Quando atualmente se fala da importância e necessidade de realização de uma Revolução Agrária no Brasil, revolução esta que liquide com o latifúndio semifeudal e distribua as terras para os camponeses pobres sem terra ou com pouca terra produzirem, se esbarra no mito do esvaziamento demográfico do campo brasileiro, uma ideia falsa que gera descrença nesta revolução. Isto porque, segundo o que se consagrou erroneamente, sobretudo através dos dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil seria um país bastante urbanizado, onde atualmente mais de 85% da população viveria em áreas urbanas e menos de 15% viveria no campo.
Agência Brasil
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Aparentemente inofensiva, esta ideia mostra-se extremamente prejudicial ao processo revolucionário brasileiro, dado que dela, forçosamente, deriva a crença de que no campo não haveria contingente populacional suficiente para a empreitada da Revolução Agrária, deslocando-se o eixo tático principal da luta revolucionária para as cidades, e relegando a um plano secundário a resolução do problema agrário, ou até mesmo chegando-se a negá-lo.
Embora se ancore em um aspecto puramente quantitativo, o que por si só já demonstra sua fragilidade, se faz necessário, contudo, liquidar esta ideia e o entendimento incorreto que deriva dela, fazendo avançar entre as massas a compreensão da importância e necessidade da Revolução Agrária, que se apresenta como uma pendência histórica em nosso país.
Metodologia: Brasil mais urbano que USA?
Como se sabe, o método que o IBGE utiliza para caracterização da população urbana e rural do Brasil não é confiável, isto porque legalmente cabe aos municípios a delimitação das áreas urbanas e rurais em seus territórios e, além de não existirem critérios claros e uniformes para fazer-se esta caracterização, entram em jogo outros interesses, como, por exemplo, a cobrança de impostos.
Sendo o Imposto Territorial Urbano (IPTU) mais rentável que o Imposto Territorial Rural (ITR), os governos municipais tendem a superestimar as zonas urbanas e subestimar as áreas rurais dos municípios, o que possibilita cobrar-se impostos mais elevados dos proprietários, mas, por outro lado, gera distorções nos dados que o IBGE utiliza para caracterização da população.
Todavia, na caracterização populacional, a distorção maior resulta da adoção do Decreto-lei 311, de 2 de março de 1938. Da época do Estado Novo, definiu-se através deste Decreto que tanto as sedes municipais quanto as sedes distritais passariam a ser caracterizadas como zonas urbanas, as primeiras enquadradas como cidades e as segundas, como vilas. As áreas rurais, por sua vez, definidas por exclusão àquelas zonas, compreendem o restante do território.
Tão elevado índice oficial de urbanização do Brasil, atualmente em 85% (pasmem!), superior até mesmo ao do USA (81%) estatisticamente, sem dúvida resulta das distorções geradas por este Decreto, isto porque ele tornou urbana populações que não poderiam ser caracterizadas como tal, devido a não na aplicação de critérios minimamente sérios, visto que muitas sedes municipais e distritais, naquela época – e mesmo ainda hoje – não reuniam as mínimas condições para serem qualificadas como espaços urbanos.
Se se aplica a metodologia que a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) utiliza para caracterização das populações urbana e rural ao Brasil, por exemplo, logo se verá que o índice do IBGE é irreal.
Destaque-se que a OCDE, neste quesito, tem a metodologia mais aceita mundialmente, sendo aplicada em vários países, dentre estes o USA. O próprio IBGE admitiu recentemente que, na metodologia da OCDE, o índice de urbanização do Brasil cai de 85% para 76%, isto é, quase dez pontos percentuais, demonstrando que o elevado índice de urbanização do Brasil resulta sobretudo de um artifício metodológico, artifício originado no Estado Novo, que visava conferir um status de grande potência ao Brasil, potência que obviamente necessitava de uma identidade urbana, conferida falsamente pelo Decreto 311/1938.
Embora ainda mascarando certos dados, o IBGE fez, na publicação Classificação e Caracterização dos Espaços Rurais e Urbanos do Brasil (2017), uma primeira tentativa de aplicação da metodologia da OCDE ao Brasil, que revelou que 60,4% dos municípios do país são predominantemente rurais. Todavia, estes municípios, segundo o Instituto, concentram apenas 17% da população. Ora, para o conhecimento da real dimensão da população rural do país, é necessário somar a população dos municípios qualificados como predominantemente rurais à parcela rural da população dos municípios qualificados como intermediários, o que não se fez.
Além disso, nesta primeira aproximação com a metodologia da OCDE, são encontradas sérias distorções.
Por exemplo, o município de Altamira/PA, além de vários outros, são caracterizados como predominantemente urbanos, mesmo possuindo densidade inferior a 150 hab/km², limite abaixo do qual a OCDE caracteriza uma área como rural. No caso particular de Altamira, esta densidade é de menos de 1 hab/km² (isto mesmo, menos de 1 hab/km²!). Na real aplicação da metodologia da OCDE, a caracterização do município de Altamira como predominantemente urbano só seria possível se, embora tendo densidade abaixo de 150 hab/km², este possuísse um centro urbano com mais de 500 mil habitantes, o mesmo devendo concentrar pelo menos 25% da população local, não sendo este o caso, pois, embora a cidade de Altamira concentre 77% da população do município, esta aglomeração possui apenas 77.193 habitantes (Censo de 2010). Assim, nesta primeira aproximação do IBGE, vários municípios que deveriam ser caracterizados como predominantemente rurais, como Altamira, são erroneamente enquadrados como predominantemente urbanos ou intermediários, o que acaba subestimando a real dimensão da população rural do país na suposta aplicação da metodologia da OCDE.
Brasil agrário em predominância
Sem dúvida, a população rural do Brasil é bem maior do que o que se propala, não estando o campo esvaziado de “almas”, como se quer fazer crer; pelo contrário, o campo pulula em um país semicolonial, que tem sua economia voltada para a produção de bens primários, artigos agrícolas e minerais de baixo valor agregado, e onde se desenvolve, paralelamente, uma agricultura camponesa, sobretudo para o abastecimento do mercado interno.
Sendo a oferta de empregos um dos fatores da distribuição populacional, é revelador observar que, segundo a Pesquisa Anual dos Serviços do IBGE (1998/99), o pessoal empregado no setor agropecuário do país é maior do que na própria indústria, sendo 23,6% e 12,8%, respectivamente. Se forem considerados o contínuo processo de desindustrialização do país e a importância cada vez maior do “agronegócio” na economia, certamente hoje se obterá diferença ainda maior.
Já na sua primeira edição, em 2002, o AND revelou, baseado na metodologia da OCDE, que a população rural do Brasil era algo em torno de 49%, e, embora este dado careça de atualização, dado que de lá pra cá já se passaram quase duas décadas, isto é mais condizente com a realidade do que o percentual do IBGE, sem dúvida.
Assim, é desaconselhável negar a necessidade, ou mesmo atribuir um caráter secundário à Revolução Agrária em função de um suposto esvaziamento demográfico do campo brasileiro. Fazê-lo considerando apenas o aspecto quantitativo já seria um absurdo, que se torna ainda maior quando revelado que este suposto esvaziamento deriva da aplicação de uma metodologia inadequada, criada intencionalmente para resultar num elevado grau de urbanização, que o país de fato não possui.
Nota
*Nilson Silva é geógrafo