A rota transcontinental mais importante da América do Sul pré-colombiana, conhecida como Caminho de Peabiru, é o tema do novo livro da jornalista Rosana Bond, que será lançado dia 26 de junho em Florianópolis (SC).
A obra História do Caminho de Peabiru — Descobertas e segredos da rota indígena que ligava o Atlântico ao Pacífico, da Editora Aimberê, foi dividida em dois volumes. O segundo deverá ser lançado em breve.
A publicação é resultado de 14 anos de pesquisa da autora, contendo uma grande bibliografia com mais de 400 fontes (a metade está no primeiro volume).
Além disso, pela primeira vez no país, um livro sobre o assunto inclui uma abordagem indígena, apresentando informações inéditas vindas da memória ancestral do povo guarani, passada oralmente de geração a geração.
O milenar Peabiru, considerado pela tribo como o "caminho comprido", o "caminho do Sol" ou o "caminho dos deuses", tinha cerca de 4 mil quilômetros e ligava o oceano Atlântico ao Pacífico e vice-versa. Começava (ou terminava) no litoral catarinense, paranaense e paulista. E terminava (ou começava) na costa do Peru e Chile.
Era uma rede de vias leste-oeste-leste, que ao chegar na Bolívia "emendava-se" com as sofisticadas estradas dos incas e também de povos pré-incas.
Alguns dos trechos peabiruanos no Brasil tinham cerca de 1,40 m de largura, 40 centímetros de talude e eram forrados com tipos de gramas que se replantavam facilmente devido à engenhosidade nativa. Tais gramas possuíam sementes glutinosas, que aderiam aos pés e calcanhares dos índios, propagando-se conforme estes percorriam a trilha.
Existem pelo menos quatro hipóteses sobre quem foram os "construtores" do Caminho:1) O povo itararé; 2) O povo guarani; 3) Os incas; 4) Uma figura lendária chamada de Sumé pelos índios, mas tida como São Tomé pelos padres.
Guaranis abrem seu arquivo
A convivência com Rosana Bond durante muitos anos fez com que pajés e líderes guaranis de aldeias de Santa Catarina permitissem a ela ouvir e transmitir em livro alguns "segredos" sobre o Peabiru, assunto que é tido como sagrado por eles até os dias atuais.
— Meus amigos guaranis levaram muito tempo para iniciar a revelação de seus conhecimentos. Respeitei seu silêncio e isso em nada prejudicou nossa amizade. A mudança aconteceu após 7 anos de convívio, em 2004, quando uma das lideranças comunicou que iria responder às minhas perguntas. Dalí para cá, o arquivo de sua memória foi aberto a mim. Não o arquivo inteiro, pois a tribo conserva muitas restrições aos temas sagrados. Mas as parcelas que recebi foram generosas, continuam sendo, e evidenciam uma confiança que chega a me emocionar — confessou a autora.
E prosseguiu:
— Quanto aos 7 anos de espera, creio que isso teve a ver com a idéia que eles têm sobre o ciclo das maturações. Os guaranis entendem que a cada 6 ou 7 anos, algo na vida das pessoas fica mais maduro. Penso que nada me contaram antes porque eu ainda não estava "madura". É só uma hipótese porque até hoje ainda não me explicaram porque fiquei na geladeira por tanto tempo — afirmou, com bom humor.
Os segredos
Entre os segredos passados à jornalista estavam importantes respostas a dúvidas de estudiosos quanto à efetiva relação dos guaranis com o Peabiru. Teriam sido eles os "construtores" dessa via? A trilha teria ligação com a busca de um paraíso chamado de Terra Sem Mal?
Os índios confirmaram a Rosana que seus antepassados conheceram e trilharam o Caminho de uma ponta à outra do continente. Quanto à construção da rota, porém, não entraram em detalhes: "O Caminho foi feito por gente antiga".
A autora acredita que, com isso, a tribo quis dizer que o Peabiru foi aberto por povos anteriores. Em suas pesquisas, ela achou indícios de que diversos trechos da trilha podem ter sido executados por populações milenares e que mais tarde os guaranis teriam completado a construção para formar o Peabiru transcontinental, de mar a mar.
Sobre a Terra Sem Mal, o paraíso mitológico guarani situado em algum lugar do Atlântico, os índios confirmaram que o Caminho foi efetivamente usado para buscarem esse lugar lendário, coisa que continua ocorrendo até a atualidade.
