O médico dos camponeses

O médico dos camponeses

Ilustração: Alex Soares

Um dos maiores cientistas que o mundo já teve nas áreas da Saúde Pública e da Parasitologia foi um médico brasileiro. Seu nome? Samuel Pessoa. Autor de mais de 300 trabalhos científicos, ele foi um dedicado pioneiro nos estudos epidemiológicos das doenças endêmicas das comunidades rurais brasileiras.

A figura de Samuel Pessoa foi citada na última edição de AND, em reportagem que falava do professor Wilson Mayrink, o criador da vacina contra a leishmaniose. Em 1940, Samuel Pessoa foi quem realizou a primeira experiência de campo, em Presidente Prudente (SP), cujo resultado possibilitou a Mayrink e sua equipe o desenvolvimento da vacina.

Nascido em São Paulo em 1898, filho de um médico paraibano e de mãe inglesa, Anna Barnsley, Samuel B. Pessoa foi médico sanitarista e parasitologista, tendo dedicado sua vida a uma incessante batalha para a solução de questões de saúde pública, um problema da mais alta gravidade no Brasil até os dias atuais.

Formado em 1922 pela Faculdade de Medicina de São Paulo, desfrutou do convívio de cientistas como Oscar Freire e Rubião Meira, tendo ainda sido influenciado, na faculdade, por Wilson Smile, professor de Higiene na Universidade de Harvard (USA), que na época vinha passar férias no interior do Brasil.

Ele transmitiu a Samuel o gosto — que manteve pelo resto da sua vida— pelos estudos epidemiológicos de campo. Já no início da sua carreira ficou evidenciada uma preocupação constante com as endemias do país. Tanto que seus primeiros trabalhos foram sobre a ancilostomose, doença cuja gravidade foi transmitida na forma literária por Monteiro Lobato, através da conhecida figura do "Jeca Tatu".

Em 1925 freqüentou o Curso de Especialização em Malária, sob a direção do Departamento Nacional de Saúde Pública. A convite da Sociedade das Nações foi para a Europa em 1927, onde percorreu os serviços antimaláricos da Iugoslávia e frequentou institutos científicos da Itália e Espanha. Na Alemanha, fez um curso de Patologia Exótica e Parasitologia Médica. Em 1928 trabalhou no Laboratório de Parasitologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Paris.

Junto ao povo

De volta ao Brasil, em 1929, continuou na sua faina incansável, até que em 1931 inscreveu-se no concurso para professor da Faculdade de Medicina da USP. É aprovado depois de apresentar uma bagagem de 51 trabalhos versando sobre Protozoologia, Malariologia, Helmintologia, Entomologia, Micologia e Bacteorologia, Higiene e Patologia Geral. É então nomeado professor catedrático de Parasitologia, em abril de 1931. Essa cátedra iria revelar a grande característica do talentoso professor, que soube equilibrar as atividades de ensino e pesquisa, não deixando uma predominar sobre a outra, afirmando que ambas eram completivas e não exclusivas. Não perdia seu tempo em discussões academicistas ou bizantinas.

Era pragmático e trabalhava sem parar. Gostava de estar entre o povo pobre, principalmente os camponeses, que sofriam as enfermidades que ele sonhava extinguir.Sua atividade intelectual foi ininterrupta por mais de 50 anos. Dentro desse período publicou mais de 300 trabalhos, artigos em jornais e livros, destacando-se o mais famoso— Parasitologia Médica— do qual já foram tiradas 11 edições e é adotado até hoje em faculdades do Brasil e do exterior. Destacam-se ainda as obras Endemias Parasitárias da Zona Rural Brasileira e a monografia escrita com Mauro Pereira Barreto sobre Leishmaniose Tegumentar Americana.

Bom humor e desinteresse de lucro

Segundo seus biógrafos, Samuel era possuidor de atributos muito importantes ao verdadeiro pesquisador: "Tenacidade, desinteresse de lucro, operosidade e amor à ciência". Fez contribuições importantes na área da Medicina Tropical, sobre a Reação de Montenegro e Vacinação na Leishmaniose Tegumentar, Domiciliação de Triatomíneos, Patogenicidade de Amebas e Leishmanias, Importância das Crianças na Propagação de Verminoses, Esquistossomose Como Doença Peri-Domiciliar, Classificação Clínico-Epidemiológica e Profilaxia da Esquistossomose, Inquéritos Epidemiológicos Sobre Parasitoses Intestinais, Leishmaniose Tegumentar e Esquistossomose, além de ser um dos pioneiros nos estudos epidemiológicos das doenças endêmicas em comunidades rurais.

Aos 57 anos, incomodado pela ditadura militar, requereu sua aposentadoria na faculdade em São Paulo e passou a levar seus conhecimentos a diversas escolas de Medicina do país, como Londrina, João Pessoa, Aracaju, Florianópolis, Salvador, Goiânia, Itajubá e muitas outras.

Um dos seus biógrafos e colega de trabalho, prof. A. Prata, lembra que Samuel era dotado de uma personalidade "de irradiante simpatia e trazia conforto a todos com quem entrava em contato".

Muito bem humorado, ficou conhecido nos meios científicos a sua espirituosidade na classificação dos animais que capturava para estudo: "bicho bão" era o que transmitia doença; "bicho bobo" o que não transmitia; "bichídeo", aquele cujo papel ainda era incerto como vetor de doenças. O cientista faleceu em 1976, aos 78 anos de idade.

