big Bang, no qual o universo se contrairia até um ponto minúsculo e ultradenso.