— As migrações guaranis vindas do Paraguai, Argentina e interior do sul do Brasil, na direção do mar, continuam acontecendo até hoje. E, como atestam os antropólogos, visam a busca da Terra Sem Mal — esclareceu a jornalista.
Entre os vários segredos revelados, outro também se destacou: o importante papel representado pelo rio Itapocu (SC) no trajeto do Caminho.
Há vários anos alguns estudiosos vêm questionando se o Peabiru iniciava-se neste rio.
— Os guaranis acabaram com todas as dúvidas — disse a autora — ão só confirmaram que o Caminho era feito pelo Itapocu, como revelaram seu nome original e verdadeiro: Tape Puku. E sabem qual é a tradução de Tape Puku? "Caminho Comprido". Então o próprio nome do rio já mostra que o Peabiru era por ali.
Seguindo essa pista dada pelos índios, a jornalista investigou mais o assunto e, numa viagem ao Paraguai, descobriu em mapas antigos e textos a existência de outros seis Itapocus (Tape Pukus) naquele país e também em Mato Grosso do Sul.
— Todos esses lugares denominados Itapocu eram pontos geográficos importantes da rota do Caminho. Foi então que entendi o que os amigos guaranis tinham desejado me explicar. Era que a palavra Itapocu não se tratava de um topônimo, um simples nome dado a alguns lugares, mas sim um sinalizador do Peabiru. Era como se o guarani botasse placas com os dizeres: ‘Aqui é o Tape Puku, por aqui é o Caminho Comprido’.
As descobertas
Outra novidade incluída no livro é o comprimento real do Peabiru. Até pouco tempo atrás, a autora pensava que o Caminho tivesse aproximadamente 3 mil quilômetros de uma ponta a outra.
— Mas ao terminar a pesquisa tive que rever meu cálculo, pois notei que o número mais próximo do real é cerca de 4 mil quilômetros — esclareceu.
Uma das razões que fez a jornalista modificar o cálculo foi uma outra descoberta: o ponto de chegada do Peabiru no oceano Pacífico.
Vários autores brasileiros, há mais de 50 anos, diziam que o Caminho "emendava-se" com as estradas incas e pré-incas e terminava no Pacífico, no sul do Peru.
— Eles não estavam errados, pois existiram pontas do Peabiru no sul peruano, porém sua informação estava incompleta — disse Rosana — Ao pesquisar, verifiquei que existiu um outro ramal na costa do atual Chile, pouco conhecido pelos estudiosos brasileiros até hoje. Foi por este trecho que muito possivelmente os guaranis completaram a caminhada do Peabiru do Atlântico até o Pacífico. Diversos pesquisadores latino-americanos descobriram, desde o século 19, vestígios arqueológicos guaranis bem perto do litoral chileno, a uns 60 ou 80 quilômetros da praia. Além disso, foram identificados mais de 300 topônimos guaranis no Chile.
Outra novidade que o livro traz é a datação do Peabiru, que até o momento era um ponto de interrogação aos pesquisadores.
— Era uma informação desconhecida, não havendo sequer uma data suposta. Agora, sabendo dos achados chilenos, se pode sugerir pelo menos uma datação de referência. Pode-se lançar a hipótese de que o Caminho teria sido completado pelos guaranis, até o Pacífico, cerca de 1500 anos atrás.
Os caminhos da América
O primeiro volume da obra contém quatro capítulos, com uma síntese histórica sobre o Peabiru; um ensaio sobre a civilização indígena da América, atacada e saqueada pelo capitalismo mercantil europeu a partir de 1492, bem como sobre os caminhos nativos da América. São apresentadas também as duas primeiras teses sobre os possíveis "construtores" do Peabiru: o povo itararé e o povo guarani. As outras duas teses (incas e a figura lendária de Sumé) serão mostradas no Volume 2, que conterá ainda um amplo estudo sobre os trajetos do Peabiru e outros assuntos.
É o 15º livro de Rosana Bond, paranaense que reside em Santa Catarina, membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo.
O lançamento da obra está marcado para 26 de junho, a partir das 19 horas, no restaurante Posto da Alfândega, em Florianópolis.
Outros lançamentos e palestras serão realizados em Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e também em cidades catarinenses que estiverem interessadas. Para marcar os eventos, estas devem fazer contato com a Editora Aimberê/jornal AND, através dos telefones (21)2256-6303 / 2547-9385 ou pelo e-mail [email protected] .
Aquisição de exemplares: mesmos fones e endereços eletrônicos acima.