Samuel Pessoa e a geografia médica no Brasil**

A linha de investigação construída por Samuel Pessoa inspirou-se nas contribuições de Sorre e Pavlovsky, especialmente na do último. Ele criou uma escola de estudos em geografia médica no Brasil, no contexto da chamada Medicina Tropical. Estudou as endemias prevalentes no país, também, e especialmente, as transmitidas através de vetores, como esquistossomose, doença de Chagas, filariose, malária, etc.

Pessoa afirmou a necessidade de recuperar "a velha tradição hipocrática". A ênfase na Bacteriologia relegou a um segundo plano o estudo acerca da influência do ambiente sobre a ocorrência das doenças. Ressalta que o ambiente refere-se ao conjunto de causas que atuam sobre o homem e não apenas ao meio físico. Mesmo assim, é evidente, também no discurso formulado por ele, que o elemento que se mantém como eixo da apreensão da relação entre homem e meio na explicação da doença é a sua causa microbiológica específica.

"Os fatores que intervêm na incidência e propagação das doenças infecciosas e parasitárias em uma região são numerosos e complexos. Atribuí-los somente às condições geográficas e climáticas é tão errôneo como incriminar somente a presença do germe. É claro que, por exemplo, sem o bacilo ‘virgula' da cólera não pode existir esta grave enfermidade, porém ninguém nega a existência de uma geografia da cólera. Não se deve limitar, todavia, o termo ‘geografia' de uma doença, no sentido estrito que se entende por esta ciência. Se se pode, em um mapa, delimitar as áreas de endemicidade ou epidemicidade da cólera, da peste, da malária, das leishmanioses, etc., é que pelo termo geografia deve-se considerar não só a geografia física, o clima e os demais fenômenos meteorológicos, que caracterizam geograficamente a região, mas ainda as geografias humana, social, política e econômica. E os fatores que mais intervêm na variação e propagação das doenças, são justamente oshumanos".

Nosso amigo Samuel

Durante o início dos intermináveis anos de chumbo da ditadura militar, lá por 1967/68, trabalhava eu na sucursal do jornal O Estado do Paraná, na cidade de Londrina, época coincidente com o início do funcionamento do curso de Medicina da Universidade Estadual local.

Na ocasião, fazia parte de um pequeno grupo de jornalistas, professores universitários e jovens estudantes que nos reuníamos em prolongadas discussões, noites adentro, sobre a situação política do país, preocupados que estávamos — assim como grande parte do povo brasileiro — com o futuro da nação, caída recentemente nas mãos dos golpistas, fardados e não-fardados.

Em meio ao ambiente sombrio criado pelos militares e seus sócios norte-americanos e brasileiros, que se traduzia em perseguições políticas, assassinatos de trabalhadores, intelectuais e estudantes, a Universidade de Londrina teve a feliz oportunidade de contratar para seu quadro docente um dos maiores cientistas que a América Latina já conheceu.

Tratava-se da figura notável do professor Samuel Barnsley Pessoa, o qual tive o privilégio e a honra de conhecer e a felicidade de usufruir sua amizade, assim como de sua esposa, Jovina. Esta também uma valorosa mulher, que apesar de descender de quatrocentona família paulistana, possuía uma formação ideológica de esquerda e foi companheira inseparável e incansável nas lutas de seu marido.

Embora tenha eu privado da amizade dessas duas pessoas maravilhosas por pouco tempo, ainda recordo os felizes e proveitosos momentos em que, juntos, ríamos das situações tragicômicas resultantes das trapalhadas infelizes criadas por aqueles que tomaram o poder à força e à revelia do povo brasileiro.

Assim como lembro do saboroso bom humor do professor Samuel, uma conhecida marca de sua personalidade.

Houve, por exemplo, uma ocasião em que comentávamos os graves problemas da esquistossomose e da malária no norte do Paraná, que na época se alastrava de forma assustadora.

Disse ele que tinha apresentado às autoridades, algum tempo atrás, um projeto para "segurar" certas doenças que entravam do norte para o sul do país. E que consistia, basicamente, de instalar um extenso cordão de defesa contra os vetores, nos principais rios de divisa nos estados de São Paulo e Paraná.

A estratégia era muito simples e necessitaria somente de muita mão de obra não-qualificada (o que daria emprego para centenas de pessoas) e óleo cru queimado, cujo custo era mínimo, praticamente se resumindo ao preço do transporte.

Perguntei-lhe, então, por que o projeto não fora aceito pelo governo. Ele respondeu com um sorriso debochado e ao mesmo tempo melancólico:

— Ah, meu filho, era barato demais…

*Rosnel Bond é jornalista. Aos 71 anos, ainda exerce a atividade, sendo atualmente editor da revista Cadernos da Ilha, publicada em Florianópolis (SC) [email protected]
Fontes da matéria principal: professores Dácio Amaral e A. Prata.
Agradecimentos ao prof. Vicente Amato Neto e Maria do Carmo, do Centro de Estudos Samuel Pessoa, de S. Paulo.
**Síntese e adaptação do artigo O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação histórica e epistemológica, de Dina Czeresnia e Adriana Maria Ribeiro, da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz, publicado nos Cadernos de Saúde Pública, vol. 16, no. 3, RJ, julho/setembro de 2000.
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